156. Ismael (69) - O inspetor solta puns ou ela deu a sexta?
Eu dei a sexta. Já não aguento mais este despejar de argumentos, preleção, como tem referido amiúde o escritor, que o inspetor Ismael Sacadura Flores está a fazer em plena tasca, que não ata nem desata, pois o homem passa a vida a interromper-se para comer e para beber. Ainda há pouco, estava com um copo de vinho pelos queixos, não sei como é que não perde o equilíbrio. Eu que sou enfermeira farto-me de dizer aos doentes que o vinho faz mal à saúde, mas se é o próprio Senhor Doutor Oliveira Salazar, que Deus o conserve por muitos anos, que diz que “beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”, quem sou eu, uma simples enfermeira, nada em S. Pedro do Sul, criada a águas minerais e termais, que vai desmentir o nosso mais alto dignatário o nosso querido e benfazejo Professor Doutor. E não digo isto por causa daquele agente da PIDE que desde o princípio se sentou naquele canto da sala e ali ficou sem tirar o chapéu preto, não, não é por causa dele. Até porque a mim é difícil alguém me poder fazer mal. O meu falecido e bom pai era muito querido na Legião e por isso, eu não tenho receio dele. Nem da comissária Xana, pois eu não matei aquela vadia da bailarina, deixa-me cá benzer e bater na madeira três vezes, mas lá na minha terra não há nada disto, destas mulheres que se põem com as pernas ao léu e, depois, não querem que os homens se portem mal com elas. Deus nos livre se algum dia isto vier chegar ao ponto de se verem mulheres a mostrar os seios nas praias da Caparica ou de Algés, ou rapariguinhas, algumas até bem jeitosas, a usarem calções tão curtinhos que se lhes veem as badanas do rabo. Mas isto devo ser eu a delirar pois aqui as minhas saias e as das mulheres decentes são bem abaixo do joelho e ninguém tem nada para me apontar. Ah, vocês não querem saber nada disto, não é seus desavergonhados? Pois então eu conto-vos o que vocês querem saber e que não se perca mais tempo! Eu nem estava de serviço naquela manhã. Ou melhor, estava mas já quase que não estava. Eu ia sair às oito. Tinha entrado no turno da meia-noite. O Dr. Ben, que é como o judeu é aqui conhecido entre os colegas, resolveu deixar uma cirurgia a meio e sair com a enfermeira Helena. Ainda por cima, com um desplante jamais visto ou imaginado, provocou-me. Eu não sou bufa, só porque o meu pai era legionário, Deus tenha a sua alma em descanso que não é para aqui chamado e o escritor já o fez, propositadamente, mais de uma vez. Pois sabem como é que eu fiquei? Fiquei em brasa. A sério! Onde é que aqueles dois iriam? Saíram do hospital, foram a pé até ao Campo Santana e aí entraram num táxi. Saí atrás deles e tomei outro que, por sua vez, os seguiu. Descemos a Rua de S. Lázaro onde uma senhora dos seus pouco mais de vinte anos, entrava feliz na Magalhães Coutinho, com um saco de enxoval numa mão, dando a outra ao marido e empinando uma barriga de nove meses e dias, descemos ao Martim Moniz, passamos pela Rua da Palma, onde um dia não deixei presa a minha alma porque por mim não passou nenhum fadista de cor morena e boca pequena, entramos na Praça da Figueira, onde pescadores de pé descalço, calça arregaçada e camisa aos quadrados acartavam cestas de peixe, peixeiras já saiam de rodilha e canastra na cabeça ensaiando os primeiros pregões matinais, carroças com burros amarrados em argolas, junto à fonte onde as alimárias beberricavam e saloios despejavam couves, alfaces e nabiças em molhos, e uma melancia se desfazia em mil pedaços, caída das mãos de um transeunte, percorremos a Rua dos Fanqueiros a caminho do Tejo, cujos últimos néones se apagavam com o nascer da manhã e as portas de alfaiates, costureiras e vendedores de fancarias ainda não tinha aberto as portas e, antes de chegarmos ao Tejo, cujo Terreiro do Paço lhe serve de varanda, cortamos a Rua da Conceição, ainda sem aquele cheiro típico do molho de escabeche, dos tordos fritos ou das tiras de toucinho passadas na chapa, até que, finalmente, embicámos na Rua dos Correeiros. Pedi ao taxista que abrandasse, deixasse sair o casal que seguia no táxi em frente e, quando eles entraram no número 43, pé ante pé segui-os escadas acima, fazendo por me esconder em cada vão de porta em cada patim da escadaria. A porta do sexto andar estava aberta. Seria então ali o antro da perdição. Seria então ali que o Dr. Ben e a sua concubina se enrolariam em porcarias inenarráveis. Seria ali que trocariam beijos sujos de boca e línguas. Seria então ali que o médico judeu desapertaria a blusa branca de Helena, a blusa plissada de enfermeira, quiçá ainda com o distintivo do hospital e as letras HM representando o nome de Helena Meireles, bordadas junto ao coração. Seria então ali que os seios da bela Helena se refletiriam, como dois bolbos de candeeiro de rua, nos brilhantes olhos do jovem médico. Seria então ali que, empurrada sobre a cama, o doutor raios-o-parta de depravado, iria tirar as ligas à enfermeira Helena e baixar-lhe as meias brancas, deixando à imaginação dos leitores deste pecaminoso prospeto, que o escritor teima em que venha a ser livro, quantas das rendas das lindas cuequinhas de Helena denunciariam o calor que por dentro se avolumava. Seria então ali que Helena desapertaria os botões da camisa de cambraia daquele doidivanas sem classificação e lhe desapertaria o cinto das calças, em couro genuíno. Seria então ali…
Morria eu de ciúmes e de ardor quando deparo com Helena e o Dr. Ismael Ben-Avraham debruçados sim, mas não um sobre o outro, antes porém sobre um corpo já cadáver caído no corredor, alguns palmos bem medidos entre a porta de um quarto e a porta da rua. Ben-Avraham apenas balbuciou «está morta». Helena respondeu «nada mais temos a fazer aqui». Só tive tempo de entrar no quinto andar abandonado antes que o casal saísse. Subi depois. Quis ver o que se passava. Uma mulher, jovem, mais jovem que a enfermeira Helena e bem mais jovem do que eu e muito mais bonita que ambas, prostrava-se no chão com uma faca espetada no peito. Que raiva, esta mulherzinha, provavelmente uma corista de teatro, ruiu os meus planos de apanhar aqueles dois em flagrante. Peguei na faca e espetei-a de novo no seu corpo já quase frio. Seria a sexta facada, não as contei, mas na polícia disseram-me que sim. Só peço que não digam ao inspetor que vos contei o que contei para que ele não se sinta ultrapassado. Ou se quiserem contem. Ele soltará puns, mas isso não é coisa que vocês já não estejam acostumados. Quanto a mim? Não se preocupem. Nada me acontecerá. Afinal de contas, mesmo feia, não é impunemente que se nasce filha de um legionário.
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