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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

A verdadeira história da fragata “Gago Coutinho”




Política


Na madrugada de 25 de Abril de 1974, a fragata Gago Coutinho estava a sair para o mar, integrada num exercício da NATO, quando recebeu ordens de voltar para trás. O Estado-Maior da Armada mandava-a colocar-se diante do Terreiro do Paço e preparar-se para fazer fogo contra os blindados de Salgueiro Maia. A fragata não disparou, mas mantém-se até hoje a discussão sobre o que se passou a bordo nas horas seguintes.

Declaração de interesses: o autor do presente artigo é filho do comandante Seixas Louçã, que dirigia a fragata Gago Coutinho no dia 25 de Abril de 1974.
dossier sobre o episódio da fragata já vai longo, e encontra-se quase todo depositado no Centro de Documentação 25 de Abril. A peça fundamental desse dossier é o Auto de Averiguações levado a cabo pela Marinha, em 1976, sob a responsabilidade do almirante Fernando Santos Silva, oficial prestigiado e a quem reconheciam qualidades de isenção todos os envolvidos na polémica sobre a fragata. No relatório que dele resultou, Santos Silva emite um conjunto de apreciações que hoje continuam, em grande parte, a ser válidas.

Em dois artigos relacionados com este (vd. ao lado), procurei actualizar essas apreciações com o valor que lhe acrescentaram depoimentos posteriores, e alguns muito recentes. Aqui limitar-me-ei a passar em revista as conclusões que, à luz do relatório de 1976 e desses depoimentos posteriores, podemos tomar como certas e aquelas em que continuam a existir versões diferentes, nomeadamente a do então comandante da fragata, Seixas Louçã, e a do então imediato, Caldeira dos Santos.
A ordem de fogo sobre o Terreiro do Paço
Por volta das 7h40 da manhã, o navio recebeu ordens do vice-chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Jaime Lopes, para fundear diante do Terreiro do Paço e para se preparar para fazer fogo contra a coluna da Escola Prática de Cavalaria. Foi o comandante quem levantou objecções à ordem de preparação para fazer fogo: havia muita gente no Terreiro do Paço e vários cacilheiros no rio.

O comandante manteve além disso o navio em movimento, aliás mais acelerado do que era habitual, ignorando a ordem para fundear. Desse modo pretendeu reduzir a probabilidade de o navio ser alvejado com êxito por eventuais forças hostis. E mandou colocar as peças de artilharia em elevação máxima, para mostrar que não apontava para qualquer alvo em terra.

O imediato reconhece que o comandante se opôs à ordem de preparação para fazer fogo com munições de combate e admite, ao menos no Auto de Averiguações, que a decisão de colocar as peças em elevação máxima era uma decisão “prudente”.

Mas há duas versões contraditórias sobre o que ambos terão discutido, sem mais testemunhas. Em depoimento prestado em 1974, a versão do imediato ainda coincidia com a do comandante, negando ambos a existência de qualquer conversa nesse momento do dia. Mas a partir de 1976 o imediato passou a sustentar que tinha informado o comandante sobre um alegado compromisso “da Marinha”, de manter uma atitude de “neutralidade activa” para com o “Movimento”. O comandante, por seu lado, sustenta que, depois de ter levantado aquelas objecções, ouviu da boca do imediato palavras de aprovação pela sua resposta ao Estado-Maior, e nada mais do que isso.

Pouco depois, o comandante convocou uma reunião de oficiais, em que lhes apresentou as várias hipóteses de comportamento do navio no caso de este ser atacado. Nenhum dos oficiais presentes faz qualquer referência ao dito compromisso de “neutralidade activa” ou à natureza, objectivos e composição do movimento que se encontrava em curso. Nada foi dito sobre estes temas, nem pelo imediato, nem por nenhum dos presentes.
A ordem de fogo de salva
Em nova comunicação, o Estado-Maior da Armada dava entretanto ao navio uma ordem para fazer tiros de salva, para o ar. O comandante transmitiu essa ordem ao chefe do Serviço de Artilharia, com a variante de se tratar de tiros de exercício – em qualquer caso de pólvora seca. Segundo o relato do comandante, este oficial manifestou timidamente relutância em cumprir a ordem, ao que o comandante lhe perguntou se tinha problemas com as peças. À resposta afirmativa, o comandante mandou-o verificar o que se passava.

Entretanto, o comandante foi dizendo aos outros oficiais presentes que não havia problemas nas peças, como todos sabiam, e que era preciso pensar o que dizer ao Estado-Maior perante uma previsível insistência deste. Quando o Estado-Maior voltou a comunicar com a fragata, o comandante disse-lhe que o fogo de exercício não era possível, devido a problemas nas peças, que não especificou.

Segundo o chefe do Serviço de Artilharia, ao receber a ordem de preparar para fazer tiros de exercício este terá dito ao comandante que o imediato queria falar-lhe – a “deixa” para ser transmitida ao comandante uma combinação com outros oficiais contra eventuais ordens de fogo. Segundo o imediato, este terá então comunicado ao comandante que “a guarnição” se recusaria a fazer fogo de qualquer espécie.

O relatório do almirante Santos Silva dá as duas versões como possíveis, mas considera que, ainda na hipótese de ter havido uma recusa, esta foi torneada pelo comandante “com realismo e sensatez”, evitando desse modo uma ruptura irremediável com os oficiais.
A ordem do “Movimento”
O “Movimento”, que continuava a ser desconhecido pelo comandante com qualquer outro nome ou acrónimo, pôs-se entretanto em contacto rádio com o navio. O tenente Lourenço Gonçalves, seguindo instruções do Posto de Comando da Pontinha, pediu para falar com o imediato – não com o comandante – e deu-lhe instruções para o navio sair a barra do Tejo com as peças em baixo.

Gonçalves não se identificou e o imediato não ficou a saber com quem falara. Mesmo assim, o imediato transmitiu ao comandante a ordem do “Movimento”. Mas, como não dissesse quem tinha sido o seu interlocutor, criou no comandante a convicção de que lhe ocultava alguma coisa. O comandante disse-lhe então que estava “amarelo e cheio de medo” - e que o exonerava. O imediato recolheu “de livre vontade” à câmara e desapareceu de cena.

Entretanto, o comandante pediu ao oficial mais antigo, tenente Varela Castelo, que assumisse a função de imediato, mas este escusou-se. Ao abordar, depois, o tenente Palhinha, este não lhe opôs uma decisão pessoal, e sim uma reflexão mais ampla: considerando que “o pior já passou”, entendia que “é preferível ficar tudo como estava”. O comandante aceitou, aparentemente, as razões do tenente Palhinha e deixou “tudo como estava”.
A “insubordinação”
Pelas 14h30, o balanço do comportamento do navio era o seguinte: por um lado, o “Movimento” não tinha conseguido que o navio saísse a barra do Tejo com as peças em baixo; por outro lado, o Estado-Maior não tinha obtido dele a preparação para eventuais disparos com munição de combate sobre o Terreiro do Paço, não tinha obtido que fundeasse, e não tinha obtido que fizesse tiros de salva, para o ar. Quem tinha dado a cara perante o Estado-Maior era, em todos estes casos, o comandante. Se a revolução falhasse, era a ele que o Estado-Maior pediria contas.

A essa hora, o comandante convocou uma segunda reunião de oficiais, que vários depoimentos interpretam como destinada a acusá-los de “insubordinação”. O comandante, por seu lado, sustenta que a reunião se destinou a discutir, mais uma vez, o comportamento a adoptar durante a tarde, quando não ainda não estava claro que outras emergências poderiam deparar-se ao navio.

A palavra “insubordinação” terá surgido num outro contexto: o de chamar os oficiais - que aí se declararam abertamente contra quaisquer ordens de fogo -, a assumirem, durante a tarde, as suas responsabilidades perante eventuais ordens dessas, mesmo que isso pudesse ser considerado “insubordinação”.

A verdade é que depois de o comandante ter evitado o confronto aberto com os oficiais - com “sensatez e realismo”, como afirma o almirante Santos Silva -, não faria sentido algum vir agora acusá-los de “insubordinação”. E menos sentido faria juntá-los a todos e acusá-los a todos, metendo no mesmo saco os que se tinham manifestado, mesmo “timidamente”, e os que nada tinham dito.

Quanto a um alegado consenso da guarnição, incluindo as praças, o autor do relatório considera sem “consistência” o depoimento do imediato. Pelo contrário, os depoimentos de sargentos e praças constantes do dossier, muito favoráveis ao comandante, permitem compreender porquê este manteve sempre o navio em funcionamento. E convém lembrar que se tratava de fazê-lo funcionar em circunstâncias especialmente difíceis, sem poder aderir a um “Movimento” que desconhecia, e sem querer obedecer a ordens de um Estado-Maior que dava mostras de pânico e de irresponsabilidade nesse estertor final da ditadura.


O veredicto da Marinha sobre a fragata “Gago Coutinho” relido em 2014 (I)


Política


Muita tinta tem corrido sobre o episódio da fragata”Gago Coutinho” no 25 de Abril. Boa parte dessa tinta tem sido gasta em divulgar as lendas mais convenientes ao “jornalismo sensacionalista” ou à história oficial. E, no entanto, a mais completa investigação da Armada sobre os acontecimentos desse dia data já de 1976 e foi concluída com um relatório do almirante Fernando Santos Silva. Voltar a lê-lo hoje, e confrontá-lo com alguns depoimentos posteriores, e com outros recentíssimos, é um exercício obrigatório para quem queira entender o que se passou.

Declaração de interesses: o autor do presente artigo é filho do comandante Seixas Louçã, que dirigia a fragata no dia 25 de Abril de 1974.

Logo nos primeiros dias de Maio de 1974, dois artigos publicados no Diário de Lisboa apresentaram de forma distorcida os acontecimentos ocorridos a bordo da fragata. Um primeiro, de 10 de Maio, punha a guarnição a tomar o controlo do navio e a fazê-lo sair para o mar. Um segundo, dois dias depois, sustentava que o comandante tinha mandado abrir fogo pesado contra a força de Salgueiro Maia e disso fora impedido pela guarnição. A isto se juntou algum tempo depois um livro que inventava uma suposta comunicação directa entre Marcelo Caetano e o comandante da fragata, com o propósito de o fazer disparar sobre o Terreiro do Paço.
As fábulas e os factos
Duas destas lendas morreram em pouco tempo. De facto, nem o navio alguma vez saiu a barra do Tejo, nem Marcelo Caetano alguma vez esteve em comunicação com o navio. Uma terceira lenda revelou-se coriácea e duradoura: a de o comandante ter mandado disparar sobre os blindados de Salgueiro Maia. O seu autor, Nuno Rocha, era um jornalista comprometido com a ditadura e batera-se até ao último instante para submeter à censura a edição do Diário de Lisboa do próprio dia 25 de Abril (segundo relato de Cesário Borga ao autor destas linhas). Tentara depois redimir-se dos seus pecados fascistas exibindo um excesso de zelo pelos estereótipos da revolução. Nesse breve interregno da sua biografia, quisera fazer da fragata “Gago Coutinho” uma versão caseira da “Bounty” ou do “Potemkine”.

O entusiasmo passou-lhe depressa e Nuno Rocha não tardou em tornar-se uma figura de proa da extrema-direita, especializado em leaks do Conselho da Revolução. Para trás deixou a lenda, ainda hoje repescada sempre que grandes encenações mediáticas reclamam algo mais empolgante do que a verdade prosaica e chã. 

Mas também a lenda de Nuno Rocha já só pode sobreviver naquilo que o relator do Auto de Averiguações de 1976, almirante Santos Silva, classifica como “jornalismo sensacionalista”. Ela encontra-se categoricamente desmentida em todos os depoimentos recolhidos nesse Auto e na documentação depositada no Centro de Documentação 25 de Abril. Dos dez oficiais da fragata ouvidos em 1976, não há um único que não desminta a alegada ordem de fogo do comandante sobre o Terreiro do Paço.

Pelo contrário, todos os que elaboram um pouco sobre o tema dizem que o comandante opôs a uma ordem nesse sentido, recebida do vice-chefe do Estado-Maior, almirante Jaime Lopes, a objecção de haver numerosos civis no Terreiro do Paço e cacilheiros que continuavam a circular no Tejo. A mesma objecção do comandante volta a ser confirmada pelo então imediato da fragata, Fernando Caldeira dos Santos, em entrevista à Antena 1, por ocasião do 40º aniversário do 25 de Abril.









Todos os oficiais inquiridos negam também que, em algum momento do dia, o comandante tenha mostrado intenção de empreender qualquer espécie de acção agressiva contra alvos situados em terra. Do mesmo modo, é consensual naquele conjunto de depoimentos a constatação de que o comandante nunca mandou tocar a postos de combate nem guarnecer ou carregar as peças. O grau de prontidão do navio continuou sempre a ser o mesmo que tinha quando largou da Base do Alfeite, às 7h00 desse dia, para o exercício da NATO.

Na concepção do comandante, o principal meio de defesa do navio e respectiva guarnição foi sempre a sua elevada mobilidade e nunca o seu poder de fogo. Por isso, ignorou as instruções do Estado-Maior no sentido de fundear em frente do Terreiro do Paço e, bem pelo contrário, imprimiu ao navio uma movimentação rápida e com frequentes mudanças de sentido, para o tornar um alvo mais difícil de atingir. Com a mesma preocupação, mandou dar às peças a elevação máxima, para indicar que estas não apontavam para terra.

No Auto de Averiguações, o imediato considera “prudente” a ordem de colocar as peças a 85 graus (embora 26 anos mais tarde tenha passado a escrever que o único sinal inequívoco de que não iriam disparar seria tê-las colocado a 0 graus). Na altura, ambas as medidas foram portanto consensuais a bordo.

Aqui começam, no entanto, as divergências factuais e de interpretação sobre o que se passou, polarizadas principalmente em torno de duas versões – uma do comandante, outra do imediato. As duas versões têm mantido uma constância considerável, embora alguns pontos tenham sofrido ao longo do tempo alterações que podem ser postas na conta de uma natural erosão da memória.

Acresce que, a cada reacendimento da polémica, há sempre a tentação de lhe acrescentar o picante do inédito ou do scoop. Assim, já em 1994, afiançava o imediato num artigo assinado com outros oficiais:“Ao longo destes vinte anos, nenhum daqueles oficiais [signatários do artigo] se manifestou, publicamente, sobre os acontecimentos vividos a bordo da fragata ‘Almirante Gago Coutinho’ (…) Não podem, no entanto, calar-se ...". etc., etc..

Em 2000, voltava o imediato a afirmar em mais um artigo que então publicou: “Este é o meu primeiro depoimento público sobre a realidade dos factos ocorridos no dia 25 de Abril de 1974 (...) Demorei 26 anos a tomar esta decisão”. E o mesmo repetia em mensagem ao director do Centro de Documentação 25 de Abril.

Em 2014, Caldeira dos Santos deu várias entrevistas mais, uma a Luís Nascimento da revista Visão-História, outra a Maria Flor Pedroso da Antena 1, e poucos dias depois uma outra a João Adelino Faria. Nesta entrevista, terceira das concedidas só neste ano, voltou a afirmar: “É a primeira vez que em 40 anos me predispus a falar sobre a ‘Gago Coutinho’”.

Com tantas “primeiras vezes”, convém lembrar que há pouco de novo sob o sol desde o Auto de Averiguações datado de 1976. Nesse Auto de Averiguações com cinco centenas de páginas, os depoimentos de todos os oficiais foram recolhidos com grande precisão pelo almirante Santos Silva, que depois elaborou um relatório exaustivo, distinguindo escrupulosamente os factos dados como certos, aqueles que podem ser dados como plausíveis e aqueles em que a variedade de versões obriga a uma grande reserva.

Apesar de serem antagónicas as versões do comandante e do imediato, ambos reconheceram a “integridade e verticalidade” do oficial averiguante (palavras de Caldeira dos Santos). Ao averiguante respeitado por ambas as partes, coube arbitrar de certo modo os pontos de vista divergentes. O seu relatório final foi a última palavra da Marinha como tal sobre o que se passou na “Gago Coutinho” e a ele irei referir-me seguidamente, como marco milenário para a apreciação dos acontecimentos sob o ponto de vista militar. 
A ordem de fogo sobre o Terreiro do Paço
Quanto à ordem de preparação para fazer fogo real sobre o Terreiro do Paço, é incontroverso que foi o comandante a inviabilizá-la, como atrás ficou dito; mas está menos esclarecida a contribuição de outros oficiais, se houve alguma, para o processo de decisão do comandante. O comandante não refere no seu depoimento nenhuma conversa prévia com qualquer dos oficiais.

O imediato, pelo contrário, declarou no Auto de Averiguações de 1976 que, logo no movimento inicial da fragata rumo ao Atlântico, ao passar diante do Terreiro do Paço, ele, imediato terá notado a presença de blindados na praça. Trata-se portanto de um momento anterior a qualquer ordem de fogo e mesmo anterior à ordem do Estado-Maior para o navio voltar atrás. Mais ninguém viu blindados nesse percurso inicial do navio, mas o imediato diz recordá-los e, desde 1976, diz ter comentado o facto com o comandante.

Mais tarde, no depoimento de 2014 à revista Visão-História, o imediato corrige a localização cronológica da alegada conversa com o comandante e passa a dizer que ela teve lugar quando o navio já tinha voltado atrás e depois de uma primeira ordem de fogo do Estado-Maior.

Dias depois, na entrevista à Antena 1, apresenta uma terceira versão dos acontecimentos e diz que aquele diálogo teve lugar quando a fragata passou em frente do Terreiro do Paço, já no movimento de voltar da ponte para trás, mas antes de qualquer ordem de fogo.

Em qualquer destas três versões do imediato, há algo que se mantém constante desde 1976: o conteúdo da conversa que teria ocorrido entre ambos, sem mais testemunhas, na asa de estibordo da ponte (!). Aí terá dito o imediato ao comandante que “a Marinha tem um compromisso de neutralidade activa com o Movimento” e que seria “uma grande bronca” se o navio disparasse.

Além da incongruência entre os vários depoimentos do imediato, custa especialmente a crer que a conversa pudesse ter lugar exactamente nos termos que passou a recordar de 1976 em diante.

Com efeito, perante a afirmação alegada pelo imediato é praticamente impossível que o comandante não lhe tivesse exigido um esclarecimento sobre quem entendia por “a Marinha” e quem entendia por “o Movimento”. Que “Marinha” era essa, diferente da que o comandante tinha a dar-lhe ordens na fonia, e que “Movimento” era esse?

A pergunta sobre o “Movimento” – inevitável a partir do instante em que este fosse mencionado – certamente não foi feita nem foi respondida. O comandante afirma que durante todo o dia 25 nunca ouviu ser pronunciada a bordo a sigla “MFA”. E o silêncio sepulcral de todos os oficiais depoentes sobre essa sigla dá crédito à sua versão.

No relatório do Auto de Averiguações, o almirante Santos Silva também estranha que o imediato fale num compromisso de neutralidade activa, “chegando a mencioná-lo como sendo da própria Marinha”. Mais acrescenta o relator que a resposta atribuída ao comandante sobre uma eventual ordem de fogo (“longe de mim tal ideia”) se coaduna mal com os esforços que o imediato diz ter envidado logo a seguir, no sentido de comprometer oficiais e alguns sargentos a desobedecerem no caso de uma ordem de fogo do comandante.

Segundo as palavras do almirante Santos Silva, se na verdade o imediato já nessa altura tivesse obtido do comandante uma resposta tranquilizadora, “não se compreende facilmente a sua preocupação em obter a adesão dos sargentos e pô-los perante uma ordem que curto-circuitava o comandante”. Salta portanto à vista a inconsistência lógica da versão exposta pelo imediato em 1976, e desde então repetida constantemente e glosada por ele sob muitas e variadas formas.

Mas essa inconsistência dissipa-se se recuarmos da memória convenientemente construída dois anos depois dos factos para aquela, ainda fresca, que, logo dois dias depois, foi ditada para os autos de um primeiro inquérito, do Comando Naval do Continente. Caldeira dos Santos disse então, preto no branco: “Não tive qualquer conversa com o comandante sobre o Movimento, seus chefes ou Programa, nem antes nem durante o dia 25, até ao momento da ‘ordem de abrir fogo [de] dois tiros para o ar com munições de exercício’”.

Aos tiros com munições de exercício voltaremos mais adiante. Para já, retenhamos a conclusão do relator desse primeiro inquérito, depois de ouvidos os depoimentos do imediato e do comandante, concordantes sobre este ponto: “O comandante parecia desconhecer a extensão do Movimento das F.A., seus chefes, seu Programa”. Categoricamente, logo nesse sábado 27 de Abril, conclui o relator que “pelo menos não houve conversas a este respeito com o seu imediato”. 

Quando muito, podemos admitir que tenha havido uma conversa entre ambos, que o comandante relata de forma diferente e situa em momento diferente, no seguimento das objecções que ele, comandante, já tinha levantado à ordem de preparação de fogo emanada do Estado-Maior. Aí lhe terá dito o imediato que podia contar com o apoio dos oficiais, caso surgissem problemas por o comandante ter manifestado ao Estado-Maior a impossibilidade de fazer fogo. Esta versão estaria aliás muito mais de acordo com o carácter bajulador de Caldeira dos Santos, tal como o recordao capitão-de-fragata Sérgio Ribeiro Zilhão, que anteriormente o tivera como oficial de artlharia num outro navio que comandava.

Mas, se a conversa se processou nos termos recordados pelo comandante Seixas Louçã, ela não podia influenciar a sua decisão de levantar objecções à ordem do Estado-Maior. Tratar-se-ia, com efeito de uma conversa posterior a essas objecções. Assim, a decisão do comandante de se opor à ordem de preparar para fazer fogo sobre o Terreiro do Paço foi dele, e só dele.
Uma reunião e três alternativas de comportamento
Houve, sem dúvida, ainda durante a manhã, entre as 8h30 e as 9h00, uma conversa entre o comandante e os oficiais, mas por iniciativa do comandante, na primeira de duas reuniões que o próprio comandante convocou para a câmara dos oficiais. Destinava-se essa reunião a discutir o que fazer caso o navio fosse atacado por forças hostis. A prever tal eventualidade, o comandante já tinha mandado fechar todas as escotilhas abaixo da linha de água. Mas vários declarantes parecem ter achado pouco provável o navio ser atacado.

Todos os oficiais depoentes recordam que o comandante traçou, para o cenário de um ataque, três possíveis comportamentos do navio, sendo dois deles o de responder ao fogo ou o de fugir (a expressão que ficou gravada na memória de vários oficiais foi: “como um cão, com o rabo entre as pernas”).

Quanto ao terceiro comportamento possível, vários oficiais recordam-no como sendo o de não dar qualquer resposta. Terá sido esta efectivamente a terceira alternativa colocada pelo comandante, sendo ela tão absurda que só se lhe pode atribuir um propósito retórico, ou seja, o propósito de obrigar os interlocutores a uma resposta negativa? Se se tratou de uma armadilha retórica, surpreende que vários oficiais tenham caído nela e se tenham pronunciado a favor de não dar qualquer resposta em caso de o navio ser atacado. Com essa aparente ingenuidade, suscitaram o espanto do almirante Santos Silva, que considera tal hipotética decisão “grave”.

Em coerência com esta versão, os mesmos oficiais julgam recordar, por vezes com reservas sobre a precisão da sua memória, que o comandante tenha manifestado preferência por abrir fogo em resposta a eventuais forças agressoras.

É justo observar que os declarantes não efabularam sobre uma aparência que sabiam ser enganadora: o comandante tinha mandado municiar cada grupo de peças com 4 granadas de exercício e com 10 granadas de alto explosivo. Essas ordens eram, segundo o almirante Santos Silva, “o mínimo que o comandante poderia fazer em cumprimento das ordens recebidas [do Estado-Maior]”.

Assim o entenderam também na altura os oficiais envolvidos na sua execução, que não levantaram quaisquer objecções conhecidas. O almirante observa que “as ordens que o comandante foi dando para a artilharia, não envolvendo execução de fogo, foram sendo cumpridas”; e o imediato admite ter sido ele a mandar colocar munições nos redutos das peças (embora sustente, desacompanhado nesse ponto por qualquer outro depoimento, que o comandante também as mandou carregar).

Por outro lado, o problema é complexo, porque o comandante não recorda, na sua versão, ter colocado a referida pergunta retórica. Para além de responder ao fogo hostil ou de pôr o navio em fuga, o comandante sustenta que a sua terceira alternativa era a de manter o navio em movimento acelerado – opção que na verdade vinha merecendo a sua preferência e iria ser posta em prática. O comandante argumenta aliás que a hipótese de fazer fogo contra alvos em terra continuaria a apresentar o risco de terríveis danos colaterais, que já antes tinha inspirado as suas objecções ao Estado-Maior e, mesmo em resposta a fogo hostil, continuaria a fazer perigar vidas humanas.

Ainda sobre esta reunião, é de salientar que o almirante Santos Silva, atento à hora em que ela ocorreu, insiste repetidamente na pergunta: terá sido aí dito algo ao comandante que o pusesse a par das conversas que o imediato vinha tendo entretanto com os outros oficiais sobre eventuais ordens de fogo? Nada foi dito. Em consequência, o almirante coloca directamente ao imediato Caldeira dos Santos uma outra pergunta: “Não teria sido uma boa oportunidade para informar o comandante quanto àquela decisão dos oficiais [a alegada recusa a quaisquer ordens de fogo]?”.

A isto apenas responde o imediato: “Passados dois anos dos acontecimentos é-me praticamente impossível responder a esta pergunta”. E, no entanto, a pergunta não se refere ao silêncio sobre o tema, que todos os depoimentos confirmam. Refere-se ao carácter e ao momento da reunião, que ainda hoje, 40 anos depois, se pode resumir com uma resposta afirmativa à pergunta: era uma boa oportunidade para falar e foi desperdiçada.
A ordem de fogo para o ar
Algum tempo depois da reunião com os oficiais, por volta das 11h00, o comandante recebeu nova ordem, desta vez do almirante Ferreira de Almeida, chefe do Estado Maior da Armada, no sentido de mandar disparar tiros de salva para o ar, “para marcar uma posição”. O comandante mandou municiar as peças com granadas de pólvora seca - não de salva, que não havia a bordo, mas de exercício.

Contudo, a partir daqui há duas versões. Numa, do imediato, houve uma “recusa” à ordem de fogo, assumida em nome dos restantes oficiais e manifestada frontalmente pelo próprio imediato. Essa “recusa” terá sido anunciada na ponte, em frente de várias testemunhas, por o comandante não ter acedido a uma solicitação do imediato para lhe falar em privado na asa da ponte de bombordo.

Na entrevista à Visão-História, o imediato sustenta que nesse momento o comandante o declarou exonerado. No artigo publicado em 2000, pelo contrário, o imediato sustenta que a intenção de exonerá-lo apenas lhe foi anunciada posteriormente, quando “se dirigiu para a ponte do navio a fim de informar o Comandante da comunicação ocorrida” por parte do Movimento, e a que voltaremos mais adiante.

As incongruências entre as várias versões do imediato não ficam, aliás, por aqui. Na entrevista de 2014 a Maria Flor Pedroso, recorda-se de ter falado ao comandante em nome da guarnição – portanto também de sargentos e praças -, para “recusar” abrir fogo. Mas, no Auto de Averiguações de 1976, ainda não se recordava de tudo isto e invocava falta de memória para precisar se também tinha falado em nome dos sargentos. Do mesmo modo, aí invocava também falta de memória para precisar se a “recusa” de fazer fogo se estendia igualmente à eventualidade de o navio ser atacado.

Na versão do comandante, este deu ao chefe do Serviço de Artilharia, tenente Dores de Sousa, uma ordem - não de execução, mas de preparação - para fazer fogo para o ar. Ainda segundo o comandante, aquele oficial, “em voz tímida”, manifestou discordância, trocou olhares com o imediato, mostrou-se relutante. O comandante perguntou-lhe então se tinha problemas nas peças. À resposta afirmativa, o comandante mandou-o ver que problemas eram, e dizer alguma coisa depois.

Mas o comandante previa que o Estado-Maior insistisse na ordem e disse aos oficiais presentes que percebera a relutância. Com efeito, ele - que teve a iniciativa de falar de “problemas nas peças” - sabia melhor do que ninguém como eram inventados esses “problemas”. Por isso, disse aos oficiais presentes na ponte que deviam pensar “dois minutos” sobre o que dizer perante eventual nova investida do Estado-Maior.

O comandante, na pergunta feita ao tenente Dores de Sousa, já lhe fornecia a resposta sobre os “problemas nas peças”, que o tenente se apressou a confirmar. Desse modo, com uma pergunta altamente sugestiva, o comandante obtivera do seu oficial especialista a resposta que necessitava para justificar perante o Estado-Maior que o navio não disparasse sequer para o ar. E assim fez em resposta a nova comunicação do Estado-Maior, por volta das 11h45, ganhando tempo.
Uma inesperada convergência
Por outro lado, é também interessante analisar os motivos pelos quais a generalidade dos oficiais justificará mais tarde a sua oposição aos tiros de exercício. Nenhum deles diz ter-se preocupado especialmente com a possibilidade, sempre remota, de os projécteis inertes caírem sobre pessoas ou navios: uma adequada movimentação da fragata podia reduzir esse risco praticamente a nada. E à preocupação com as “gerbes” – ou seja, os salpicos dos projécteis a caírem na água - ninguém se refere a não ser, recorrentemente, o imediato.

De qualquer modo, uma eventual ordem de execução nunca seria dada antes de a fragata se ter movimentado até uma posição de onde pudesse disparar sem os projécteis inertes caírem sobre alguma coisa ou alguém.

A verdadeira – e justificada – preocupação dos oficiais era que os disparos pudessem ser mal interpretados pelas forças do “Movimento”. Ao contrário do que sugere, neste ponto, o almirante Santos Silva, o disparo que se pretendia “dissuasor” podia ter um efeito provocador. Se as forças de terra não entendessem o tipo de fogo que era feito, poderiam disparar contra a fragata, pondo a rolar uma bola de neve de consequências imprevisíveis.

Curiosamente, os mesmos oficiais que na reunião da câmara sobre as “três hipóteses” tinham achado altamente improvável haver forças de terra a dispararem contra o navio, preocupavam-se agora com a eventualidade de o navio ser alvejado devido a uma acção de fogo para o ar. O comandante, que considerara a eventualidade de um ataque ao navio como suficientemente palpável para fazer dela o objecto da reunião na câmara, tinha motivos para acolher a preocupação agora manifestada pelos oficiais.

Para além de todas as dificuldades de diálogo, existia aqui um terreno de entendimento mútuo que acaba por explicar que a ordem de preparação para o fogo de exercício nunca tenha dado lugar a uma ordem de execução.

Existiu, na altura, uma cumplicidade tácita entre quem dava a ordem e quem diz tê-la “recusado”. O almirante Santos Silva muito judiciosamente valoriza o testemunho do tenente Palhinha, único oficial que a tudo assistiu por estar de quarto, e observa que este oficial “não se refere a uma recusa formal por parte do imediato e do chefe do Serviço de Artilharia, mas sim a uma discordância”. O tenente Varela Castelo utiliza a palavra “recusa”, mas admite que não houve quebra de disciplina “porque o comandante respondeu à recusa dos oficiais em abrir fogo com uma atitude aparentemente, pelo menos, conciliatória”.

A conclusão do relatório quanto ao carácter da ordem dada é a de considerar “aceitável a versão do comandante quando afirma que a ordem fora apenas de preparar para fogo”. Quanto ao restante, diz o relatório que “o comandante manteve o domínio da guarnição, mesmo depois de não ter sido dado seguimento à ordem de fogo para o ar – por uma recusa formal dos oficiais, segundo o imediato e alguns oficiais, ou por uma discordância evidenciada com certa timidez pelo chefe do Serviço de Artilharia, segundo o comandante, que teria torneado a situação admitindo a existência de problemas na artilharia e suspendendo, assim, automaticamente a ordem”. Mais considera o almirante Santos Silva que o comandante “soube evitar uma situação de confronto aberto com os oficiais, no que demonstrou sensatez e realismo”.
Quem “controlava” o navio?Entretanto, o imediato foi chamado à fonia, também pelas 11h45, para receber uma mensagem do “Movimento”. Na maioria dos relatos sobre a comunicação entre o imediato e o “Movimento”, esquece-se que havia uma outra pessoa presente, o sargento telegrafista Augusto Marques, então responsável pelo Centro de Comunicações (cabina TSF). Mesmo o escrupuloso Auto de Averiguações de 1976 ignorou este testemunhoessencial. Ele só em 1994 foi passado a escrito por Augusto Marques, a pedido do comandante.

Com esta ressalva prudencial, devemos registar que o sargento Augusto Marques recorda a pergunta do oficial do Movimento sobre a eventualidade de o navio abrir fogo e a forma como surgiu a resposta: “O imediato Caldeira dos Santos estava comigo na cabine e manifestava sinais de nervosismo evidentes, sem saber o que dizer ao oficial do Movimento. Estou consciente de que empurrei o imediato para uma resposta, caso contrário ele não se tinha decidido: ‘- Diga-lhe que o navio não fará fogo’ (...) O comandante Louçã nunca deixou de ter o comando do navio e eu não tive quaisquer dúvidas sobre a resposta que o imediato deveria dar ao oficial do Movimento: ‘-Diga-lhes que o navio não fará fogo’ E nunca esteve para fazer!”

Segundo afirmou o imediato na recente entrevista a Maria Flor Pedroso, ele terá dito então ao seu interlocutor no outro extremo da comunicação que “a situação a bordo estava controlada, o comandante tinha mandado abrir fogo de munições de exercício para o ar e que a guarnição se tinha recusado. Portanto, situação controlada”. Esta versão do que foi dito parece confirmada pelo interlocutor do outro lado da comunicação, Lourenço Gonçalves, também entrevistado por Maria Flor Pedroso.

No entanto, Gonçalves vai muito mais longe do que a “situação controlada” e a “recusa” do fogo de exercício. Ele fala em duas ordens contraditórias dadas por si próprio à fragata, como num menu de escolha múltipla: ou sai a barra com as peças em baixo ou fundeia. Logo aqui, não é nada crível que o “Movimento” intimasse a fragata a fazer uma coisa ou - se preferisse - o seu contrário. Depois, Gonçalves põe na boca do imediato as seguintes palavras: “Logo que [os oficiais] conseguissem convencer o comandante, iriam fundear”. A memória engana-o, portanto, sendo que a ordem transmitida pelo imediato foi a outra do tal menu, diametralmente oposta à de fundear.

Além disso, Lourenço Gonçalves divaga sobre alegadas ordens de fogo real do comandante, dadas várias vezes, e recusadas várias vezes, tomando como alvo as tropas. Retoma, enfim, a fábula de Nuno Rocha, num depoimento fantasioso, imprestável para qualquer efeito de reconstituição dos acontecimentos, do qual quase não se aproveita palavra alguma e que leva a encarar com reserva o crédito que noutro ponto empresta ao do imediato.

Podemos, mesmo assim, supor que o imediato tenha recordado fielmente na entrevista a Maria Flor Pedroso aquilo que, induzido por um sub-oficial mais resoluto, acabou por comunicar ao “Movimento”. Mas a suposição de que o imediato tenha descrito a situação a bordo nos termos citados não implica que a descrição reflectisse o que realmente se passava. Ele pode dizer agora a verdade do que disse ao Movimento, e na altura não ter dito ao Movimento a verdade do que se passava a bordo.

Já vimos que o relatório do almirante Santos Silva dá crédito à versão do comandante sobre o carácter que tinha a ordem de tiros para o ar (ordem de preparação e não de execução), e já vimos que o mesmo relatório, baseado especialmente na testemunha presencial ouvida para o Auto, tenente Palhinha, dá como problemática a versão da “recusa” da ordem. A esse relatório junta-se agora o depoimento do sargento Augusto Marques, que nos faz recuar ao ponto da alegada “recusa” e nos deixa sobre ela uma perplexidade adicional.

Segundo este depoimento, o imediato, em estado de abatimento e nervosismo, teve de receber instruções do sargento telegrafista sobre a resposta a dar ao “Movimento”. Poderia o mesmo imediato abatido e nervoso ter tido a força anímica para se plantar diante dum comandante de personalidade alegadamente intimidatória e para lhe declarar pomposamente a “recusa” da guarnição? Poderia o imediato, com essa aparência trémula e insegura, aspirar a “controlar” a situação a bordo? Teria ele os requisitos necessários para “curto-circuitar” o comandante, como diz o almirante Santos Silva, ou para exonerar o comandante como mais tarde, por meias palavras, confessou ter fantasiado?
Ordem do “Movimento” transmitida em chamada anónima
Passemos daí para a comunicação que o imediato fez ao comandante e que está descrita por este, tal como a sua memória a reteve:

“Imediato: Sr. Comandante, atendi uma comunicação na fonia, em que o comando do Movimento manda o navio baixar as peças e sair a barra, estando os fortes todos na posse do Movimento.
Comandante: Mas o que é o Movimento?
Imediato (Silêncio)
Comandante: Sabe quem enviou a mensagem?
Imediato: Foi um oficial da Marinha do Movimento.
Comandante: Identificou o oficial que lhe falou?
Imediato: Identifiquei, sim, sr. Comandante.
Comandante: Então quem foi?
Imediato: Pois, foi um oficial da Marinha do Movimento”

O único ponto problemático deste relato em discurso directo diz respeito à identificação do oficial do Movimento. Nas declarações que prestara ao Comando Naval do Continente em 27 de Abril de 1974, o comandante julgava recordar ainda uma confissão de ignorância do imediato sobre a identidade do interlocutor. Na reconstituição de 1976 que acabo de citar, o comandante sustenta que o imediato disse tê-lo identificado, embora aparentemente não quisesse dizer-lhe de quem se tratava.

No Auto de Averiguações e na entrevista a Maria Flor Pedroso, a versão do imediato coincide com a primeira versão do comandante: o imediato ter-lhe-ia confessado a sua ignorância sobre a identidade do interlocutor. Na entrevista, acrescenta que só agora (2014) veio a saber que do outro lado estava o então tenente Lourenço Gonçalves. Este, por seu lado, sabia que o interlocutor era Caldeira dos Santos (seu “amigo” dos tempos da Escola Naval, segundo palavras da entrevistadora). Mas pelos vistos nem a esse amigo quis dar-se a conhecer: Gonçalves era dos que atiram a pedra e escondem a mão.

A ocultação da identidade do mensageiro não deixa de dizer-nos alguma coisa sobre o grande circo mediático que foram as comemorações dos 40 anos do 25 de Abril: nelas, Lourenço Gonçalves foi promovido a herói da revolução sem invocar nenhum outro mérito nem nenhum outro desassombro que o de fazer uma chamada anónima!

Mas, voltando à plausível suposição de que o imediato efectivamente ignorava a identidade do seu interlocutor, passamos a encontrar-nos perante duas possibilidades: ou o comandante está enganado na reconstituição do diálogo datada de 1976, e o imediato lhe confessou na altura essa ignorância; ou o comandante recorda correctamente o diálogo e o imediato não quis admitir uma ignorância que – certamente o sabia de antemão - desacreditaria completamente a comunicação recebida.

Como poderia o comandante arriscar as vidas de toda a guarnição, fazendo navegar a fragata ao alcance de tiro dos fortes controlados por um “Movimento” desconhecido? Como poderia ele enfrentar o Estado-Maior para cumprir ordens transmitidas pela chamada anónima de um oficial que nem o imediato tinha identificado? A segunda hipótese é, evidentemente, a mais lógica: sobre este ponto, o imediato terá evitado confessar a sua ignorância sobre a identidade do interlocutor.
A exoneração do imediato e um buraco negro na narrativa
Seja como for, o comandante teve motivos para pensar que o imediato lhe ocultava informação essencial – e naquele momento ainda o comandante não sabia da missa a metade. Disse-lhe então que o exonerava, em linguagem que o imediato descreve como “imprópria de um oficial superior”.

A descrição sugere um vernáculo de marinheiro. Mas poucos dias depois do 25 de Abril, o imediato declarara na tal averiguação do Comando Naval do Continente feita “sobre o joelho” que os impropérios se reduziam ao seguinte: “Cale-se, não diga asneiras, você está pálido e com medo”. A versão do comandante no Auto de Averiguações de 1976 não difere muito e consiste no seguinte: “Você está amarelo e cheio de medo”.

As palavras ásperas, ditas diante de terceiros, tinham a atenuante da grande tensão nervosa vivida a bordo e sempre eram ditas cara a cara. Podemos perguntar-nos que palavras terá dito o imediato sobre o comandante, nas costas deste e nos conciliábulos que durante a manhã manteve com os oficiais. Compreensivelmente, no Auto de Averiguações, nenhum oficial menciona essas palavras.

Para nos aproximarmos de uma resposta à pergunta, temos apenas os violentos insultos contra o comandante que, com 26 anos de atraso, o imediato finalmente encontrou coragem para verter no papel. E temos as palavras citadas pelo capitão-de-fragata Sérgio Ribeiro Zilhão que, tendo encontrado Caldeira dos Santos depois do 25 de Abril, ouviu dele o motivo para a sonegação de informações que foi nesse dia a nota dominante do seu comportamento: “Odiava aquele gajo”.

Observemos aqui que a tensão em torno das ordens de tiro para o ar e a comunicação do Movimento devem ter ocorrido por esta ordem, mas muito próximas uma da outra. As incongruências que atrás assinalámos em depoimentos do imediato são até certo ponto compreensíveis. No Auto de Averiguações de 1976, também o comandante mostra, assumidamente, alguma hesitação sobre qual dos factos terá ocorrido primeiro.

Mas a intenção de exonerar o imediato com toda a certeza terá resultado do estranho papel que este desempenhou ao transmitir a ordem do Movimento. Se o imediato tivesse declarado uma “recusa” às ordens de fogo para o ar e o comandante o tivesse exonerado nesse momento, não faria qualquer sentido que o imediato viesse ainda, depois disso, transmitir-lhe uma ordem do movimento, com aparente confiança em encontrar receptividade.

Mas voltemos à exoneração. Segundo a lenda da “Gago Coutinho”, depois de exonerar o imediato o comandante terá abordado todos os oficiais, um por um, e todos se terão recusado a assumir o lugar deixado vago. Segundo o Auto de Averiguações, a realidade é bem diversa. O comandante abordou o tenente mais antigo, Varela Castelo, que efectivamente se escusou. Houve seguidamente uma segunda conversa no mesmo sentido com o tenente Palhinha, que não opôs ao comandante uma resolução de ordem pessoal, antes lhe fez notar que, provavelmente, “o pior já passou” e que “é preferível ficar tudo como estava”.

O comandante, que nesse momento desconhecia ainda a actividade conspirativa do imediato, pareceu dar-lhe razão. Deixou, portanto, “tudo como estava”.

Devemos deter-nos aqui por um momento a observar o que fez o imediato nesta circunstância. Os depoimentos dos declarantes no Auto de Averiguações praticamente não guardaram qualquer registo de acções ou palavras do imediato entre esse momento e uma segunda reunião convocada pelo comandante. Nas duas horas e meia que se seguem, deixamos de ter notícias dele, dos seus ditos e feitos.

Só o imediato sabe como ocupou esse tempo e nós teremos, aqui, de contentar-nos com a sua versão. Mas também essa versão é parca em detalhes: segundo declarou logo no inquérito de 1974, “o oficial imediato seguiu de livre vontade para a câmara dos oficiais, por indecisão se havia ou não sido exonerado”. Adiante voltaremos ao significado deste buraco negro na narrativa.
Reunião com o navio fundeado
Às 14h15, com o navio fundeado no Mar da Palha, o comandante voltou a convocar uma reunião na câmara dos oficiais. Era portanto a segunda vez no lapso de seis horas que o comandante “autoritário e desumano” reunia a dezena de oficiais da guarnição e tratava de ouvi-los, do mais moderno para o mais antigo como é habitual, de modo a encorajar os mais jovens, para que pudessem manifestar-se com o mínimo de condicionamentos.

As interpretações sobre o sentido da reunião divergem, havendo entre os oficiais uma opinião bastante difundida de que ela revestia um significado recriminatório, sobre factos já ocorridos; e sustentando o comandante que se tratava de uma reunião com sentido prospectivo, destinada a preparar o navio para as horas seguintes, que ainda podiam ser difíceis.

Segundo o relatório do Auto de Averiguações, as versões contraditórias sobre o teor da reunião autorizam, mesmo assim, a conclusão de que o comandante “não perdeu a primeira oportunidade – o navio fundeara, por fim - para reunir-se com os oficiais a definir posições, não se demitindo das responsabilidades que continuava a ter, não só em face dos acontecimentos passados, mas principalmente perante o futuro que para ele continuava a constituir uma incógnita”.

Para além das formulações mais ou menos felizes utilizadas e dos equívocos criados, têm lógica vários argumentos do comandante. Por um lado, seria absurdo chamar todos os oficiais à câmara e confrontá-los, todos juntos, com a acusação de “insubordinação”. Se o comandante quisesse lançar contra alguém essa acusação, não iria certamente fazê-lo sob a forma de uma recriminação colectiva, metendo no mesmo saco oficiais que tinham manifestado “discordância” e “relutância” e outros que até aí nada lhe tinham dito.

Convocar a reunião só fazia sentido para obter garantias sobre a coesão da guarnição perante a incerteza das horas seguintes. Nesse quadro, só teria lógica o comandante dizer o que o seu depoimento reteve – pelos vistos sem ter passado a mensagem pretendida.

Segundo o seu depoimento, o comandante disse na reunião que, caso o navio voltasse a receber ordens de fogo, todos e cada um dos oficiais deviam pensar se iriam recusá-las, mesmo correndo o risco de essa recusa ser considerada como insubordinação. E assumiu que a não execução das ordens de preparação para o fogo pesado e de preparação para o fogo de exercício tinha sido da sua única e exclusiva responsabilidade. Ou seja: não houvera até aí qualquer insubordinação a bordo.

Quem ignorara a ordem do Estado-Maior para fundear, quem alegara perante o Estado-Maior objecções à ordem de fogo pesado e quem dera a cara para invocar perante o mesmo Estado-Maior dificuldades pouco convincentes na ordem de fogo para o ar - fora sempre o próprio comandante. Se a revolução falhasse, como a bordo ainda se admitia nesse momento, era a ele, antes de mais ninguém, que o Estado-Maior pediria contas. 

(prossegue na Parte II)


O veredicto da Marinha sobre a fragata “Gago Coutinho” relido em 2014 (II)


Política


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Analisados numa primeira parte deste artigo os factos relativos ao papel da fragata "Gago Coutinho" no 25 de Abril de 1974, passa-se aqui à análise dos dilemas que se colocaram especialmente ao comandante e ao imediato daquele navio, tanto nos meses anteriores ao levantamento militar, como nas horas decisivas que transcorreram entre as 7h da manhã e as 2h da tarde.

(Continuação da Parte I)

O comportamento do comandante ao longo do dia 25 de Abril tem de ser visto sobre o pano de fundo da sua própria história de vida e da situação política em que o país se encontrava nesse momento. A sua biografia estava cheia de tomadas de posição públicas e de compromissos conspirativos contra o fascismo, que um testemunho directo do almirante Ferraz de Carvalho no mesmo Auto de Averiguações faz remontar a 1947.
Biografia anti-salazarista do comandanteA mesma atitude manteve ininterruptamente ao longo dos anos 50 e 60 como testemunhou o Prof. António Avelãs Nunes, em carta ao autor destas linhas. Avelãs Nunes, que foi secretário de Estado em todos os Governos Provisórios com excepção do VI, e que foi mais tarde vice-reitor da Universidade de Coimbra, entrara na Escola Naval para prestar o serviço militar na Marinha, com mais dois companheiros, tal como ele rotulados de subversivos pela PIDE.

A informação policial levaria noutras circunstâncias a que fossem enviados para Penamacor, para fazerem a recruta como soldados rasos numa companhia disciplinar. Mas nesse biénio de 1963-1964 calhou-lhes Seixas Louçã como director de Instrução. Segundo Avelãs Nunes, “perante as intervenções do director de Instrução e dos professores, o director da Escola terá concluído que estava devidamente esclarecido e que o assunto estava encerrado”.

Depois disso, Seixas Louçã chamou ainda os três visados alertando-os para a vigilância que a PIDE certamente continuaria a exercer sobre eles. Avelãs Nunes comenta ainda: “Até hoje, estou-lhe grato por este gesto, que revela um empenhamento político democrático e a solidariedade militante com os perseguidos pela PIDE”. E sublinha que esta experiência confirmava “a posição política dele, de que toda a gente falava na Escola Naval no tempo em que eu a frequentei”.

Para os anos seguintes, e também para o início dos anos 70, continuam a acumular-se testemunhos no mesmo sentido. A última comissão de serviço de Seixas Louçã antes do comando da “Gago Coutinho” fora na guerra colonial como chefe do Estado Maior da Defesa Marítima da Guiné.

Em carta enviada ao semanário “O Jornal”, Francisco Oliveira Baptista, então oficial da Reserva Naval, recorda como chegara à colónia em 1971 com informação desfavorável da PIDE e como logo o comandante da Reserva Marítima o intimara a andar na linha. E recorda que também o comandante Louçã o chamou: “Mas para afirmar o seu desprezo pela polícia política e por tudo quanto dela emanava e para me oferecer o seu apoio em eventuais dificuldades causadas pela tal ‘informação’”.

Francisco Baptista recorda ainda a “discordância do comandante Louçã com a política do general Spínola como governador da Guiné e, nomeadamente, a condenação frontal que fez da invasão de Conackry”.

Francisco Baptista comenta depois que “atitudes destas não eram, como todos sabemos, muito vulgares nas Forças Armadas e, muito menos, partindo de oficiais superiores”. Por isso mesmo manifesta a sua perplexidade sobre a narrativa corrente sobre a fragata”Gago Coutinho” em 25 de Abril: “Ignoro as razões que levaram o imediato e outros oficiais a marginalizarem o comandante Louçã do conhecimento do movimento que estava a acontecer, mas certamente que não incluem nelas o desconhecimento da idoneidade política e moral daquele oficial”.

No mesmo sentido, José Manuel Correia Pinto, em depoimentoespontaneamente enviado ao on-line da RTP, recorda a sua comissão como oficial da Reserva Naval na Guiné e as “boas recordações” que guarda de Seixas Louçã, então chefe do Estado Maior do Comando da Defesa Marítima.

E exemplifica: “Lembro-me de se falar com toda liberdade sobre a questão colonial. Cheguei a facultar-lhe fotócópias de uma reportagem de Ziegler na Guiné, publicada no Nouvel Observateur, que desmentia a propaganda das autoridades coloniais sobre a situação militar na ‘província’”.

O significado do episódio é relevante, diz-nos, porque “naquela altura não seriam certamente muitos os subordinados que teriam a ousadia de entregar ao chefe de Estado-Maior artigos desmentindo a versão das autoridades coloniais. Essa ousadia só foi, porém, possível, porque o comandante Louçã inspirava essa confiança”.

Enfim, o comandante Costa Correia, oficial com um papel decisivo para a única intervenção operacional da Marinha no 25 de Abril (a tomada da PIDE), prestou igualmente um depoimento em 1978, em que considera Seixas Louçã “um comandante excepcional”. Aí recorda que Seixas Louçã foi na Guiné, em 1970, “o único oficial, de entre os da Armada que lá se encontravam, que manifestou a sua simpatia e o seu apoio, implícito, às posições discordantes do carácter ético – e mesmo político – da operação ‘Mar Verde’ [invasão de Conackry] apresentadas aos canais de comando pelo capitão-de-fragata Costa Correia”.

O almirante Santos Silva, por sua vez, observa no relatório do Auto de Averiguações: “Se, sob o aspecto político, seria o comandante de entre todos os oficiais aquele que mais facilmente se poderia identificar com os objectivos do ‘Movimento’ pelas provas e riscos que dera e assumira no passado (...), faltava-lhe porém informação sobre tais objectivos e não era pessoa para, levianamente, tomar uma opção de tanta gravidade”.

Com efeito, um motivo essencial para lhe faltar informação foi o secretismo mantido pelo imediato nos meses anteriores ao 25 de Abril e mesmo ao longo desse dia. No artigo publicado em 2000, Caldeira dos Santos admite: “Tínhamos conhecimento da imagem anti-situacionista do comandante”. Seguidamente explica a sonegação de informações a esse comandante “anti-situacionista” com o seu alegado “comportamento autoritário e desumano” e com “a forma ambígua como analisava alguns acontecimentos de carácter político”.

Mas na entrevista de 2014 à Visão-História já nega qualquer “conhecimento da imagem anti-situacionista do comandante” e passa a afirmar: “Vim depois a saber que tinha sido antifascista, mas nunca nos apercebemos disso”. Ou seja: o “tínhamos conhecimento” transforma-se em “vim depois a saber”. Na verdade, uma versão muito mais conveniente, mas nem por isso mais verosímil.

Sobre a inverosimilhança de ambas as contraditórias versões do imediato, impõe-se mais uma vez citar Avelãs Nunes: “A verdade é que eu sempre ouvi dizer, na Marinha, nos idos de 1963-1966, que o comandante Louçã não era apenas um liberal antifascista, era um homem de esquerda (...). Como é que um oficial de Marinha (uma arma com uma vida interna muito intensa, com a ‘intimidade’ própria dos navios e com locais de encontro e de convívio como o Clube Militar Naval), que ainda por cima era Imediato do Comandante Louçã, não tinha uma informação correta sobre a posição política dele, de que toda a gente falava na Escola Naval no tempo em que eu a frequentei?”
Decisões tomadas às escuras
Na falta de informação, o comandante tinha de fazer conjecturas com o que sabia da situação política e com o que ia observando durante o dia. Sabia que fora derrotada a “Revolta das Caldas” e desse facto deduzira prematuramente, como posso testemunhar por conversa que tivemos poucas semanas antes do 25 de Abril, que a possibilidade de um movimento democrático ficara adiada para futuro incerto. Constatava que Spínola sobrevivera à revolta abortada e continuava presente na cena política. Mas, pelo percurso do general e pela experiência recente que tivera com ele na Guiné, não via em Spínola fiador idóneo para as credenciais democráticas de algum novo movimento.

Pelo contrário, ouvia os rumores sobre uma conspiração dos “ultras”, nomeadamente associados ao nome do general Kaúlza de Arriaga. É um facto, neste ponto acertadamente sublinhado pelo imediato, que os camaradas do comandante em conspirações anteriores nada lhe tinham dito sobre esta. Ao observar, em terra, um “Movimento” desconhecido, de quem nada sabia, o comandante tinha motivos para recear, também por exclusão de partes, que unidades kaúlzistas tivessem saído para a rua, seguindo o modelo de Pinochet sete meses antes.

Ao observar a bordo a atitude ambígua do imediato, o comandante não encontrava nela garantias sobre a natureza do movimento. Voltando a admitir a problemática versão do imediato, que pretende ter falado ao comandante, logo pelas 7h30, sobre o compromisso “da Marinha” para com “o Movimento”, persiste um problema: esse continuava a ser para o comandante um “Movimento” sem rosto e sem programa. A hipótese de o imediato ter revelado ao comandante, nesse momento, uma ligação de tipo não especificado entre ele próprio e o “Movimento” continuava a não dizer coisa alguma sobre a natureza do mesmo.

É que o comandante, apesar das referências elogiosas que fazia ao imediato em informações de serviço, sofrera nos últimos tempos uma profunda decepção por ver o imediato a apostar a sua carreira futura em diligências para ser admitido como ajudante de campo do general Joaquim da Luz Cunha, chefe de Estado Maior das Forças Armadas. Convém lembrar que o general Luz Cunha tinha já então afinidades conhecidas com Kaúlza de Arriaga, que nos anos seguintes se mantiveram, públicas e notórias.

A história posterior mostrou que teria sido errado partir destes factos para fazer uma amálgama entre a posição política do imediato e a do kaúlzismo. Mas o comandante, habituado a encarar as ambiguidades e os jogos duplos com severidade porventura excessiva, não estaria inclinado a apreciar o lado dinâmico, criador e “democrático” desta incoerência que consiste em colocar os ovos em vários cestos, e também um no cesto da revolução.

Sem elementos para simpatizar com o “Movimento”, e até com alguns para recear que ele pudesse ser de sinal diametralmente oposto ao desejado, o comandante optou por tomar todas as suas decisões em função da segurança do navio e da sua guarnição. Nesse sentido, ignorou uma ordem do Estado-Maior para fundear e, pelo contrário, optou por manter o navio em movimentação invulgarmente rápida. Depois, levantou objecções a uma outra ordem, para preparar fogo real. Finalmente, afectou cumprir uma terceira ordem, para preparar fogo de salva (mas rapidamente encontrando argumentos dilatórios que acabaram por levar à suspensão desta).

Procedeu, nesse sentido, de forma semelhante à de Salgueiro Maia, quando este foi confrontado com uma ordem para reprimir a Revolta das Caldas. O futuro capitão de Abril não podia, em 16 de Março, recusar a ordem em nome de um movimento a que era alheio e que considerava prematuro. Optou então por fazer com que o percurso facilmente realizável em duas horas fosse feito em seis, com diferentes pretextos técnicos, que relatou em entrevista a Maria Manuela Cruzeiro.

Salgueiro Maia nunca se colocou em bicos de pés para passar por herói da Revolta das Caldas. O comandante Seixas Louçã não se colocou em bicos de pés para passar por herói da fragata “Gago Coutinho”, porque, entre a informação que lhe faltou a ele e o “ânimo” que, segundo o relatório, faltou ao imediato, não houve nesse dia, nessa fragata, qualquer herói. Como diz João Louçã, em comentário publicado no site da RTP: “Por vezes na história não há nem heróis nem vilões, só pessoas no seu emaranhado de contradições”.
O falhanço de Vítor Crespo
Segundo o artigo já citado de Caldeira dos Santos, ele próprio, “o 1º tenente Almeida Moura e o 1º sargento ACM Edgar Conhago estavam inseridos no movimento desde Outubro de 73. Muitas vezes saímos do navio e uma hora depois regressávamos a bordo reunindo no meu camarote”. Esta actividade conspirativa durou, portanto, cerca de sete a oito meses.

A primeira pergunta óbvia diz respeito aos motivos dos conspiradores para não tentarem ganhar o comandante para o movimento, durante esses meses em que o imediato diariamente lidava com ele e até chegou uma vez a ser sua visita de casa. Como a justificar-se da omissão, diz o imediato no referido artigo há 14 anos: “É estranho que até os próprios camaradas da sua idade e ligados ao Movimento também nada lhe tenham dito”. Na verdade, é estranho.

E a estranheza foi manifestada em tempo útil pelo comandante Costa Correia, conforme relata em cartamuito posterior, lembrando que numa reunião de Março de 1974 no Clube Militar Naval dissera “sentir que não estava a haver um maior contacto com diversos dos quadros superiores da Marinha”. E observa em seguida que “infelizmente esse motivo levou à falta de comunicação e troca de ideias que houve na fragata durante os dias que antecederam o 25 de Abril”. Não era, fundamentalmente, um problema de idades: Costa Correia tem idade muito próxima do imediato e entendeu que estava a ser cometida uma omissão de graves consequências.

Quanto aos “camaradas da sua idade [do comandante]”, eram poucos no Movimento, mas dois deles tiveram a hombridade de se explicarem publicamente pela omissão. Rosa Coutinho considerou que devia ao comandante Louçã uma explicação e deu-lha, pessoalmente e por escrito, numa carta que é um notável documento humano.

Aí explica que foi convidado por Vítor Crespo para participar no Movimento, com um pedido de rigoroso segredo. Rosa Coutinho não podia, portanto, saber - nem devia perguntar -, se alguém entretanto contactara o seu amigo pessoal Seixas Louçã. Devia presumir que sim, e portanto não tinha de abordá-lo sobre um assunto que, conforme relata, não partilhou nem com a sua mulher. E, enfim, Rosa Coutinho só de véspera veio a conhecer a data marcada para o levantamento.

O contacto com o comandante da “Gago Coutinho” devia ser feito por Vítor Crespo, destacado militar de Abril e, principalmente, de Novembro. Mas Crespo, apesar da idade, era, em matéria de experiência revolucionária, um novato. Não aprendera em anteriores conspirações - as dos outros - o mais elementar “quem é quem”.

Falou com Rosa Coutinho, cujo navio se encontrava no estaleiro em reparações, mas não falou com o comandante do único navio importante que estava operacional. O capitão de mar-e-guerra Fernando Miranda Gomes considerou as explicações dadas por Vítor Crespo para o secretismo mantido perante o comandante da “Gago Coutinho” como uma “desculpa, inventada muitos anos depois, para justificar a sua negligência”. E, com efeito, Vítor Crespo falhou na tarefa mais importante que lhe cabia no 25 de Abril.

Um outro “camarada da sua [do comandante] idade” foi o coronel Fisher Lopes Pires, que ao contrário de Rosa Coutinho não tinha qualquer cumplicidade anterior com o comandante Louçã e por isso começou por conceder crédito a, e fazer coro com, a versão corrente que o dava como contra-revolucionário.

Tanto mais significativo se torna que aquele antigo membro do Conselho da Revolução, debruçando-se finalmente sobre o dossier da fragata “Gago Coutinho”, tenha publicado um artigo na revista da Associação 25 de Abril afirmando: “Pessoalmente não posso nem quero deixar de apresentar as minhas sinceras desculpas ao comandante Louçã pelas declarações incorrectas e acusatórias que fiz no Canal 1. Afinal, e ao contrário do que supus durante tantos anos, não fomos adversários mas estivemos ambos do mesmo lado da barricada.”
A “falta de ânimo” do imediato para falar ao comandante
É certo que cada revolução volta a pôr à prova os conjurados das anteriores e que os riscos ou sacrifícios passados não são garantia de bom discernimento presente. Diz o imediato numa das suas versões que, embora conhecesse a “imagem anti-situacionista” do comandante, preferiu nada lhe dizer sobre o movimento, nomeadamente por considerar “autoritário e desumano” o seu comportamento a bordo.

As pessoas mudam e o comandante poderia ter mudado, mesmo eventualmente num curtíssimo espaço de tempo como aquele que decorreu entre as suas tomadas de posição críticas, recordadas por oficiais dos tempos da Guiné, e a sua função de comando em 1974. E também é possível que o comandante não tenha mudado assim tanto e que tenha sido o imediato a ajuizar erradamente sobre o seu carácter.

Seja como for, se o considerava potencialmente hostil ao movimento, o imediato nada devia dizer-lhe nos meses que antecederam o levantamento. Mesmo que estivesse enganado nessa convicção e cometesse uma injustiça, teria nesse caso de colocar o compromisso conspirativo acima da lealdade para com o comandante. Partiria, talvez, de uma premissa errada, mas ainda assim actuaria com um método obrigatório nas circunstâncias, como deve actuar-se quando se alimenta uma tal convicção. E foi assim que procederam vários capitães de Abril quando entenderam que os seus respectivos comandantes não lhes mereciam confiança.

Mas há uma diferença essencial: no instante em que o movimento saiu para a rua, os mesmos capitães de Abril confrontaram os seus comandantes e colocaram-nos perante o dilema de aderirem ou serem presos.

Delgado Fonseca, por exemplo, confrontou o seu comandante e obteve a adesão deste. Salgueiro Maia, que não tinha o comandante no quartel, confrontou o segundo comandante e, após receber resposta negativa, colocou-o sob prisão. Andrade da Silva (que erra em referências feitas à fragata) prendeu comandante e segundo comandante, de arma em punho. Diniz de Almeida prendeu o seu comandante na ponta da espingarda. Monteiro Valente prendeu dois, comandante e segundo comandante, de pistola em punho e com um tiro de aviso. E a lista de exemplos poderia ser alargada.

Pouco importa se os quadros da Marinha aderentes ao movimento chamavam ao seu compromisso de “neutralidade activa” ou se lhe chamavam outro nome. A “neutralidade”, mais ou menos activa, se era palavra de ordem do movimento, devia ser assumida como tal e não podia servir de pretexto a nenhum tipo de camaleonismo. No momento em que os dados estavam lançados, subentendia-se que os membros do movimento tinham o dever revolucionário de confrontar os seus comandantes e de tomar o “controlo”, como Caldeira dos Santos a certa altura se vangloriou de ter feito.

Claro que essa opção era pior que a de obterem previamente a adesão dos comandantes. Mas nos casos em que a primeira escolha não fosse viável, ou em que erradamente se tivesse desperdiçado essa possibilidade, era impossível continuar a jogar às escondidas, com um ovo em cada cesto, depois de a revolução já estar na rua.

O almirante Santos Silva, depois de ouvir todos os depoentes, lamenta que não tenha havido qualquer explicação entre imediato e comandante – nisto ignorando mesmo a versão do imediato sobre a alegada conversa que teria tido com o comandante por volta das 7h30. E lamenta “que tal tivesse acontecido por culpa de ambos – do imediato por ter desperdiçado outras oportunidades mais favoráveis e do comandante por não ter atribuído importância ao desejo do imediato em falar-lhe”. Isso, diz a certa altura, podia estar relacionado com a personalidade do comandante, em que “talvez exista uma certa rudeza na forma franca como expõe as suas ideias”, e talvez intimide “personalidades com pendor de submissão”.

Justificando ainda as dificuldades do imediato para se fazer ouvir, acrescenta que a consciência do imediato sobre a gravidade da opção tomada, bem como “a tensão a que estava sujeito e a personalidade do comandante, que talvez o intimidasse (...), poderão explicar os sucessivos adiamentos que foi dando à transmissão da informação que lhe caberia fazer ao comandante sobre a decisão dos oficiais”. No conjunto, considera claro que “lhe faltou [ao imediato] o ânimo para levar o comandante a ouvi-lo nas duas vezes que o tentou”. Refere ainda “os sucessivos adiamentos que o imediato foi concedendo à informação que sabia dever dar ao comandante e a falta de firmeza para levar o comandante a ouvi-lo”.
O dilema: ganhar o comandante ou prendê-lo
Ora, Caldeira dos Santos tem consciência de que a sua obrigação nesse dia era não somente informar o comandante, como também confrontá-lo com o dilema de aderir ou ser preso. Para assumir o papel de “herói revolucionário”, devia estar disposto a ir até às últimas consequências, nomeadamente a de prender o comandante. E coloca-se a questão: por que não o fez?

Se a situação fosse como o imediato a descreveu, estariam reunidas todas as condições que tornavam imperioso e inadiável prender o comandante. Segundo Caldeira dos Santos, o comandante ter-se-ia tornado, a partir de certa altura, um perigo para a revolução. Recusara as ordens que o movimento lhe transmitira - em chamada anónima, é certo, mas fidedigna para os critérios do imediato.

Mais do que os comandantes das unidades de Andrade da Silva, de Salgueiro Maia, de Dinis de Almeida, de Monteiro Valente, o comandante da “Gago Coutinho” tinha, segundo o imediato, o dedo no gatilho e podia em qualquer momento mandar fazer fogo. E, como o imediato dizia ter o “controlo” da guarnição, não se entende por que não prendeu um comandante tão empedernidamente contra-revolucionário.

Especialmente, não se entende essa omissão no momento em que o comandante manifestou a sua intenção de exonerar o imediato. Nesse momento, Caldeira dos Santos já deixara de ter apenas uma vaga indicação sobre a “neutralidade activa” esperada do navio, e recebera uma ordem clara do “Movimento” no sentido de conseguir que o navio saísse para o mar. O imediato considerava a ordem, apesar de tudo, credível; e o comandante recusara categoricamente essa ordem. Era, para o imediato, o momento de sublevar a guarnição e de prender o comandante.

Mas, como vimos atrás, Caldeira dos Santos optou, “de livre vontade”, por recolher à câmara e desaparecer do mapa nas duas horas e meia seguintes. No momento decisivo, o “herói revolucionário” saía de fininho, pela esquerda baixa. Durante um lapso de tempo crucial, finalmente com uma clara consigna do Movimento por cumprir, Caldeira dos Santos esteve desaparecido em combate. Não desapareceu por ser ferido, manietado, preso, entregue à guarda de uma escolta: desapareceu, segundo a sua própria expressão, “de livre vontade”.

Eram, afinal, proféticas as palavras do comandante quando, ao princípio da manhã e noutro contexto, alertara os oficiais reunidos contra a tentação de meterem “o rabo entre as pernas”.

O argumento com que o imediato procura dissimular a sua prostração, no já citado artigo de há 14 anos, não convence: “A estirpe dos oficiais da guarnição da ‘Gago Coutinho’, (…) permitiu não só não prenderem o Comandante do navio, o que não seria difícil dado o facto da guarnição de sargentos e praças, na sua esmagadora maioria estarem [sic] ao lado dos oficiais, mas também se predispuseram [re-sic] a continuar a obedecer às ordens do Comandante, reiterando apenas a desobediência às ordens de fogo”.

Ou seja: os oficiais tinham, alegadamente, os motivos e os meios para prenderem o comandante, mas só a sua “estirpe” (?) os impediu de cumprirem esse dever revolucionário elementar.
Não houve insubordinação na “Gago Coutinho”
De tudo o que ficou dito anteriormente deduz-se que os oficiais não tinham motivos para prender o comandante ou para ver nele um inimigo da revolução. Vejamos agora se o imediato tinha os meios para fazer prender o comandante. Caldeira dos Santos sustenta que a sua actividade fora bem sucedida em aliciar os oficiais, os sargentos e, presumivelmente, as praças. Sustenta também que dessa actividade resultou a alegada recusa às ordens posteriores do comandante, relativas a tiros de pólvora seca. E sustenta ainda, como vimos, “o facto da guarnição de sargentos e praças, na sua esmagadora maioria estarem ao lado dos oficiais”.

Pelo teor dos depoimentos prestados, há-de reconhecer-se que existia um amplo consenso entre os oficiais contra a execução de eventuais ordens de fogo. Mas convém observar que não se trata aqui da adesão dos oficiais a um nebuloso “Movimento”, ou a um compromisso de “neutralidade activa” que nenhum desses oficiais menciona e portanto nenhum deve ter conhecido. Como conclui o almirante Santos Silva no relatório citado, “nenhum dos oficiais cita o compromisso a que se referiu o imediato”.

A informação essencial que o imediato ocultou ao comandante sobre o movimento, a pretexto do feitio “autoritário” deste, ocultou-a também aos seus camaradas mais próximos, nos meses antes e nas horas dramáticas do 25 de Abril.

A este respeito é especialmente revelador o depoimento do tenente Domingos da Silva Neves, chefe do Centro de Informações de Combate. A uma pergunta do imediato sobre o que pensava de eventuais ordens de fogo real, respondeu com outra pergunta: “Porquê e contra quem?” Como o imediato não soube – ou não quis – responder a esta pergunta óbvia, Silva Neves, recorda que, “perante tantas dúvidas sobre o que se passava, dadas as diversas versões que já corriam a bordo sobre quem seriam as forças contrárias, e perante as notícias que por vezes me eram transmitidas pelas praças que as ouviam no rádio e até pelo que tinha observado em terra no que respeita aos inúmeros civis que aí se encontravam, fui de opinião que não se devia abrir fogo”.

Notemos, portanto, que mais uma vez, e agora a um camarada muito próximo, o imediato escondeu “quem seriam as forças contrárias”. A posição que recolheu de Silva Neves sobre a eventualidade de uma ordem de fogo real foi exactamente a mesma do comandante, e com os mesmos exactos fundamentos que este tinha oposto à primeira ordem do Estado-Maior.

O consenso entre os oficiais foi de natureza, por assim dizer, “humanitária”, de não pôr em perigo vidas, especialmente de civis. Se esse consenso os colocava em potencial rota de colisão com o comandante, era porque a maioria acreditava sinceramente, por ouvir dizer, que o comandante poderia dar ordens de fogo. Entre resistirem a uma suposta ordem de fogo e apoiarem uma ordem de prisão contra o comandante iria uma notável distância. Quando o imediato dá essa distância por vencida, está a contar com os oficiais para algo que estes em depoimento algum se mostraram dispostos a fazer.
Guarnição ao lado do comandante
Quanto aos sargentos e praças, não foram ouvidos no Auto de Averiguações de 1976, embora o comandante aí tenha chamado a atenção para essa lacuna e manifestado o desejo de que ela fosse preenchida. O imediato apenas menciona dois sargentos – o sargento Edgar e o sargento Agapito. O sargento Edgar Conhago tinha prestado um depoimento para o primeiro inquérito, realizado logo nos dias seguintes ao 25 de Abril de 1974.

Desse inquérito disse o almirante Rosa Coutinho que era feito “sobre o joelho” e das declarações deste sargento disse o almirante Santos Silva serem “um tanto dúbias – aliás prestadas voluntariamente por intervenção do oficial imediato“. Curiosamente, à pergunta 26ª, sobre o que supunha da atitude dos sargentos perante uma ordem de fogo para o ar, ao imediato só ocorre responder: “Mediante conversa que tive com o sargento mais antigo, Edgar, julgo poder concluir que os sargentos não fariam qualquer tipo de fogo”.

A extrapolação a partir da atitude de Edgar Conhago é no mínimo precipitada, quando a partir dela se infere a atitude de todos os sargentos. A extrapolação levada a cabo pelo imediato não é, em todo o caso, confirmada pelos depoimentos do sargento sinaleiro Boaventura Barros das Neves e do cabo sinaleiro Freitas Alves, prestados em 1978 ao Conselho Superior de Disciplina da Armada. O cabo Freitas Alves foi uma das poucas pessoas presentes na ponte ao longo do 25 de Abril. Ambos, tanto ele como o sargento Boaventura, disseram ter-se apercebido da tensão no ambiente geral, mas não de desobediência ou recusa de ordens.

No seu depoimento, o cabo Freitas Alves diz ter ficado “com tão gratas recordações [do comandante Louçã] que se fosse possível seria voluntário para voltar a servir com ele”. Por seu lado, o sargento Boaventura, em cartão enviado ao comandante em 1976, considerava-o um “grande amigo e sincero por quem hoje ainda sinto orgulho de ter sido meu comandante”.

Especialmente importante é o depoimento do sargento Augusto Marques – aquele que instruiu o imediato sobre a resposta a dar ao “Movimento” -, quando afirma não se recordar de qualquer “reunião do imediato com os sargentos que não estavam de quarto”. A certeza que Augusto Marques transmitiu ao imediato sobre o comportamento pacífico do navio resultava, diz ele também, de conhecer bem o comandante e de saber “que ele não simpatizava com o regime e sobretudo que nunca faria fogo sobre o Terreiro do Paço onde se avistavam muitos civis confundidos com os militares do exército”.

Em tudo o mais, a declaração do sargento telegrafista é muito favorável ao comandante e apresenta do imediato uma imagem de indecisão e nervosismo que deita por terra o alegado consenso dos sargentos. 

Com mais forte razão se deve questionar a versão do imediato sobre uma unanimidade da guarnição envolvendo também as praças. Segundo o imediato declara no seu depoimento, essa versão merece crédito, “na medida em que não houve qualquer atitude de quaisquer elementos da guarnição que condenasse a atitude dos oficiais”.

O almirante Santos Silva nota no relatório que o argumento de cala-consente tem “pouca consistência” e ironiza que ele parece assentar na suposição de que a atitude dos oficiais “devesse ou pudesse ser plebiscitada”. De qualquer modo, não consta que tenha sido chamada a plebiscito a maioria de praças especulada pelo imediato, com este take someone for granted que é característico duma “estirpe” aristocrática.

O único marinheiro de quem o imediato reteve o nome no seu depoimento, o marinheiro do leme Joaquim Carlos, é na verdade uma testemunha tão essencial como o tenente Palhinha e como o cabo Freitas Alves, porque foi com o tenente, com o cabo e com o comandante uma das poucas pessoas que durante todo o dia estiveram na ponte. Acontece que o marinheiro Joaquim Carlos, único citado nominalmente pelo imediato, foi até morrer um amigo indefectível do comandante, prolongando a sua família, ainda hoje, essa amizade.

Em carta datada de 16 de Maio de 1978, o ex-marinheiro do leme recordava “a calma e sabedoria que o senhor comandante demonstrou, razão por que tudo se passou sem tiros ou coisas de maior”. Em 1980, voltava o então emigrante Joaquim Carlos a escrever que “nunca posso esquecer a minha vida de marinheiro e um grande comandante e amigo que tive nessa época”. E acrescentava que “seria muito feliz se pudesse voltar ao mar e tê-lo outra vez por meu superior”. Cartas de amigo? Talvez – mas apesar de tudo mais credíveis do que a especulada maioria silenciosa das praças.

E não serão de estranhar os depoimentos dos três sargentos e do marinheiro citados, se tivermos em conta o testemunho do comandante Miranda Gomes, que recorda a exigência do comandante Louçã com as suas guarnições, e especialmente com os oficiais. E acrescenta: “Quanto às praças, se me é permitido dizê-lo, chegava mesmo a exagerar na sua defesa. Fui testemunha disso quando em 1957 ou 1956 fomos a Toulon para treinos anti-submarinos com os franceses. Vi então, nas idas ao Centro de Treinos A/S, o empenho com que defendia a sua guarnição em todas as situações”.

Ainda no que diz respeito à atitude de praças e sargentos, volta a impor-se uma citação do relatório ao Auto de Averiguações: “O que se poderá supor é que às praças, como aos sargentos, não agradaria que o navio fizesse fogo sobre terra, onde se encontravam tantos civis e militares, pois que ao próprio comandante essa hipótese também desagradava, como se pode deduzir dos autos”.

Numa palavra: o imediato nunca durante o 25 de Abril se decidiu a assumir perante o comandante ou sequer perante a guarnição o seu compromisso revolucionário. Por querer manter todas as opções em aberto e salvaguardar a sua posição em caso de derrota do movimento, o imediato jogou sempre na ambiguidade. Por jogar na ambiguidade - não pelo seu “pendor de submissão” ou por se sentir intimidado com a “rudeza” do comandante -, o imediato privou-se de poder ganhar o comandante para o movimento ou de lutar, ele próprio, pelo comando do navio. Por nunca ter controlado a situação a bordo, o imediato não pôde fazer cumprir a ordem do movimento para o navio sair a barra.

O êxito que faltou a Caldeira dos Santos em 25 de Abril de 1974 sobrou-lhe depois numa longa biografia profissional, já fora da Marinha. A concretização das suas ambições carreiristas não passou afinal pela lugar-tenência do general Luz Cunha, e sim pelo exercício de altos cargos em organizações subsidiárias da AIP, sempre ao serviço do associativismo patronal. Mas na hora da verdade, o imediato da “Gago Coutinho” não chegara aos calcanhares do marinheiro Vakulinchuk; e a fragata não fora, de todo, um novo “Couraçado Potemkine”
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