O HOMEM QUE TINHA VÁRIAS FERIDAS ESPALHADAS PELO CORPO
O homem que tinha várias feridas espalhadas pelo corpo olhou-se ao espelho e disse, de si para si, vou sarar as minhas feridas. Queria cicatrizar cada uma das chagas espalhadas pelo corpo, abertas ao longo de anos levando uma vida miserável, uma vida que apenas podia dizer sua por ter sido o seu corpo a vivê-la, embora não a reconhecesse enquanto tal. Sentia a sua vida como um amputado sente a ausência do órgão, ela estava lá sem estar onde outrora estivera. O tempo amputara-lhe a vida, a velhice fora transformando o seu corpo numa plantação de chagas abertas. O homem queria recuperar o seu corpo, a sua vida, precisava de voltar a sentir-se ele próprio. Começou pela perna esquerda, tão macerada pelo esforço. O homem há anos que não usava a perna direita, apoiava-se todo ele na perna esquerda, andava sobre uma única perna como quem anda ao pé-coxinho. Tinha a palma do pé esquerdo em carne viva e a palma do pé direito simplesmente embrutecida. De resto, todo o seu lado direito era pedra. O homem raramente usava o lado direito do corpo e nas partes onde não se transformara em pedra era simplesmente areia, um terreno incultivável, seco, inóspito. Depois ocupou-se do braço esquerdo, julgando que tratado o lado esquerdo podia semear pelo lado direito novas células e, dessa forma, regenerar-se, voltar a ser um homem. Tinha várias feridas no braço esquerdo, sendo a mais profunda de todas na zona do cotovelo. Não seria fácil tratar da ferida no cotovelo esquerdo, talvez bebendo muita água, levando uma dieta rigorosa à base de alimentos saudáveis e literatura suave. Foi isso que começou por fazer, sem grandes efeitos. Seja como for, não estava nos seus planos desistir agora, voltar a desistir. Afinal, fora precisamente essa mania de desistir de tudo aquilo em que se metia que o trouxera àquele estado de feridas imensas espalhadas pelo corpo inteiro. O homem aplicou-se, resistiu às tentações, praticou meditação transcendental, deixou de esbanjar tempo com assuntos supérfluos e bens materiais com mais bens materiais. Na realidade, ele concluiu que havia uma certa contradição nos termos bens e materiais quando conjugados. Todo o bem era espiritual, e foi nas coisas do espírito que o homem se aplicou. Curado o cotovelo, voltou-se para o ombro. Era um ombro que metia dó. De tanto peso ter carregado, aquele ombro já nem parecia um ombro. Parecia um pedaço de madeira comprimido com várias fendas atravessando-o de uma ponta a outra ponta, uma espécie de suporte gretado por onde podíamos antever o começo de um edifício decrépito e devoluto. É curioso, porque normalmente os homens constroem-se como as casas, ou seja, por baixo. Talvez o mal deste homem tivesse sido o começar a construir-se pelos ombros. Para tratar do ombro esquerdo o homem que tinha várias feridas espalhadas pelo corpo socorreu-se de métodos regenerativos pouco ortodoxos. Começou por isolar-se, deixando assim de ter que carregar com os pesos dos outros. Afastou-se das pessoas, da sociedade, dos outros homens que lhe pareciam sempre muito saudáveis até ao momento de começarem a despir-se. Completa e radicalmente só, decidiu então alimentar os ombros com o nada. O nada é o mais poderoso medicamento regenerador. Não pensava em nada, nada fazia, não se incomodava, recusava qualquer tipo de preocupação, rejeitava todo o género de acção. O ombro pôs-se como novo num instante. Então, o homem voltou a olhar para si de alto abaixo e sentiu-se medianamente satisfeito. Foi nessa altura que plantou células novas no lado direito do corpo, sarando assim as feridas a ponto de já nem as cicatrizes se notarem naquele corpo outrora desfeito pela dor. Faltava a mais terrível das feridas, o coração. E aí o homem deteve-se pensativo. Como posso eu agora sarar a ferida do coração? Para tal, terei de abrir a zona do peito onde se aloja o coração. Fazendo-o, abro uma nova ferida. E depois terei que ocupar-me dessa nova ferida, sem saber se a ferida do coração ficou tratada. O homem que tinha várias feridas espalhadas pelo corpo não sabia que as feridas do coração não têm cura, ele julgava que podia curar-se por inteiro. Mas curado por inteiro um homem fica doente, padece da cura. A ferida do coração mantém-nos vivos, só a morte pode tratá-la. O homem chegou a estas conclusões sem que fosse necessário pensar muito, bastou olhar atentamente para si próprio. Era um homem novo com um coração velho que não deveria deixar-se apanhar pela armadilha de certas outras pessoas, as quais convencidas da beleza se tornam perigosas porque esquecem rapidamente a morte que medra por debaixo da pele. Então o homem reaproximou-se do mundo. Foi a um café, sentou-se e pediu uma bica e um bolo de arroz. Regressou a casa e partiu os espelhos. Nunca mais quis olhar para o seu próprio corpo, tanto fora o tempo que perdera a tratá-lo.
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