PAVANA PARA UMA BURGUESIA DEFUNTA
A cabeça de vaca de minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.
Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi ser o estrume que é.
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi ser o estrume que é.
A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustada.
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustada.
A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim o não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exaltação dos suspiros cativos.
o sim-sim o não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exaltação dos suspiros cativos.
Se não fosse o desgosto se não fosse a gordura
o retrato na sala o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.
o retrato na sala o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.
Minha tia mastiga minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
- não me limpaste o pó a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.
na saleta do inferno as almas dos criados:
- não me limpaste o pó a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.
A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca resolve-se na fome
do senhor que a devora em sua santa glória.
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca resolve-se na fome
do senhor que a devora em sua santa glória.
José Carlos Ary dos Santos
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