Como o fascismo faz de todos nós uns imbecis
E o que fazer sobre isso antes que ele o faça
Por Umair Haque
No final, se deixarmos, os fascistas farão de todos nós uns imbecis. É um enigma estranho e macabro. Poderá ser resolvido – poderemos pará-lo? Primeiro, deixem-me ilustrar um pouco esta questão.
O esquerdista olha ao redor, perplexo, após a ruína de uma nação, e pergunta-se: “Estaria errado em querer um estado forte e robusto? Ah, o que eu fiz!”. Ele vê as instituições que outrora defendeu pervertidas, viradas do avesso. Instituições do Estado Providência que tinham como objetivo oferecer o bem-estar tornaram-se, em vez disso, instituições da opressão. Os exércitos passaram a subjugar em vez de libertar. Os tribunais acham os culpados inocentes e os inocentes culpados. E aqueles que em tempos protegeram a liberdade e a prosperidade, em vez disso, protegem agora a obediência, a indecência e a subjugação. E aí o pobre esquerdista fica, perplexo, feito tolo, à medida que os fascistas usam a lei, a justiça e a governança como instrumentos de ruína e atrocidade. Ah, para que serve um estado maior se o fascista não o utilizará mais do que um dia para o transformar numa ferramenta muito mais poderosa?
Aí, ao lado dele, está o conservador, chocado com a queda da sua nação. Ele grita: “Ah! Como eu estava errado! Se ao menos eu próprio não tivesse apelado à destruição da governança, então talvez o fascismo não tivesse surgido no vácuo deixado atrás deles!” Ele olha em volta e vê um Estado, um governo, instituições, que, desgastadas, corroídas, desmanteladas, foram para a maré fascista o que um dique recentemente arrasado representa para um tsunami. Ele pergunta-se: porque é que eu estava errado? Deveria ter apoiado um estado mais forte, um governo maior? Se a conservação daquilo que se herda, dos valores e ideais resulta apenas na elevação do puro que faz de uma sociedade uma máquina de predação sobre o impuro, então para que serve aquilo a que chama conservadorismo? O que é que na verdade ele conserva se não o pior que há em nós?
Ao lado de ambos está o fantasma da história, a rir-se. Ele sussurra: “nunca se tratou de ser o grande contra o pequeno. Mas sobre o melhor e o pior. Sobre a dignidade, a verdade, o respeito e o possível. Sobre maneiras corretas ou erradas de organizar e ordenar as coisas. A vossa luta nunca importou em nada.” Mas eles não o ouvem. Eles estão assombrados pelos seus próprios erros.
Ao lado do conservador e do liberal senta-se o intelectual. Segurando o seu caderno de notas, com os olhos arregalados, com o seu rosto fantasmagoricamente pálido. Ele escreve uma frase, e depois risca-a. “Mas como é que isto pode ter acontecido?“, murmura ele. “As minhas equações diziam que estava tudo bem!” Ele não vê que os seus factos e dados foram construídos para medir a ascensão de uma sociedade – não a queda de uma sociedade. E assim ele nunca pensou que o crescimento continha massas de desesperados, dificilmente capazes de sobreviverem, vivendo à beira de um precipício, e assim demasiado disponíveis para se virarem para o primeiro demagogo que lhes gritava, que os fazia sentirem-se fortes e seguros, novamente. E melhor ainda se esse demagogo toma como bode expiatório o estrangeiro, o outro, o fraco, o ninguém – porque quem seria mais fácil pisar, para se ganhar um sentimento de superioridade?
Assim, aí está ele sentado, o intelectual, intrigado sobre um enigma que ele nunca vai resolver – porque os factos, os dados, as equações, tudo isso é cego em face da escuridão ardente que queima o coração dos homens.
Ao lado do intelectual sentam-se duas figuras desamparados. Eles são os líderes das alas esquerda e direita do país que uma vez se chamou um país livre. Eles olham um para o outro, mas os seus olhares não se cruzam, envergonhados. Somente cada um sabe o fardo que pesa sobre o outro que o envia para as profundezas do desespero. “Ah“, ambos pensam, amargamente, com um profundo arrependimento, “se eu tivesse constituído uma genuína oposição! Uma oposição de verdade! Uma verdadeira visão para uma sociedade dilacerada, destruída, em que as pessoas poderiam ter acreditado, de novo, que poderia ter unido as pessoas, que as poderia ter estimulado e despertado! Mas desperdicei todo o meu tempo e energia em indignação, na cólera, a tentar envergonhar os que não têm nenhuma vergonha. Ah, que erro que eu cometi!“
O seu colega responde, tristemente, “nós não sabíamos então que o que estávamos a fazer era apenas a alimentar o espetáculo fascista – porque cada onça de raiva que lhe demos apenas alimentou o mito de que ele era forte, transgressor, e bastante ousado para corrigir uma sociedade destroçada. Mas por que não fomos nós fortes e ousados? Porque nunca oferecemos às pessoas um melhor contrato social, porque nunca virámos a maré contra o fascismo, em vez de estar a alimentá-lo?” E ambos olham um para o outro, entorpecidos, quebrados, derrotados.
Por último, ao lado deles, senta-se o jornalista. “Mas eu disse a verdade! Porque é que ninguém a ouviu?! “, diz o jornalista a chorar, embora ninguém mais o ouça. Todos eles estão agora a marchar ao som do tambor fascista. No entanto, ele não ouve a História a rir, e gentilmente a perguntar-lhe: “Ah, mas quando você chamou às mentiras “falsidades ” e ao fascismo “nativismo” e aos campos de concentração “centros de detenção” e ao desaparecimento de crianças “vergonhoso”, em vez de crime, foi isso realmente a verdade? Quando você se recusou a fazer paralelos com os períodos mais sombrios da história, para ensinar às pessoas o que foram a Gestapo e a Stasis, de quão rapidamente a escuridão caiu pela última vez, era isso realmente um qualquer tipo de verdade – ou apenas a arrogância, orgulho, arrogância de ‘não pode acontecer aqui’? Não é a verdade algo de mais preciso, algo que se assemelhe mais com como usar as palavras mais precisas e as histórias que conhecemos? Aquelas que contêm a plenitude da experiência humana dentro delas?
… E assim, quando você se recusou a chamar as coisas pelo que elas eram, você não facilitou a vida aos fascistas para eles se erguerem, também, dando-lhes uma licença para continuar a tapar a verdade, para perverter a realidade, para chamar a decência de indecência e a justiça de injustiça? Teriam eles podido fazer isso se você tivesse realmente avisado toda a gente das histórias que a história nos conta, usando palavras que ecoam pela história — como ‘genocídio’, como ‘colapso’, como ‘campos’ e ‘atrocidade’ e ‘ruína’ — com a força e o sofrimento dos séculos? ” Mas o jornalista não a ouve. Ele está muito ocupado implorando para ser ouvido, com palavras que não significam nada, e nunca significaram.
E lá estão as pessoas. Algumas delas estão assustadas. Algumas delas estão orgulhosas. Algumas delas estão dormentes. Algumas delas estão derrotadas. O pior que havia entre eles triunfou e os fracos estão a começar a perecer. No entanto, ninguém ainda, mesmo aqueles que se preocupam e se questionam sobre o que ainda está para vir, resolveu este grande e terrível enigma.
Se o fascismo acaba por fazer de todos nós uns imbecis, então como é que é melhor derrotá-lo? A resposta está escondida à vista de todos nós. Para admitir a nossa loucura agora mesmo- assumir a responsabilidade, fazer um balanço de tudo isto, aceitar a responsabilidade por isso mesmo -e acreditem-me, há mais do que suficiente para seguir em frente, sejamos intelectuais, jornalistas, políticos, académicos ou ativistas. Para enfrentarmos as nossas próprias fraquezas. Os erros que cometemos, as injustiças que fizemos ao outro, as pequenas traições que cometemos, e as pequenas queixas que alimentámos. Sejam eles intelectuais, políticos, morais ou sociais. O fascismo acaba por fazer de nós uns imbecis – e por isso devemos admitir a nossa loucura demasiado humana em primeiro lugar, devemos imediatamente apagá-la antes que ele tenha uma chance de se inflamar. Antes de que o fascista vire a cara e ridicularizando-nos grite então: -“fraqueza! É a coisa mais desprezível de todas! Eliminem os fracos! “— e antes que tenhamos dado conta estamos agarrados à garganta um do outro.
Se, mesmo agora, nós podemos fazer isso – deixemos que as nossas fraquezas nos conduzam, nos ensinem, nos instruam e nos guiem em direção a tudo que é bom e nobre e verdadeiro em nós, a seguir haverá então uma esperança. Mas se não o pudermos fazer, então não há nada além de desespero e de ruína no nosso futuro. Porque a verdade é esta. O enigma do fascismo tem apenas uma boa resposta, mas milhões de respostas impensáveis.
Texto original em https://eand.co/how-fascism-makes-fools-of-us-all-4dc4bb48d92b
O autor: Editor de Bad Words, a book of nights, Eudaimonia and Co, Leadership in the Age of Rage, e eudaimonia. Escreve sobre Economia, Liderança, Política, Cultura e outros temas.
aviagemdosargonautas.net
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