João Frazão
As medidas então anunciadas pelo Governo ficaram aquém do prometido
Um ano depois: a tragédia continua?
INCÊNDIOS A 17 de Junho de 2017, Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos foram o espelho das consequências de décadas de política de direita de diabolização do mundo rural, ficando expostas as vulnerabilidades estruturais do País nos planos demográfico, alimentar, produtivo, energético e do ordenamento do território.
LUSA
Centenas de milhares de hectares ardidos, com a destruição de matos e florestas, campos agrícolas e explorações pecuárias, provocando a morte de milhares de animais, e impactos ambientais ainda difíceis de quantificar; centenas de empresas afectadas, algumas das quais completamente tomadas pelas chamas; centenas de casas de primeira habitação atingidas e mais ainda de segunda habitação, com as sequelas psicológicas que tudo isso provoca; infraestruturas públicas postas em causa pela acção do fogo; dezenas de mortos e feridos registados nesses dias e nos dias, semanas e meses que se lhe seguiram constituem o negro retrato de um dia que ficará na memória do povo português pelas piores razões.
Retrato que se repetiu nos meses seguintes até à tragédia de 15 e 16 de Outubro, que assolou mais de duas dezenas de concelhos do Centro e do Norte do País. E que trouxe de novo milhares de hectares ardidos, explorações agrícolas e pecuárias, casas e empresas destruídas, animais mortos, dezenas de vidas perdidas, impactos incomensuráveis nos planos económico, social e ambiental.
Estas foram dramáticas consequências de décadas de política de desinvestimento, abandono do mundo rural, desarticulação das estruturas do Estado de apoio à agricultura e à Floresta, e desde logo o Ministério da Agricultura e o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Mas também da destruição do emprego, com a consequente emigração de milhares de homens e mulheres e com os impactos que isso induziu na redução de efectivos dos bombeiros voluntários, de encerramento de serviços públicos em todas as áreas (transportes, escolas, hospitais e centros de saúde, serviços de finanças, agências bancárias e, ultimamente, até de freguesias), de destruição de centenas de milhares de explorações agrícolas, sacrificadas no altar da competitividade e da PAC.
Propaganda e desresponsabilização
Na sequência dos incêndios de Junho e de Outubro desenvolveu-se uma operação política e ideológica de grande envergadura com diversos traços, em que andaram de braço dado PS, PSD, CDS e até o BE, com os comentadores a soldo do grande capital à ilharga, que importa denunciar. De imediato, uns e outros lançaram-se na teoria da responsabilização do Estado.
Procurando apagar responsabilidades concretas da política de direita, e de alguns dos seus actuais protagonistas (de que Assunção Cristas é apenas um exemplo concreto), encontraram aqui um filão para explorar a teoria do Estado que está a mais, que prejudica as populações, do Estado gordo no qual é preciso cortar, invertendo, com todo o descaramento, o facto de ter sido exactamente a opção política de se retirar importantes estruturas do Estado do território que também esteve na origem da dimensão do desastre de 2017.
Seguiu-se a responsabilização da pequena e média propriedade, das terras ao abandono, do minifúndio. Teoria que encontrou eco nas propostas do Governo e do BE de confiscar as terras ditas sem dono conhecido para as colocar na bolsa de terras, à disposição da voragem da concentração fundiária. Uns e outros procurando esconder que nos últimos 30 anos de integração comunitária e de penetração da PAC em Portugal, as explorações agrícolas mais que dobraram a sua área média, passando de 6 hectares em 1989, para 14 em 2015, no que foi acompanhada pelo despovoamento dos territórios.
Responsabilização da pequena e média agricultura que, por um lado, levou a uma acção persecutória contra os pequenos produtores florestais, pela limpeza forçada das florestas, alimentando a confusão e o medo – que resultou, neste início do ano, já numa dúzia de mortes em queimadas de sobrantes das limpezas – e fomentando novas entregas de terras para mais concentração. E, por outro lado, à desresponsabilização da Administração Central, passando para as autarquias a substituição dos proprietários que não limpem os seus terrenos, matéria a que apenas o PCP e o PEV se opuseram.
Em terceiro lugar, assistimos à criação de legislação avulsa, com a publicação de dezenas de portarias, despachos, leis e decretos-lei, procurando afirmar a ideia de que foi a sua ausência que criou as condições para tais incêndios e tentando iludir o facto de que o problema nunca foi a falta de legislação, antes o não cumprimento da Estratégia Florestal Nacional, do Sistema de Defesa da Floresta contra incêndios, da Lei de Bases da Política Florestal, dos Planos Regionais de Ordenamento Florestal, apenas para citar alguns. Todos estes são diplomas já existentes antes dos incêndios nos quais não faltava a identificação do que era necessário fazer, uma vez que na sequência dos incêndios de 2003, 2005, 2009 e 2013 foram produzidos relatórios, aprovados com largo consenso dos partidos na AR, que indicavam orientações bastantes para as medidas necessárias.
Como atempadamente o PCP afirmou, montou-se uma gigantesca operação de propaganda e desresponsabilização, de que a experiência do cadastro simplificado é exemplar – pelo que significa de parecer que fica feito o que há tanto tempo é reclamado – para o Governo poder dizer que fez tudo o que estava ao seu alcance e, portanto, a responsabilidade do que possa voltar a acontecer não é sua. Mesmo que resista à monitorização trimestral que o PCP propôs na AR.
Entretanto, como a vida veio a demonstrar, tal operação tinha ainda outro objectivo. O de esconder a falta de investimento em todos os aspectos que estão associados à prevenção e à defesa da floresta e à Protecção Civil, como ficou bem expresso na proposta do Governo minoritário do PS de Orçamento do Estado para 2018, entrado na Assembleia da República, no dia anterior aos incêndios de 15 e 16 de Outubro.
As verbas que acabaram por ser incluídas no Orçamento do Estado para 2018 têm a marca do PCP e da sua acção, designadamente pela proposta de criação de um «Programa Integrado de Apoio às Vítimas e Áreas Atingidas pelos Incêndios Florestais de 2017, de Defesa da Floresta contra Incêndios, de Valorização da Agricultura Familiar e do Mundo Rural e de Promoção do Desenvolvimento Regional», incluindo um conjunto integrado de medidas no âmbito do apoio às vítimas e zonas afectadas pelos incêndios florestais, do dispositivo de combate aos incêndios, da prevenção florestal estrutural, do apoio à Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Regional.
Se mais longe não se foi, foi porque o PS votou contra muitas das propostas que ele previa.
Um ano depois, como estamos?
Assente numa população envelhecida, e rarefeita por um profundo despovoamento, com a agricultura e a floresta (bem como a indústria) confrontadas com um elevado grau de devastação, que acentuou o rumo de destruição pela política de direita, o mundo rural chegou a um tal estado que as medidas para a sua recuperação exigem vontade política, determinação e meios significativos. Só assim se poderá assegurar um rumo de progresso e de desenvolvimento social, no plano da garantia do emprego, dos investimentos públicos e das infraestruturas, dos serviços públicos e das estruturas do Estado e da defesa da agricultura familiar.
Nas suas diversas componentes, as medidas anunciadas e os seus resultados – quando aquelas passaram do papel – ficaram, invariavelmente, aquém do prometido e muito aquém das necessidades. Assim é no plano dos apoios às vítimas, em que, em virtude da complexidade dos processos exigidos pelo Governo, milhares delas ou não reclamaram qualquer apoio ou reclamaram apenas os apoios simplificados até ao valor de 5000 euros, deixando de fora muitos outros prejuízos, sofrendo muitos deles cortes que levam a que os anunciados apoios de 90 milhões de euros correspondam apenas a uma parte dos reais prejuízos.
Tal situação, somada à evidente descapitalização daquelas populações e à não atribuição das ajudas ao rendimento perdido por produtores pecuários, apesar de decididos pela AR por proposta do PCP, levará, sem margem para dúvidas, à não reposição de todo o potencial económico destruído.
Assim é também no plano da reconstrução das casas afectadas. Muitas das de primeira habitação ainda não foram concluídas e as segunda habitação só agora viram uma portaria do Governo empurrando para as autarquias a responsabilidade de o fazer. Condenando-se assim, na prática, algumas aldeias ao desaparecimento pela ausência de respostas.
No plano da prevenção florestal, as estruturas do Estado para a sua protecção e defesa, designadamente o ICNF, não viram qualquer reforço, agonizando face ao envelhecimento dos seus efectivos. Não avançou o plano de fogo controlado, como o PCP propôs e foi rejeitado pelo PS, com a abstenção de PSD e CDS, e a operação de limpeza das florestas apenas resolveu o que é visível a partir das casas e das vias de comunicação. E nem todas.
Igualmente no plano do ordenamento, continuam por aprovar os Planos Regionais de Ordenamento Florestal e o Inventário Florestal Nacional, cujos dados remontam a 2010, ainda não é público. O Regime Jurídico da Arborização e Rearborização continua por aplicar em toda a sua dimensão e os produtores florestais – desaconselhados da monocultura do eucalipto – não têm quem hoje os aconselhe em novas plantações, principalmente porque não têm garantias de preços justos à produção.
Da mesma forma, no plano da fiscalização, segurança interna e Protecção Civil, e para lá de alguns investimentos no reforço do dispositivo das comunicações, mantêm-se as graves insuficiências de pessoal, que se fizeram sentir com particular incidência no ano passado: seja porque os efectivos da GNR não foram reforçados seja porque o despovoamento e as regras rígidas afastam os voluntários das corporações.
E, não menos importante, no plano do combate ao despovoamento, não se vêem medidas de apoio à criação de emprego, não foi reaberto qualquer serviço público encerrado ao longo de anos (antes se perspectiva novos encerramentos, designadamente de escolas e de agências do banco público), assiste-se à degradação do serviço de transportes, de que é exemplo a Linha Ferroviária da Beira Alta, não se concretizam os investimentos públicos em infraestruturas e a agricultura familiar continua ainda à espera da concretização de medidas específicas à sua valorização.
Alternativa e não promessas vãs
Para lá dos sucessivos anúncios de milhões com que o Governo minoritário do PS com regularidade nos brinda e das caricaturas expressas em afirmações altissonantes como a maior Reforma da Floresta desde D. Dinis ou a maior limpeza da floresta dos últimos 900 anos, tal situação é traduzida no desalento de bombeiros com quem se fala de Norte a Sul do País. Ou na sentida afirmação de um pequeno agricultor: «Quando eu morrer, isto acaba tudo.»
Palavras que, expressando o sentimento que grassa em boa parte dos atingidos, seja nos concelhos do Pinhal Interior, seja em todos os concelhos das zonas rurais do País, exigem – mais do que o espalhar de esperanças vãs que acabem por se traduzir numa mão cheia de nada e noutra de coisa nenhuma, ou de fixar datas para a resolução dos problemas –, a ruptura com a política de direita e a construção, também para a floresta e para o mundo rural, de uma política alternativa patriótica e de esquerda.
www.avante.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário