O seguinte escrito é parte da dissertação de mestrado do autor, defendida no programa de pós-graduação em Serviço Social da UFPE, intitulada “Em busca da Revolução Brasileira: crítica à estratégia socialista na obra de Carlos Nelson Coutinho”. O tema deste terceiro capítulo da dissertação é uma crítica ao conceito de “reformismo revolucionário”, de Carlos Nelson Coutinho. Na formulação dessa proposta, aspecto central da estratégia socialista coutiniana, o autor realiza um balanço histórico da experiência social-democrata e eurocomunista. Depois de descrever sua análise, realizamos o nosso balanço sobre essas duas tendências do movimento operário.
O presente texto, portanto, é uma crítica aos limites da social-democracia e do eurocomunismo compreendendo que a despeito de todas e cada uma das suas diferenças, os limites estratégicos são semelhantes e levaram aos mesmos impasses. O balanço não é exaustivo dado que não é o tema central da dissertação e do capítulo três. Nas próximas partes da dissertação, a serem publicadas no Lavrapalavra, o conjunto dos argumentos e raciocínio ficará ainda mais nítido.

Autores com substanciais diferenças entre si, como Lênin (2017), Antônio Gramsci (2007) e Rosa Luxemburgo (2011) sublinham um elemento fundamental para compreender o movimento operário europeu e seus rumos que descambaram no fim da II Internacional na Primeira Guerra Mundial: a partir de 1870 se acelera a transição do capitalismo europeu à sua fase monopolista e ganha um novo impulso a expansão colonial com a partilha do mundo.
Essa nova fase do capitalismo combinada com a expansão colonial se articula em uma conjuntura política pós-Comuna de Paris. Como resposta imediata à Comuna, na França, se processa uma brutal e sangrenta repressão ao movimento operário; já na Alemanha de Bismarck e na Áustria-Hungria, “preocupados com a possibilidade de sublevações generalizadas das classes trabalhadoras, buscam promover condições para uma mediação entre capital e trabalho […] delineiam um ‘Estado assistencial’” [1] (COSTA, 2011, p. 55).
Evidentemente, esse processo não foi teleológico e totalmente compreendido pelas classes dominantes, seus intelectuais e dirigentes políticos na época. Muitos representantes da burguesia viam as concessões ao movimento operário e sua entrada no parlamento como o canto dos cisnes do capitalismo; outros, porém, buscaram articular estratégias de transformar os movimentos de contestação dos trabalhadores em apêndices da ordem, costurando pactos de conciliação de classe. Nesse enfrentamento, a questão colonial tinha papel destacado.
Rosa Luxemburgo travava uma intensa luta política para não ceder, nas batalhas por ganhos imediatos, ao militarismo e ao colonialismo do Estado alemão – mesmo tendo uma visão negativa dos movimentos de emancipação nacional das colônias e semi-colônias -; Lênin e os bolcheviques defendiam uma firme posição de autodeterminação dos povos contra qualquer forma de colonialismo e opressão nacional. Já os representantes mais lúcidos da burguesia, como Cecil Rhodes, ciente da relação orgânica entre expansão colonial e controle da questão social nos países centrais do capitalismo, colocava assim a questão:
“Ontem estive no East-End londrino (bairro operário) e assisti a uma assembleia de desempregados. Ao ouvir ali os discursos exaltados cuja nota dominante era pão!, pão!, e ao refletir, no caminho da volta para casa, sobre o que tinha ouvido, convenci-me, mais do que nunca, da importância do imperialismo (…). A ideia que acalento representa a solução do problema social: para salvar os 40 milhões de habitantes no Rio Unido de uma mortífera guerra civil, nós, os políticos coloniais, devemos nos apossar de novos territórios; para eles, enviaremos o excedente da população e neles encontraremos novos mercados para os produtos das nossas fábricas e das nossas minas. O império, como sempre digo, é uma questão de estômago. Se quereis evitar a guerra civil, deveis tornar-vos imperialistas” (LÊNIN, 2012, p. 112).
O debate sobre abandonar o objetivo final da luta socialista ou participar do parlamento estava atravessado por aquela que era a questão fulcral para o movimento operário entre 1870 e 1914: manter uma política internacionalista e de independência de classe em todas as lutas – através das mais diversas formas de luta, inclusive as legais – ou aproveitar a oportunidade criada pelo capitalismo monopolista para conseguir ganhos potencialmente constantes e buscar negociar posições melhores dentro da ordem por meio de apoio à “sua” burguesia monopolista.
Eduard Bernstein e a maioria do movimento social-democrata, especialmente a partir da Primeira Guerra Mundial, seguiram pelo segundo caminho – não como uma escolha livre e espontânea, mas como resultado da luta de classes, cuja consequência foi uma gigante vitória das burguesias sobre os trabalhadores. Losurdo (2006; 2015) apropriadamente chama de “socialismo imperial” essa relação entre subjugação política-ideológica dos trabalhadores ao capitalismo monopolista em troca de ganhos materiais e níveis variados de “integração política” [2]. Para não deixar dúvidas, segue a posição de Bernstein sobre o expansionismo colonial:
“Legítimo o que assumiu a política imperial alemã, o assegurar em casos deste gênero [política de Guilherme II na baía de Kiautschou] o direito de codecisão (juntamente e em concorrência com as grandes potências rivais, sobre o destino da China), e exorbitando das tarefas da social-democracia a oposição de princípio às medidas que daí derivarem (…). Quando depois alguns jornais chegaram ao ponto de afirmar que o partido tem de condenar no plano dos princípios e incondicionalmente a aquisição da baía – então não posso de modo nenhum estar de acordo” (BERNSTEIN apud LOSURDO, 2006, p. 29).
Lênin foi o líder operário a melhor apreender o pleno sentido, no calor da história em processo, a base econômica, social e política desse amoldamento à ordem da social-democracia. Para o autor de O Estado e a Revolução, o capitalismo monopolista criou uma espécie de aristocracia operária inteiramente pequeno-burguesa pelo seu modo de vida, altos salários (tomando como referência o salário médio dos trabalhadores europeus e de outros países) e concepção de mundo, constituindo o principal apoio da Segunda Internacional e o auxílio social da burguesia, demonstrando o vínculo entre “reformismo e chauvinismo” (LÊNIN, 2012, p. 34). A ruptura no movimento operário com a criação dos partidos comunistas, portanto, não pode ser compreendida sem dimensionar esse debate fundamental.
Para adensar ainda mais o argumento, cabe destacar que um dos critérios fundamentais de clivagem dos comunistas das demais tendências políticas dos trabalhadores foi o “apoio, não em palavras, mas, sim, em ações, a todos os movimentos de emancipação das colônias” como diz a condição oitava das vinte e uma condições de adesão à Internacional Comunista (BRAZ, 2011, p. 130) [3]. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, com o início da construção do Estado de bem-estar social, as diferenças políticas da social-democracia e do movimento comunista quanto ao colonialismo e o suporte aos movimentos revolucionários da periferia capitalista só se aprofunda: enquanto o campo socialista liderado pela URSS, a despeito de todos os problemas que se possa apresentar, foi ator político fundamental no amparo aos movimentos de emancipação nacional do terceiro-mundo [4], a social-democracia abraça completamente (com nobres exceções, como a liderança de Olof Palme na Suécia) a manutenção da ordem colonial e neocolonial pelo mundo [5].
Nesse sentido, a social-democracia, além dos dilemas estratégicos e táticos do movimento como um todo e de cada partido em sua ação nacional, continha uma contradição dilacerante que a impedia de atuar como força revolucionária consequente (contradição que também teve repercussões no movimento comunista [6]): sua capacidade de conseguir ganhos materiais e políticos imediatos para a classe trabalhadora e de gerir uma ordem democrática sem grandes convulsões sociais tinha seu fundamento na estrutura de acumulação capitalista mundial cujo papel de centro – ou metrópole – do capitalismo precisava ser assegurado. Como resume muito bem Moraes (2001, p. 15), “sem a pilhagem da imensa periferia, o poder aquisitivo e a qualidade de vida no capitalismo central seriam muito piores e consequentemente a situação social muito mais conturbada”.
Ao final da Segunda Guerra Mundial o movimento social-democrata já tinha abandonado qualquer traço de partido operário com independência de classe, enfraquecida a dimensão classista de sua identidade política e totalmente qualificado a realizar uma gestão à “esquerda” da ordem dominante (BRAZ, 2011; POULANTZAS, 1980; PRZEWORSKI, 1991). Por isso, o reformismo social-democrata nunca colocou em perspectiva política, durante o Welfare State, o confronto com o capitalismo. A leitura coutiniana, ao afirmar que o reformismo social-democrata, caso seja levado às últimas consequências, teria potencialidades anticapitalistas, não tem sustentação histórica. Senão, vejamos.
Três exemplos são suficientes para encorpar essa perspectiva. Primeiro, a política de nacionalizações efetuadas pela social-democracia no Welfare State teve um caráter essencialmente conservador. Elas incidiram, fundamentalmente, em setores da economia sem a capacidade de oferecer lucros em curto e médio prazo, atuando na transferência de valor para o setor privado da economia, garantindo, assim, preços subsidiados para os grandes monopólios e socializando os custos da reprodução social entre as classes trabalhadoras e camadas médias. A produção e apropriação da riqueza socialmente produzida permaneceram, sem qualquer sinal de ameaça, nas mãos do capital:
“A despeito dessas variações, a filosofia geral da propriedade estatal é amplamente compartilhada: os socialdemocratas estão comprometidos com o livre mercado sempre que possível, e com a propriedade pública quando necessário. Caracteristicamente, as empresas estatais estão limitadas às instituições de crédito, industriais de carvão, ferro e aço, produção e distribuição de energia, transporte e comunicações. Fora desses setores, apenas as companhias ameaçadas de falência e, portanto, de redução do emprego, passam para o controle público. Os casos de envolvimento do Estado na produção e venda de bens de consumo finais são raríssimos, limitando-se, aparentemente, à indústria automobilística. O Estado dedica-se às atividades econômicas que são necessárias para a economia como um todo, e vende seus produtos e serviços principalmente a empresas privadas. Estas, por sua vez, vendem aos consumidores. Assim, o Estado não concorre com o capital privado, e fornece os insumos necessários para o funcionamento rentável da economia como um todo” (PRZEWORSKI, 1991, p. 56) [7].
A teoria econômica keynesiana, fundamentação da política econômica social-democrata, propugnava ação estatal na regulação da economia, indução de “políticas de desenvolvimento” e atuação estatal na regulação do consumo e mercado de trabalho, mas com total respeito à propriedade privada dos meios de produção, mercantilização da força de trabalho e apropriação privada do excedente econômico (mais-valor).
Na política social, existem diversas construtos teóricos sobre o Estado de bem-estar social ser responsável pelo fim da desigualdade de classes e da miséria e também sobre conseguir proporcionar a total universalização do acesso à saúde, educação, moradia etc. colocações que não se sustentam a partir de uma análise mais qualificada das condições de vida da classe trabalhadora nos “30 anos dourados” do capitalismo [8].
Em 1958, na Inglaterra, 2,5 milhões de pessoas (contingente formado essencialmente por trabalhadores) não possuíam água encanada, 3 milhões não tinham banheiro em suas residências e 6,5 milhões sequer onde tomar banho (LESSA, 2013, p. 42). Em termos educacionais, segundo dados compilados por Ralph Miliband, a classe dominante e as camadas médias compunham 56% dos estudantes do ensino superior: esse índice subia para 80% nos estados mediterrâneos e na Alemanha Federal, o número de universitários oriundos das classes trabalhadoras nunca ultrapassou 6% (LESSA, 2013, p. 47). Caso seja feito um recorte analítico específico, focando nos imigrantes, minorias nacionais e trabalhadores dos setores com as remunerações mais baixas da economia, os índices são muito piores.
Evidentemente, um trabalhador médio europeu na época do Welfare State vivia melhor que um asiático, africano ou latino-americano, mas, apesar dessa afirmação inquestionável, não devemos perder de vista a filosofia intrinsecamente conservadora – que visava evitar o perigo soviético e realizar uma política social desmobilizadora que em nada afetasse a acumulação de capital – das políticas sociais estabelecidas nesse período, como deixa claro William Beveridge, autor do famoso “Relatório Beveridge”:
“A linha divisória entre independência e dependência, entre o eficiente e o inimpregável deve se tornar mais clara e maior (…) [Estes, os inimpregáveis] devem se tornar os reconhecidos dependentes do Estado, afastados da livre indústria e adequadamente mantidos em instituições públicas, mas com uma completa e permanente perda de todos os direitos da cidadania, incluindo não apenas o direito ao voto, mas também as liberdades civis e a paternidade” (BEVERIDGE apud, LESSA, 2013, p. 108).
A filosofia de Beveridge não foi aplicada com esse nível de radicalismo devido às lutas da classe trabalhadora, mas o seu sentido geral não foi alterado. A democratização do Estado, último aspecto que iremos discorrer no balanço sobre a social-democracia, será tratado mais sumariamente porque pretendemos, posteriormente, abordar a questão do Estado e do processo de dominação política com maiores detalhes. Cabe dizer que a despeito da vigência de vários direitos democráticos institucionalizados e parcialmente respeitados – direito ao voto, a dita liberdade sindical e de imprensa etc. – os centros estratégicos do poder, isto é, aqueles aparelhos do Estado que concentram a capacidade de formulação e execução das políticas decisivas (governo central, ministério da justiça, suprema corte, Forças Armadas, ministérios de condução econômica etc.) continuaram sob o firme controle da classe dominante.
Um excelente exemplo é o destino dos comitês de socialização que foram criados a fim de estudar medidas de socialização progressiva da economia rumo ao socialismo por vários partidos social-democratas. O comitê britânico foi breve, e o governo de Lloyd George ignorou solenemente suas reivindicações; na Alemanha, o primeiro comitê renunciou e depois foi fechado. Na Suécia, o comitê, depois de dezesseis anos de trabalho, extinguiu-se sem qualquer recomendação acatada. O balanço desses comitês é um retumbante fracasso (PRZEWORSKI, 1991).
Além disso, na Itália, o Partido Comunista foi proibido de chegar ao governo central durante décadas em decorrência de uma articulação entre a democracia cristã, a classe dominante nacional e o imperialismo estadunidense, contando para isso com mecanismos legais e ilegais de “guerra suja” [9]; na Alemanha Federal foi aprovado em 1950 o Decreto contra os rechaçados como inimigos da constituição, proibindo assim os comunistas de serem funcionários públicos e pondo na ilegalidade dez de suas organizações. Em 1956 o PC alemão é tornado ilegal [10] e em 1972 o governo socialdemocrata de Willy Brandt lança o “Decreto contra os Radicais” sujeitando a exame de lealdade à constituição qualquer candidato a cargo público [11]; na França, especialmente depois de 1954, foi montado um gigantesco sistema de tortura e vigilância interna centrados especialmente em torno da D.S.T (polícia secreta francesa), com aplicação de repressão em massa (criando o famoso “método francês” de tortura) [12].
Para concluir, não é verdade que o Welfare State garantiu melhores níveis de vida aos trabalhadores que o socialismo soviético. É evidente que o critério de análise da qualidade de vida define a conclusão a se chegar. Utilizando como fundamento de análise a quantidade e a qualidade de bens de consumo, o Welfare State era, sem dúvida, superior ao socialismo soviético, porém, considerando como critério central o acesso aos bens de consumo coletivo como saúde, educação, cultura, lazer, moradia, direitos trabalhistas [13] etc., e também que a URSS não praticava o colonialismo [14], a superioridade do país nascido da Revolução de Outubro é incontestável. Como bem pontua Lessa (2013, p. 175) “as iniciativas soviéticas voltadas aos ‘mais carentes’ são imbatíveis no confronto com qualquer dos denominados Estados de Bem-estar social. Estas realizações, em seu tempo, foram empregadas com grande sucesso na propaganda do regime soviético”.
Podemos, didaticamente, com objetivo expositivo, compreender três níveis de incidência das lutas de classes na produção material da vida: relações de produção, padrão de reprodução do capital e política econômica. Historicamente, a classe trabalhadora sob a social-democracia conseguiu atuar no nível de política econômica e em menor medida, no padrão de reprodução do capital, mas não transformou radicalmente as relações de produção. A propriedade privada dos meios de produção, a mercantilização da força de trabalho e a apropriação privada da riqueza socialmente produzida conformam o fundamento ontológico das relações de produção capitalistas; a depender da posição do país na acumulação capitalista mundial, as relações de produção podem assumir a forma de um padrão de reprodução neoliberal ou de bem-estar social, tomar uma política econômica ortodoxa ou keynesiana etc. A construção de direitos como a regulamentação da jornada de trabalho vai contra o interesse dos burgueses tomados individualmente, e a depender da conjuntura inviabiliza uma acumulação com taxas de lucros satisfatórias num determinado padrão de reprodução do capital, porém, não põe em ameaça a existência de acumulação capitalista (MASCARO, 2014).
A dialética entre “transformação” da forma e conservação do conteúdo, caso não tenha sua devida relevância observada, acaba tomando mudanças importantes como fundamentais. A resistência encarniçada que a classe dominante impõe a essas conquistas pode ser explicada através da compreensão de que os trabalhadores atuando enquanto classe na busca por essas vitórias imediatas podem transcender a lógica do capital e ameaçar as relações de produção dominantes (LUXEMBURGO, 2011). A importância da luta por direitos não está localizada, centralmente, na potencialidade anticapitalista de sua lógica, mas na capacidade política e ideológica do proletariado, por meio de seu movimento, de negar o capital e buscar superá-lo. Dessa forma, a virada político-estratégica das classes dominantes que passaram a operar a destruição do Estado de bem-estar social a partir dos anos 70 não significa a contradição irreconciliável entre os direitos, a cidadania – típicos de alguns poucos países centrais do capitalismo – e a acumulação do capital, visto que a questão primordial foi: alterar o padrão de reprodução buscando superar, por meio de uma perspectiva do capital, a crise capitalista.
Nesse ínterim, chegamos ao chamado eurocomunismo. Esse movimento dizia respeito a um conjunto de formulações teóricas e de prática política dos partidos comunistas da Itália, França e Espanha que buscaram formular conjuntamente uma alternativa à social-democracia e ao socialismo soviético – denominado comumente de stalinismo. Embora estivessem unidos nessa iniciativa, as diferenças entre esses PC’s eram bem maiores do que uma leitura superficial pode captar [15]. Centrando nos impasses e desfecho da experiência eurocomunista e abstraindo-se das gigantescas diferenças entre os PCs, podemos dizer que o eurocomunismo foi:
“(…) Um conjunto de propostas que priorizava o momento histórico nacional como o terreno onde se edificaria a estratégia e sobre o qual se desenrolaria as ações políticas e as lutas concretas. O partido se inclinava para a ampliação de sua legitimidade político no conjunto da vida nacional, o que significava a expansão das alianças para além dos setores revolucionários, conformando, assim, uma estratégia política que concebia a questão eleitoral e parlamentar como momentos privilegiados – tático-políticos – para tal expansão. Ela se daria por um salto qualitativo do partido junto às massas (…) possibilitando a participação do partido na vida parlamentar e mesmo no governo, agregaria a sua estratégia elementos políticos democratizantes e reformadores da sociedade capitalista (…). As reformas passaram a ser compreendidas como momentos políticos que promoviam avanços graduais e permitiam um acúmulo de forças sociais, necessários à construção do processo revolucionário. A própria ideia de revolução ganhava com o eurocomunismo a noção de processualidade, o que compreendida a conquista de vitórias parciais – no parlamento, no governo, na institucionalidade burguesa – que reforçariam a possibilidade da revolução” (BRAZ, 2011, p. 251 – grifos no original).
Ressurge, sob novas formas, o mesmo impasse social-democrata: o eurocomunismo, na busca meritória e indispensável por uma via nacional ao socialismo e recusando transplantes mecânicos de diretrizes soviéticas à luta política nacional, levou o enfraquecimento do internacionalismo proletário quase ao limite e para a compreensão das realidades nacionais utilizou uma perspectiva entificada que desconsiderava o papel dos países de centros consolidados como a França, ou intermediários como Espanha e Itália, na acumulação mundial do capital [16]. Além disso, apesar de suas formulações teóricas serem qualitativamente melhores que as da social-democracia, as noções de uma capacidade ilimitada de democratização do Estado, transformação via processos eleitorais e transição progressiva ao socialismo, também reapareceram.
Em suma, os termos centrais do debate social-democrata entre o fim do século XIX e o início da primeira guerra, como demonstrados por (PRZEWORSKI, 1991, p.19-67), ressurgem no eurocomunismo, em alguns casos com maior radicalidade e consistência teórica como no PCI, e em outros, com as mesmas debilidades tradicionais e crivado de gigantescas ambiguidades como no Partido Comunista Espanhol [17]. O eurocomunismo em sua “intenção de ruptura” com a social-democracia não conseguiu superá-la em número de votos e competividade eleitoral, a “centralidade das reformas democráticas preconizada não se converteu em luta revolucionária” (BRAZ, 2011, p. 267) e com a derrubada da União Soviética, a crise quase terminal do movimento comunista também atingiu os partidos que mais buscavam se diferenciar do PCUS: foi o fim do eurocomunismo.
A falência completa do reformismo dos PC’s eurocomunistas, embora não deslegitime sua intenção de renovar a estratégia socialista, mostra equívocos nas respostas teóricas e práticas aos problemas colocados. A despeito de todas as diferenças com a social-democracia, o eurocomunismo e as várias propostas de transição democrática ao socialismo, há algo em comum entre elas: uma particular concepção de Estado e do processo de dominação política que será, a seguir, objeto de análise.
[1] “Em novembro de 1872 […] tem lugar uma ampla reunião de delegados dos governos da Alemanha e da Áustria-Hungria para definir a luta contra a Internacional, buscar soluções ao problema social e desenvolver os rudimentos de um Estado providente, preocupados pela sorte das classes despossuídas […] Na reunião citada de novembro de 1872 são apresentadas uma série de propostas para regulamentação estatal do descanso dominical, a limitação do trabalho industrial das mulheres, a indenização por acidentes, a criação de oficinas de trabalho, a introdução de inspetores de fábrica segundo modelos ingleses, a criação de instituições educativas para trabalhadores, a reforma do sistema habitacional, a criação de seguros de enfermidade e invalidez e a instituição de tribunais de arbitragem e conciliação” (GONZÁLEZ GARCÍA apud COSTA, 2011, p. 56).
[2] Como Losurdo (2015, p. 156) bem registra, Marx e Engels já compreendiam o perigo da dialética entre expansão colonial e aburguesamento do operariado: “já em 1858, Engels não só constata amargurado que o ‘proletariado inglês se aburguesa cada vez mais’, mas acrescenta: ‘afinal, isso é de alguma forma compreensível para uma nação que explora o mundo inteiro’. Cinco anos depois, ele amplifica: ‘do proletariado inglês toda energia revolucionária é quase desaparecida e ele declara-se completamente de acordo com o domínio da burguesia’”. Continua Losurdo: “citei duas cartas de Marx, que chegam às mesmas conclusões: longe de solidarizar com o trabalhador irlandês – ele observa em 1870 -, ‘o operário inglês comum […] percebe a si mesmo como membro da nação dominante […]. Sua atitude é muito parecida à dos brancos pobres em relação aos negros nos velhos estados escravistas dos Estados Unidos”.
[3] Lênin, sobre a questão nacional e colonial, no II Congresso da IC, em 5 de julho de 1920, diz o seguinte “Das teses fundamentais acima expostas decorre que na base de toda a política da Internacional Comunista na questão nacional e colonial deve ser colocada a aproximação dos proletários e das massas trabalhadoras de todas as nações e países para a luta revolucionária comum pela derrubada dos latifundiários e da burguesia. Pois só tal aproximação garante a vitória sobre o capitalismo, sem a qual é impossível suprimir a opressão e a desigualdade nacional” (LÊNIN, 2017, p. 435).
[4] “A União Soviética e os partidos aliados a ela desempenharam um papel crucial na formação política e ideológica dos quadros do movimento [de libertação africana], tendo sido crucial em Moscou no ano de 1930, a escola de Stálin, intuindo preparar quadros marxistas. As repercussões da crise econômica que sacudiam o mundo possuíam uma natureza favorável à tarefa do movimento anticolonial […] Após ter traçado os mecanismos e as vias para colaboração com os movimentos anticolonialistas, o mundo socialista engajou-se em um programa de apoio ativo à descolonização da África, sob a forma de uma assistência material e diplomática, oferecida em conformidade com o princípio do marxismo-leninismo, segundo o qual, o mundo socialista deveria ajudar àqueles que aspirassem à descolonização […] A URSS assinou acordos com cerca de quarenta países africanos. Um das mais interessantes dimensões desta cooperação dizia respeito ao ensino e à pesquisa: formação de quadros africanos na URSS, envio de professores e pesquisadores soviéticos às universidade e centros de pesquisa africanos. Aproximadamente 30.000 africanos formaram-se no sistema soviético de ensino superior” (THIAM; MULIRA; WONDJI, 2010, p. 968-970).
[5] “Na verdade, a Internacional Socialista não se aventurava na América Latina, considerada por ela o quintal dos Estados Unidos. “Não me recordo de textos condenando a deposição de Jacobo Arbenz na Guatemala, em 1954”, afirma Antoine Blanca, na época membro da Secretaria de Relações Exteriores da Seção Francesa da Internacional Operária (Sfio). “Dez anos depois, quando pedi a palavra para denunciar a intervenção da Marinha norte-americana em Santo Domingo, Guy Mollet esbugalhou os olhos!” Sem voltar demais no tempo, lembramos que, fundado em 1933 por Salvador Allende, o Partido Socialista (PS) chileno recusou-se a se filiar à IS, criticando suas “posições conformistas no seio do sistema democrático burguês capitalista”. Já em 1959, a Revolução Cubana tinha colocado o anti-imperialismo no centro dos debates. Mas isso sem grandes consequências para a IS, que deu uma olhada interessada, mas ao mesmo tempo muito distante” LEMOINE, Maurice, 2012, edição 54 da revista Le Monde Diplomatique.
[6] “Apesar dos esforços de Lênin, Gramsci, Mariátegui, entre outros, em formular e aplicar o quadro teórico marxista para a questão étnica, nacional e colonial, uma série de conflitos e resistências internas no movimento comunista de diversos países em adotar uma posição progressista devem ser aqui relembrados. Esta resistência em aplicar as determinações teóricas e políticas de Moscou gerou, de um lado, uma crise que terminaria com a expulsão de diversos líderes dos partidos comunistas dos países em questão; de outro lado, provocou um atraso na avaliação teórica e na atuação política sobre a questão racial nesses países. O problema se manifestava especialmente naquelas regiões em que o domínio colonial já se havia consolidado desde algum tempo. Estes eram os casos da Indonésia, definitivamente subordinada ao império colonial holandês em 1830;da Argélia, colônia francesa a partir de 1833; da Índia, possessão britânica desde1849; e dos territórios portugueses na África. De uma forma geral, a posição oficial dos PC’s nestes países era, no mínimo, contraditória. Contraditória com preceitos teóricos do marxismo, mas, sobretudo, com os princípios de integração à III Internacional Comunista. Evitava-se, nestes partidos, atacar o colonialismo, chegando mesmo a justificá-lo com o argumento de “missão civilizatória”, incluindo nesta missão o socialismo – ou seja, a independência das colônias só poderia vingar desde que liderada pelo comunismo das metrópoles” (CHADAREVIAN, 2007, p. 17-18).
[7] “O relatório também deixa claro que não deve haver retorno a modelos antigos de nacionalização que foram adotados após a Segunda Guerra Mundial. Eram indústrias estatais destinadas principalmente a modernizar a economia e fornecer indústrias básicas para subsidiar o setor capitalista. Não havia democracia nem contribuição dos trabalhadores [na direção] das empresas estatais e certamente nenhuma integração em qualquer plano mais amplo de investimento ou necessidade social. Este foi o chamado “modelo de Morrison”, batizado em homenagem ao líder trabalhista de direita Herbert Morrison, que supervisionou as nacionalizações do pós-guerra no Reino Unido” (tradução nossa) – ROBERTS, Michael. Modelos de propriedade. Acessado em 20/03/2018. Disponível em: http://www.socialisteconomist.com/2018/02/models-of-public-ownership.html?m=1
[8] Sobre as ideologias em torno do período histórico do Estado de bem-estar social, conferir a obra de Lessa (2013, p.11-28).
[9] Um exemplo da política da classe dominante na Itália: “(…) Entrava em cena do Reparto Celere, uma espécie de polícia especializada na repressão às manifestações políticas e no combate aos movimentos sociais progressistas – um aparelho coercitivo do Estado italiano dirigido com mão de ferro pelo ministro do interior, Mario Scelba, que acabou por se transformar numa instituição estruturada como uma máquina repressiva responsável pelo aniquilamento de um suposto ‘inimigo interno’” (MONDAINI, 2001, p. 111).
[10] Cabe pontuar que vários pensadores do “socialismo democrático”, incluindo Carlos Nelson Coutinho, escreveram muito para estimular a esquerda a respeitar as “regras do jogo”, mas pouca atenção dedicaram a estudar “que jogo” estava posto. Um exame detalhado dos mecanismos constitucionais para impedir a conquista do governo pelas organizações dos trabalhadores foi realizado por Domenico Losurdo em seu Democracia ou Bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal (2004). O limite da análise losurdiana é abordar especialmente o século XVIII e XIX e dedicar pouca atenção ao fenômeno contemporâneo.
[11] Informações disponíveis no site Deutsche Welle. Acessado em 20/03/2018. Disponível em: http://www.dw.com/pt-br/1950-decreto-contra-inimigos-da-constitui%C3%A7%C3%A3o/a-955333
[12] “O Estado de bem-estar social francês elevou a tortura a uma nova patamar que correspondia à nova função, a de ‘engenharia social’, para a qual ‘a subversão não é mais o problema. Destruir e inserir o medo no nativo o é” (Lazreg, 2008: 56). “Tal técnica e tal função social da tortura são até hoje conhecidas como o “método francês” e é a preferida desde a Argélia até Guantánamo, passando por Israel e as nossas ditaduras latino-americanas” (LESSA, 2013, p. 153).
[13] “Nenhuma sociedade tinha até então elevado o nível de vida e o consumo para toda a população tão rapidamente e num período de tempo tão reduzido. O emprego era garantido. A educação gratuita era acessível a todos, dos infantários às escolas secundárias (gerais, técnicas, profissionais), universidade e escolas pós-laborais. Havia um serviço de saúde gratuito para todos, com cerca de duas vezes mais médicos por pessoa do que nos Estados Unidos. Os trabalhadores sofriam acidentes ou doenças tinham assegurado e baixa médica paga. Em meados da década de 1970, os trabalhadores gozavam em média de 21, 2 dias úteis de férias [….] O Estado regulava os preços e subsidiava os custos de alimentação básica e habitação. As rendas constituíam 2% a 3% do orçamento familiar, a água e os serviços públicos apenas 4% a 5% […] Segundo a UNESCO os cidadãos soviéticos liam mais livros e viam mais filmes do que qualquer outro povo do mundo” (KEERAN, KENNY, 2008, p. 12-13).
[14] É inegável a postura imperial da política externa soviética frente ao bloco socialista, considerando-se a única líder por direito, tratando os países do Leste Europeu como sua zona de segurança; ao mesmo tempo, também consideramos inegável que a URSS não usava esses países como sua periferia econômica e muito menos os regimes nacionalistas em África e Ásia. O papel da URSS era, ao contrário, realizar a maior transferência do século XX de crédito, tecnologia e recursos financeiros. Os dados sobre a ajuda econômica da URSS a esses países podem ser encontrados em (PAULINO, 2010, p. 68-78).
[15] “A expressão eurocomunismo não nasce das fileiras do movimento comunista, mas sim das páginas de um órgão da chamada imprensa burguesa. De fato, ela aparece pela primeira vez no cenário político internacional em 26 de junho de 1975, num artigo escrito no periódico milanês Giornale Nuovo pelo jornalista Frane Barbieri, iugoslavo exilado na Itália desde o início dos anos setenta. Com o novo termo, revelava-se a preocupação em definir de forma mais precisa a crescente confluência existente entre alguns partidos comunistas da Europa Ocidental, em torno de uma série de princípios capazes de construir uma concepção de sociedade socialista apropriada aos países europeus, marcados pela existência de um capitalismo desenvolvido com uma economia de mercado razoavelmente sólida (…) Então, as elaborações particulares realizadas por estes partidos comunistas do Ocidente europeu – as quais giravam ao redor da busca independente de uma série de ‘vias nacionais’ ao socialismo – acabam por convergir para a afirmação de uma proposta de dimensões bem maiores, isto é, uma via que contemplasse uma parte significativa do continente europeu, uma ‘via européia’ ao socialismo”. MONDAINI, Marco. Há trinta anos, o eurocomunismo. Acessado em 20/03/2018. Disponível: http://www.acessa.com/gramsci/?id=535&page=visualizar
[16] “Para Mandel, o eurocomunismo é resultante de processos históricos que fizeram parte da trajetória do movimento comunista internacional. Assenta-se em três raízes históricas que lhe emprestam identidade e o explicam: uma tendência à social-democratização, portanto, ao reformismo; uma adaptação nacional da política de coexistência pacífica; e uma forma de atualização da “estratégia de esgotamento” de Kaustky. Está última se expressava no eurocomunismo na estratégia que apregoava uma espécie de transformação gradual do capitalismo, a partir da realidade nacional das relações capitalistas. Renunciava-se aí ao internacionalismo da luta revolucionária, a partir de uma excessiva centralização das estratégias no contexto nacional, exatamente quando o capitalismo – e, portanto, as lutas de classes – aproximava-se de sua fase mais radicalmente internacionalizada, gerando formas de expansão do capital mais mundializadas” (BRAZ, 2011, p. 268 – gritos no original).
[17] “(…) Quanto ao PCE, parecia se confirmar na sua experiência concreta que a autenticidade e a propriedade da via reformista cabia, como sempre coube, à social-democracia, que em sua renovação no país conseguiu vencer em todas as frentes comum combate com os comunistas espanhóis, do movimento sindical às eleições gerais. Ademais, a mão de ferro do antissoviético e antistalinista Santiago Carrilho – secretária-geral do PCE e autor do livro Eurocomunismo e o Estado (Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1978)- não permitia ao partido traduzir internamente as posições renovadas que defendia para a sociedade (BRAZ, 2011, p. 267).
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