Será que o português é mais antigo do que o espanhol? E o irlandês — terá sido inventado no século XX? E o galego — apareceu no século XIX? Claro que não, mas há quem diga que sim. Porquê? E, já agora, qual é a língua mais antiga do mundo? Será o basco? Vamos lá a isto…
Entre o irlandês e o galego
As línguas são uma manifestação física da identidade de cada um — é por isso que os idiomas são campo pródigo a palavras inflamadas, corações aos saltos, faces ruborizadas de indignação e dedos a bater depressa na pressa de responder.
Gaston Dorren, autor do livro Lingo (mais do que recomendável!) e do blogue Language Writer, contou há meses como se meteu numa discussão de Twitter entre dois irlandeses: um unionista e um republicano… Dizia o unionista que a língua irlandesa era uma invenção do século XX. A coisa aqueceu e o irlandês do Sul disparou: cala-te lá, pá!, que o irlandês é mais antigo do que o inglês!
Também há discussões destas cá mais perto de casa. Ainda há pouco tempo assisti — e meti a colher — numa discussão bem quente entre galegos e um louco dum tuiteiro cá do burgo que insistia nisto: o galego foi inventado no século XIX! Um ou outro galego contrapunha, em modo agarrem-que-me-vou-a-ele que o galego é mais antigo que o português.
Quem tem razão?
De certa maneira, ninguém — embora se tiver de ir à luta, terei de arregaçar as mangas contra quem acha que o galego foi inventado o mês passado. Ou seja, ninguém tem razão, mas quem diz que o galego foi inventado no século XIX está mais errado do que os outros.
O leitor terá imaginado que a resposta não seria fácil — mas talvez seja uma surpresa perceber a razão da dificuldade…
As línguas não nascem, transformam-se
Andamos por aí com uma certa ideia do que é uma língua que nos leva a compará-la a uma pessoa: nasce, desenvolve-se, às vezes morre. Esta metáfora serve-nos em muitos casos. Mas, noutros, dá origem a ideias um pouco desastradas.
No que toca à origem das línguas latinas, a ideia geral será esta: havia uma língua estabilizada (o latim), que se desfez e deu origem a embriões de outras línguas. Esses embriões acabaram por dar origem a línguas nacionais, muito mais tarde: o português, o espanhol, o francês, etc. — estas línguas desenvolveram-se até aos píncaros das idades de ouro das suas literaturas.
Bem, esta imagem não é completamente falsa — mas engana-nos. Para percebermos isto a fundo, temos de fazer um exercício: temos de esquecer a escrita. Pensemos, para já, apenas na língua falada na rua.
Imagine a época de Afonso Henriques — ou mesmo antes. Imagine aquilo que se falava nas ruas de Guimarães 100 ou 200 anos de Portugal ser um reino independente.
Na escrita, o latim imperava. Na fala, será que a linguagem das gentes era pior do que a nossa, ou seja, menos capaz de expressar as emoções ou incapaz de permitir conversas, amores, combinações?
Não parece provável: afinal, ninguém encontrou até hoje uma língua que limite os seus falantes, que impeça de sentir esta ou aquela emoção. Repare na língua que sai da boca dos portugueses de agora: repare na extraordinária variedade e riqueza das palavras com que conversamos, mesmo com quem mal sabe escrever. Sim, eu sei que há quem tenha pouco jeito, mas, em geral, sabemos convencer, discutir, ironizar, brincar, namorar — às vezes, escrevemos um romance inteiro com a mera entoação de voz numa simples frase… Às vezes, insinuamos as maiores patifarias com uma pequena interjeição dita de certa maneira…
Piadas no pátio da escola… Discussões de namorados… Histórias antigas contadas aos netos… Conversas profundas no terraço… Reuniões estratégicas numa empresa… As palavras saem da nossa boca a todo o minuto e servem-nos para tudo e nada.
Esta capacidade de conversar e de viver não diminuiu quando o Império Romano desapareceu.. Nunca houve um momento em que a língua deixasse de ser uma língua inteira na boca de cada falante.
Da mesma forma, os romanos já receberam a sua língua do que vinha antes — e assim continuamos.
Ou seja, não há um momento em que possamos dizer: esta língua nasceu hoje. Em geral, a linguagem é transmitida sem cortes radicais entre gerações.
Como explicou Gaston Dorren na discussão de que falei, o inglês e o irlandês não têm idade. São ambas tão antigas como a linguagem humana.
Então e o basco? Não é mais antigo que o português?
Ora, dirá o leitor mais desconfiado: isso é tudo muito bonito, mas a verdade é que falamos hoje uma língua muito diferente do latim — enquanto, por exemplo, os bascos falam a mesma língua há 7000 anos! Ou seja, o basco é mais antigo que o português… Há mesmo quem diga que é a língua mais antiga do mundo.
Continuemos longe da escrita. Continuemos apenas a pensar no que se fala. Ora, o basco mudou tanto ou mais do que o latim nestes quase 2000 anos que nos separam dos romanos (e o próprio latim nunca tinha parado de mudar durante o Império — já Cícero se queixava da língua das ruas…).
O basco mudou — e dividiu-se, tal como o latim. O basco falado em família tem diferenças tão marcadas como as diferenças entre as várias línguas latinas. Não acredita? Pois veja este vídeo, que mostra como o basco tem uma variedade dialectal que podia perfeitamente ser interpretada como uma família de línguas diferentes.
O basco oficial e ensinado nas escolas é o basco batua, uma norma — um registo escrito e formal e uma linguagem literária — baseada nos dialectos centrais do basco (mas com algumas contribuições dos outros dialectos). Percebe-se que os bascos tenham criado uma língua unificada — seria mais difícil proteger e promover o basco se este fosse uma colecção de línguas incompreensíveis entre si.
Ou seja, o basco não se manteve inalterado e indivisível durante milénios, ao lado de línguas a nascer a partir do latim. No fundo, a situação basca é semelhante ao que aconteceria no universo alternativo em que tentássemos ressuscitar o latim desta forma: institucionalizamos o dialecto francês, mudamos-lhe um pouco o vocabulário e a gramática para o aproximar dos outros dialectos latinos — e chamamos «latim» a essa norma. Em casa, todos falámos durante séculos (neste universo alternativo) qualquer coisa parecida com o português, o espanhol, o italiano — até que, com uma norma institucionalizada, as escolas, a televisão e a urbanização começam a espalhar o novo latim em todo o Novo Império Romano (neste universo alternativo, o sul da Europa unificou-se num só estado). Na Lisboa dos dias de hoje, os avós ainda falam o dialecto da terra (o português do nosso universo). As gerações mais novas, no entanto, já usam o latim (o francês do nosso universo), excepto quando conversam com os avós.
Parece estranho? É estranho. Mas é o que acontece no País Basco — que tem a complicação adicional de haver outra língua em concorrência com este sistema de dialectos incompreensíveis e uma norma comum (chamada, já agora, de euskera batua) — falo do castelhano, claro está.
O grego sobreviveu milénios?
Há também o caso do grego. Mantém o mesmo nome desde a Antiguidade — não é óbvio que é mais antigo do que o português?
Na verdade, um grego de hoje em dia terá tantas ou mais dificuldades em ler um texto em grego antigo do que um português em ler um texto latino.
Houve, na verdade, desde o século XIX até aos Anos 70 do século passado, uma tentativa de aproximar o grego moderno do grego antigo — tentou-se impor uma língua literária artificial com algumas formas clássicas. Essa língua artificial chama-se katharevousa, em contraste com o grego demótico, ou seja, o grego da rua que é hoje oficial.
As lutas foram terríveis — houve mortos! A língua grega tem o seu quê de sagrado para os gregos e o katharevousa ia beber à tendência para mitificar a língua do passado como mais perfeita e genuína (é uma tendência universal).
A norma do grego moderno acabou por se libertar desse peso e, hoje, a língua oficial está mais próxima da língua da rua. Ainda há quem suspire pelo regresso da velha língua, mas a verdade é que o grego não ficou parado na Antiguidade e é muito diferente do grego antigo. Tentar mantê-lo congelado é um esforço inglório, que apenas prejudica os gregos.
Todas as línguas são assim — mudam constantemente. É certo que, por vezes, há cortes um pouco mais marcados. Por exemplo, quando uma população assume como sua a língua de outra população — a língua costuma dar então um salto através duma simplificação acelerada (falei disso neste artigo). Mas, mesmo assim, uma população nunca cria a sua língua do nada — uma língua não nasce: transforma-se. (Curiosamente, não nasce, mas pode morrer.)
Quando nasce uma língua?
Falei do basco e do grego para dizer isto: é quase impossível determinar a idade de uma língua.
Se usamos o critério do nome da língua ou mesmo a permanência no mesmo território, acabaremos por considerar que o grego moderno e o grego antigo são a mesma língua. Não faz muito sentido: as diferenças linguísticas são comparáveis às diferenças entre o latim e o português.
Se acharmos que uma língua nasce no momento em que se separa de outra, deixando de haver compreensão mútua, então teremos de falar de várias línguas bascas — e todas bastante recentes. Já o português, nesse caso, terá surgido quando se separou, por exemplo, do galego — e quando foi isso? Já aconteceu?
As línguas são como aquelas bactérias que se multiplicam através da divisão: surgem novas bactérias, é certo, mas nenhuma é mais antiga do que a outra — nenhuma é mãe da outra. As línguas são um bicho esquisito.
Alguém dirá: ora, a língua nasce quando nascem os primeiros documentos escritos. É um critério apetitoso — é concreto, é físico, podemos comprovar a data. Mas, se assim for, a maioria das línguas humanas nunca chegou a nascer.
No fundo, o ponto em que começamos a contar a História de uma língua é sempre uma escolha, tem sempre muito de arbitrário.
Viagem ao princípio da língua
Tudo isto pode ser assim, mas o que importa a muitos é a norma associada à língua escrita — e formal, já agora —, ou seja, o registo particular baseado na fala de determinada zona ou grupo social, normalmente o grupo de prestígio que habita nas cidades mais importantes de cada sociedade.
Por outras palavras, quando perguntamos a idade duma língua, estamos a perguntar a idade da tradição escrita e literária dessa língua. Nesse ponto, podemos ter algumas datas: a data em que o português se tornou oficial; a data em que o galego começou a ser usado na literatura; a data em que o irlandês ganhou uma norma escrita…
É esta associação entre língua e norma escrita que justifica que alguém considere o irlandês uma língua recente — os irlandeses já o falam há milénios, mas a sua norma escrita actual é mais recente — no entanto, esta maneira de encarar a história é muito enganadora: os irlandeses falam essa língua há muito tempo, apesar de agora já só sobreviver em zonas particulares.
Essa associação estrita (e errada) entre língua e escrita também explica que haja quem considere o galego uma «invenção» do século XIX: a literatura galega moderna renasce nesse século — mas mesmo assim, para dizer que o galego nasceu no século XIX, é preciso ignorar que já tinha havido textos bem mais antigos escritos na língua dos galegos.
A mim, na verdade, interessa-me a história do uso escrito das línguas, mas há tanto que se esconde por trás — tanto e tão interessante!
Gosto de pensar como o português não surgiu do nada quando surgem os primeiros documentos — mesmo que seja muito difícil ter certezas sobre o que se passou antes.
Gosto de pensar que a palavra «mãe» veio da «mater» latina, mas entre uma e outra existiram muitas formas pelos séculos fora, todas tão expressivas e maternais como a nossa.
Gosto de pensar que a «mater» latina veio de qualquer coisa de anterior, até chegar à «*méh₂tēr» indo-europeia, uma forma reconstruída duma língua que ninguém escreveu.
Gosto de pensar que os tais indo-europeus nunca se chamaram assim e nunca escreveram a palavra «*méh₂tēr» — mas fosse qual fosse a forma da palavra «mãe», existiu na boca de pessoas reais que percebiam e sentiam a sua língua como nós sentimos a nossa.
E gosto de pensar que essa «*méh₂tēr» também terá vindo doutra «mãe» mais antiga, assim até chegarmos ao dia em que alguém, pela primeira vez, disse a palavra «mãe» (mas sobre isso falaremos noutro artigo).
A língua e o barro
A linguagem humana e a sua variabilidade será como o barro, sempre moldável e sempre a caminho de ser outra coisa. De vez em quando, há quem pegue num pedaço desse barro e coza uma língua-padrão — mas, na rua, as pessoas continuam a brincar com o mesmo material, mudando a forma da língua até a forma rígida da norma se partir e ter de ser substituída por outra (felizmente, a norma não tem de ser assim tão rígida; e é bom que não o seja, pois só assim garantimos que não se parte, como aconteceu com o katharevousa).
Note-se: a norma não pode inventar uma língua do nada — tem de usar os materiais que existem. A norma é uma força que actua sobre esses materiais, por vezes como política consciente, com mais ou menos êxito, outras vezes através de mecanismos inconscientes de aproximação à fala do grupo de prestígio. Houve gregos que tentaram moldar o barro para se parecer ao grego antigo — falharam, embora algumas palavras dessa norma artificial tenham sobrevivido. Os bascos ensinam agora uma língua unificada e esse processo tem corrido bem. Curiosamente, a língua dos galegos e dos portugueses viveu séculos debaixo de normas diferentes, mas o material comum ainda lá está, a permitir que nos entendamos, quando vemos quão parecido é o barro dum lado e doutro da fronteira.
Bem, voltemos à nossa pergunta: qual é a língua mais antiga do mundo? A única resposta razoável é explicar que as línguas não têm idade, como diz Gaston Dorren. As línguas mudam, passam por fases, vão-se sujeitando a diferentes normas, misturam-se e influenciam-se umas às outras. Neste percurso complexo, damos-lhes nomes e assumimo-los como bandeiras das nossas identidades. Por isso, é normal que queiramos saber quando nasceram as tais bandeiras.
É normal, da mesma forma, que um português queira saber se o espanhol é uma língua mais antiga do que a sua — mas a resposta, mais uma vez, só pode ser esta: nenhuma delas nasceu, apenas se foi moldando ao longo dos séculos, a partir de materiais anteriores, num processo que começou há muitos milénios — e não acabou!
A língua que o leitor tem na cabeça tem pergaminhos tão antigos como a língua de todos os outros seres humanos. Todos falamos o que resultou da sucessão ininterrupta de gente a falar desde o princípio dos tempos — e assim continuaremos, de palavras na boca, a moldá-las sem fim, por muitos e bons séculos.
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