Depois de uma carreira gloriosa no andebol espanhol, Urdangarin chegou à Zarzuela. Aí iniciou uma nova vida, enredando-se numa teia de interesses e influências que o conduziu à sua própria destruição e à maior crise da casa real.

Em 2000, nos Jogos Olímpicos de Sydney, Iñaki Urdangarin conquistava a medalha de bronze pela selecção espanhola de andebol e realizava o último jogo da sua gloriosa carreira. Festejou com a sua mulher, a infanta Cristina de Borbón, filha do então rei Juan Carlos, com a sogra, a rainha Sofia, e com o cunhado e príncipe, Felipe, que, mais do que tudo, era já seu amigo. Ali, no campo, de medalha olímpica no peito, era felicitado pela sua nova família. A família real espanhola. O fim de uma etapa de glória e o início de uma nova vida. Mas esse futuro que parecia brilhante foi o que o destruiu. Dezoito anos depois, no dia 18 de Junho de 2018, entrou na prisão de Brieva, a pouco mais de 100 km de Madrid.
De entre 82 prisões à escolha, Urdangarin escolheu ir para Brieva, um estabelecimento reservado a mulheres, mas com um módulo exclusivo para homens. É o único que lá está. Isolado e sozinho, tal como foi ficando desde que estalou o escândalo que ficou conhecido como o “caso Nóos”.
Esta ala da prisão de Brieva, construída em 1989, conta com cinco celas, uma sala com televisão e um pequeno pátio. Urdangarin está na mesma cela onde o famoso antigo director-geral da Guarda Civil, Luis Roldán, cumpriu parte da sua pena de 28 anos (esteve lá detido entre 1995 e 2005) por crimes como fraude, corrupção ou suborno.

O “bom rapaz”

Prevaricação, desvio de fundos, fraude fiscal, tráfico de influências são os crimes pelos quais o outrora genro perfeito do rei de Espanha foi condenado a cinco anos e dez meses de prisão. Serão também estas as acções pelas quais Urdangarin ficará eternizado.
“Um bom rapaz, dedicado de corpo e alma à sua profissão e que acredita no que faz”, descrevia-se ao El País Urdangarin naquele dia de despedida em Sydney.
Em 1997 Urdangarin chegou oficialmente ao Palácio da Zarzuela, pouco mais de um ano depois de, durante os Jogos Olímpicos de Atlanta, ter conhecido Cristina de Borbón, filha do então rei Juan Carlos. A paixão, conta-se, foi imediata.
Por esta altura, a coroa espanhola vivia um dos períodos de maior apogeu, com níveis de aceitação como nunca voltou a ter. O pico da reputação da família real estancou no momento em que Urdangarin entrou e se tornou duque de Palma de Maiorca.
Rapidamente conquistou o apreço de toda a família. Além de um respeitado desportista, sendo um dos jogadores de andebol mais titulados em Espanha (ganhou 52 títulos, entre os quais dez campeonatos de Espanha e duas medalhas de bronze olímpicas), os seus dotes sociais eram sobejamente conhecidos. A falta de títulos académicos foi rapidamente resolvida com uma licenciatura e mestrado em Administração de Empresas na conceituada universidade ESADE, em Barcelona, entre 1999 e 2001 – o facto de o ter feito em apenas dois anos, quando geralmente são necessários cinco, levantou polémica.
novo casal era a imagem de uma monarquia moderna. E trazia consigo uma mensagem de inclusão. Urdangarin é basco e jogou durante 14 anos no FC Barcelona, tornando-se uma das figuras do andebol do clube. O Palácio da Zarzuela recebia assim alguém que lhe permitia estabelecer uma ligação com duas das regiões mais hostis ao rei.
“Há que saber dizer adeus. Quero pensar no meu futuro profissional e lutarei para que esta nova etapa seja tão bem-sucedida quanto a que agora acaba”, disse quando se despediu do FC Barcelona, recorda o El País.
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Casamento de Iñaki Urdangarin com Cristina de Borbón em 1997
A posição que acabava de alcançar, por intermédio do casamento, rapidamente lhe deu as oportunidades necessárias para construir este futuro que ambicionava. E serviu de base para a nova vida que iniciava, e também para o estrondo da posterior queda.
Um dos professores que conheceu dos tempos da ESADE foi Diego Torres. Bem impressionado com Urdangarin, Torres convidou-o para sócio do Instituto Noós, uma instituição sem fins lucrativos.
“O objectivo era contratar Urdangarin e tudo o que vinha com ele”, diria José Luis Ballester, antigo director-geral do Desporto no governo autónomo das ilhas Baleares, num dos seus depoimentos à Justiça no âmbito do “caso Nóos”.
Quando confirmou a sentença de Urdangarin, o Supremo espanhol apontava também como origem do descalabro “o privilegiado posicionamento institucional de que desfrutava, dada a sua proximidade com a chefia do Estado”.

O “intermediário”

A nova carreira empresarial do novo duque de Palma começou rapidamente a criar desconforto na família real. Relatam os jornais espanhóis que na Zarzuela começaram a avisá-lo para se afastar destes círculos de poder político e de influência.
O próprio reconheceu perante o juiz, em 2012, os avisos que recebeu. Inclusivamente da parte do próprio rei que lhe pediu para abandonar os negócios em que se estava a envolver e, depois, que fosse trabalhar para fora de Espanha.
Mas por esta altura já o marido da infanta Cristina estava fatalmente embrenhado na teia de influências e de corrupção. Só em contratos públicos, adjudicados através do Instituto Nóos, a investigação calcula que Urdangarin arrecadou mais de seis milhões de euros, sobretudo junto do governo das Baleares, da comunidade valenciana e de Madrid.
Nas baleares, durante a governação de Jaume Matas (de 2003 a 2007), foram entregues à instituição dois contratos para organizar dois congressos sobre turismo e desporto. O custo da organização ultrapassou os dois milhões de euros, o que levantou, pela primeira vez, as suspeitas não só da oposição política de Matas mas também da justiça – nomeadamente do juiz de Palma de Maiorca, José Castro, em 2010. O inquérito viria a concluir que desse valor cerca de 1,5 milhões acabaram no bolso de Urdangarin e de Torres.
O mesmo aconteceu junto da generalitat valenciana, que outorgou quatro contratos no valor total de quase quatro milhões de euros.
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Para tudo isto, os conhecimentos de Urdangarin e as portas que a sua posição na Zarzuela abriam foram fundamentais. “Urdangarin era um conseguidor, um intermediário”, reconheceu Mata num dos seus depoimentos.
“Notava-se que se sentia um pouco limitado no seu dia-a-dia, que considerava que estava a desempenhar um papel principalmente de comercial”, descreve Torres ao El País. “Odiava as rotinas. Fazíamos uma boa equipa: eu observava e compilava dados. Iñaki absorvia o ambiente e conhecia as pessoas”.
Em 2011, já a investigação decorria, e Urdangarin foi formalmente imputado na mesma. Abria-se o período de maior crise da coroa espanhola e o início da queda do genro perfeito.
Em 2013, a crise agudizou-se e pela primeira vez na história um membro da família real era levado ao banco dos réus. Cristina de Borbón era acusada de cumplicidade nos crimes fiscais do marido mas acabou absolvida.
Por sua vez, Torres foi condenado a cinco anos e oito meses de prisão e Matas a três anos e oito meses.
Por esta altura, Cristina e os seus quatro filhos já se tinham mudado de Washington para Genebra, na Suíça, permanecendo assim afastados do escândalo que estava no seu pico. A separação em relação à casa real não se dava só em termos geográficos e começou a fazer-se sentir a nível institucional e pessoal de forma irremediável.

Felipe VI e a ostracização

Apesar de publicamente o “caso Nóos” ter sido sempre um tema a evitar pelos reis Juan Carlos e Sofia, sabe-se que ambos se mantiveram ao lado da filha. O mesmo não aconteceu com o irmão, Felipe, anteriormente próximo de Cristina.
Este escândalo foi um dos factores que contribuiu para que, em Junho de 2014, Juan Carlos abdicasse do trono. Nunca a coroa esteve com níveis de rejeição tão altos.
A coroa passava para o agora rei Felipe VI. A promessa era de modernização e renovação da monarquia. E isso passava pela limpeza da imagem deixada pelo casal dos duques de Palma. Em 2015 mais um acontecimento sem precedentes: o monarca retirou os títulos de duque à sua irmã e cunhado. A ostracização institucional ficava completa.
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A prisão onde Urdangarin vai cumprir pena 
Sobre o processo, as únicas declarações públicas da casa real, o que voltou a acontecer aquando da confirmação da sentença por parte do Supremo, é de realce relativamente à independência da justiça – que esteve também em jogo neste caso – ao não ter quaisquer problemas em levar a julgamento um dos seus membros e de colocar na prisão outro pela primeira vez na história.
“O caso Urdangarin gerou uma crise inédita para a monarquia espanhola, que desembocou na abdicação do rei Juan Carlos I e no distanciamento institucional da irmã do novo monarca, a infanta Cristina”, escreve o El País no editorial que se seguiu à confirmação do Supremo. “A exemplaridade não pode ser só uma promessa de boca do rei e dos governantes, mas sim uma exigência moral e judicial que garanta o cumprimento do artigo 14 da nossa Constituição: ‘Os espanhóis são iguais perante a lei.’”
Foi também sendo noticiado os pedidos do pai e irmão de Cristina para que se separasse do seu marido e que se afastasse o mais possível do rasto de problemas judiciais que ele trazia consigo. A rejeição foi pronta e a infanta manteve-se sempre junto de Iñaki.
E assim continua. Absolutamente convicta da inocência do marido, relata a comunicação social espanhola. No mesmo dia em que Iñaki recebeu a ordem de prisão, 13 de Junho, Cristina celebrou o seu 53º aniversário. Sozinha com os filhos em Genebra, tentando manter a sua vida tal como ela era. Chegou a ser avançado que a infanta se iria mudar para Lisboa, aproveitando a mudança da sede da Fundação Aga Khan, onde trabalha actualmente, para a capital portuguesa, mas isso não passou até ao momento de rumores.
De acordo com declarações de uma fonte próxima a Cristina de Borbón ao El Mundo, a infanta “está destroçada mas mostra a mesma força que teve durante todo o processo”, acrescentando que não há, para já, planos de uma mudança para Lisboa. Tem direito a uma visita semanal ao marido, o que planeia cumprir.

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