Fale-se no Algarve ou nos algarvios e, de imediato, se ergue uma miríade de lugares-comuns que fundamentam o conhecimento de quem nos desconhece por completo..
Sempre foi assim ao longo da história e grave é a distorção da nossa essência de gente por essas eminências pardas paridas de um poder central, de si provinciano e periférico, dos traumas dos ultimatos britânicos e das perdas de Brasil e de outros mundos dados ao mundo. O discurso oficial do poder central sempre foi o da invenção dos lugares-comuns e de estereotipar os povos e gentes por si dominados. Povos com milenar percurso e com a mais bela das diversidades, de onde lhes advêm a riqueza – não apenas a material, mas, essencialmente, a riqueza histórica, cultural, social, linguística, etnográfica ou antropológica. A riqueza da raison d´être dos povos. E nesses povos, o algarvio.
Povo caldeado durante milénios pelos que aqui chegaram e se radicaram, mas definido sobretudo pela existência milenar das gentes, das suas formas de vida, do aproveitamento racional dos recursos do território, do equilíbrio (forçado ou voluntário) dos nativos com as formas de poder chegadas e exógenas. Se, da Idade do Ferro aos Fenícios, Cónios e Turdetanos, de Roma e sua queda aos Visigodos, aos Árabes (com a sua chegada, permanência e partida) e à reconquista cristã e deste reino dentro do reino, o poder, traço comum, assumiu as formas administrativas e legais que regraram a região, mas tendo sempre as gentes algarvias, e o Algarve, no fim desta equação.
Às mutações da ordem política vigente, permaneceu o sentido de perenidade do povo algarvio, com a sua particular forma de organização e de modus vivendi. Uma riqueza que advêm não de traços comuns com que o exterior nos vê, mas desta mesma essência de diversidade que temos entre localidades separadas por poucos quilómetros, entre sotaventinos e barlaventinos, entre serranos e litorâneos, entre os mesteres – os trabalhadores rurais, os pescadores, todos sem excepção. A nossa diversidade é, justamente, a nossa unidade milenar. Não a unidade de lugares-comuns e esquadria crua com que os outros procuram definir-nos, mas sim a unidade de gentes de luta que nas suas atividades construíram as vidas, e da exemplar constância como os recursos de que dispomos, foram sempre equivalentes ao nosso sucesso.
Que o poder central formate, ao longo da História, o Algarve e os algarvios nessa padronização injusta e desconhecedora da nossa natureza e memória, é quiçá uma forma de colonização que, sendo sub-reptícia, não deixa de ser igualmente agressiva. Mas que a criação do poder central passe por uma ideia estática e preconcebida do povo algarvio e que este mesmo povo tenha, por força da falácia que lhe é imposta, esquecido a sua memória, a sua importância e a sua capacidade – esse sim é um processo desastroso que atenta terrivelmente a alma mater e à autoestima que devíamos nutrir, por força da nossa história e pela nossa força.
Não esqueças, irmão algarvio, que em tempos milenares da tua história, foste o mais apreciado garum romano, vendido, na capital do império, mais caro que ouro às nobres famílias patrícias; que foste os néctares e ambrósias louvados pelos poetas árabes nascidos no teu seio e que cantaram a tua beleza; que foste água das tuas fontes e madeira dos teus bosques – limpos até à última árvore – para os navios da expansão marítima portuguesa; que foste gentes indómitas embarcadas nessas mesmas naves, como o piloto Gonçalo de Lagos; que foste a força das tuas pescas e a abundância da tua agricultura, quando além dos recursos com que sobrevivias muitos mais te levavam, sem que existisse, até ao século XVI, proteção às tuas costas, ao teu comércio. Que te levantaste de sismos enormes – não apenas o de 1755, mas anteriores, como no século XVII ou em 1722. Que foste os indomáveis olhanenses do caíque “Bom Sucesso” rumo ao Brasil, em 1808. Que foste a melhor cortiça do mundo, no teu montado já extinto; que foste as bolsas de atum, da sardinha e de tantos outros pescados e de uma numerosa frota de pesca, que faziam a força da tua indústria conserveira; que foste as tuas hortas e pomares, onde em condições determinadas, tal como no Brasil ou em Angola, havia duas produções anuais. Tu és, Al-Muthamid, Ibn Ammar, António Aleixo, António Ramos Rosa, Gastão da Cruz, Casimiro de Brito, Nuno Júdice. Tu és os irmãos Cabreira, Mendes Cabeçadas, Teixeira Gomes, Duarte Pacheco, João de Deus, Bernardo Passos, Maria Keil ou o Remexido e tantos mais dignos da galeria de imortais de Portugal. Todos algarvios…
É deste povo assim digno, destes notáveis, mas sobretudo dos milhares de notáveis anónimos, que, de Sagres a Vila Real de Santo António, de Alcoutim a Odeceixe e dos contrafortes da cordilheira serrana de Monchique – Caldeirão – Espinhaço, pelos xistos serranos, pela argila e calcário do barrocal e pelas várzeas, areias e falésias do litoral sul, das nossas cidades, vilas, aldeias e montes, construíram a pulso as suas vidas, a nossa verdadeira tradição – a do nosso povo, dos nossos recursos, do nosso modo de vida e da nossa memória.
Façamos a devida distinção sobre este conceito de tradição: a legítima e a criada. A tradição legítima por exemplo, foi a que, desde Lisboa, foi abolida com ferocidade, especificamente com a proibição do trajo algarvio por excelência, o «Bioco» das mulheres olhanenses, na segunda metade do século XIX. A tradição criada foi aquela que promoveu, por exemplo, uma falsa imagem das qualidades da região como importante base para a campanha do trigo, na região serrana onde, sem existirem terras com qualidade e clima adequado à cultura cerealífera, a repetição de erros de sobre-exploração e falta de arroteamento, em nome de um aumento produtivo que permitisse criar a ilusão de uma independência alimentar do país, causou a total exaustão e falta de produtividade dos campos.
As tradições que muitos algarvios pensam como suas, mas que são grosseiras montagens impostas pela expressão da política de espírito do Estado Novo e do seu criativo António Ferro. Nos tímidos inícios do turismo na região, em finais da década de 40 do século passado, esta política criou o Algarve enquanto produto destinado aos turistas dos poucos hotéis então existentes, numa miscelânea e amálgama de elementos de trajo que vão da fórmula do lenço sob o chapéu, num sucedâneo neoimpressionista de mondadeira, e das meias rendadas importadas de um campino em trajo domingueiro.
E inclusive pela invenção do próprio folclore algarvio pobre e minimalista de modinha adornado de ferrinhos, nessa criação tão abstrata quanto de mau-gosto, dos ranchos folclóricos – que nunca haviam feito parte da cultura algarvia. E assim, nessa falácia do vendável do Portugal salazarista estereotipado, até a forma de dançar os corridinhos, especialmente o frenético Alma Algarvia como hino do Algarve, tiveram que ter coreografia inventada a partir das rotações constantes dos dançarinos, quais os das danças de dervixes, em terras do Oriente Médio.
Talvez a charola de Reis não fosse tão apelativa por ser mais parada que o corridinho. E talvez a normalidade das vestes das gentes trabalhadoras do Algarve não combinasse bem com a moldura pretendida para o Portugal dos Pequeninos e a Exposição do Mundo Português, de 1940. Hoje, cai esta tão antiga tradição algarvia das charolas, morrendo quiçá porque, em termos do turismo, não interesse revelá-la como uma das mais arraigadas formas de convívio entre várias comunidades algarvias. Talvez a recuperação de uma verdadeira tradição algarvia como os bonecos dos Maios, que durante os anos do fascismo no nosso país, pelo contexto cáustico das suas mensagens, não fosse interessante ao tal poder, seja afinal um afirmar da nossa identidade, despida de qualquer interesse.
Diga-se que, segundo interesses externos, a invenção do estereótipo da nossa região chegou ainda mais além e de forma mais chocante – como foi o caso da chaminé algarvia. Ex libris de elemento arquitetónico da região, na sua atual complexidade de conceção industrial, por molde com pináculos e complexas formas geométricas e cores, nada tem que ver com a tradicional chaminé algarvia, onde a existir rendilhado, este se obtinha com a disposição em forma simétrica de meias telhas ou ladrilhos, colocados opostamente uns contra outros, sob um eixo de simetria. A estas chaminés, que primavam pela simplicidade, deu-se-lhes um cunho distinto, enquanto se afirmando que certos marmanjões cónicos, hexagonais e de outras formas, são a pureza algarvia.
Estas chaminés, não sendo necessariamente elemento sine qua non característico da arquitetura tradicional algarvia, até porque a forma da casa algarvia contempla uma enorme variedade de exemplos – desde as faladas casas de taipa de formato cilíndrico, com telhados de colmo, até às casas com açoteias ou da rusticidade arquitectónica rural que, não sendo exclusiva do Algarve, são constantes na região sul de Portugal e até nas mais diversas paragens do Mediterrâneo.
O próprio turismo foi sujeito à invenção da tradição do sol e praia. Em tempos mais remotos, a promoção turística das terras algarvias assentava na saúde, através de águas de fontes termais e as estâncias das mesmas. Esta sua razão de existência assumia um carácter que prevalecia pela qualidade e diferenciação, fosse em Monchique, Tavira ou Cachopo.
Verifica-se assim a proposta ideológica de substituir a bela complexidade da nossa riquíssima diversidade histórica e cultural, por um padrão estático toscamente simplista e renegador das virtudes do que somos, diversificadamente, como povo – das nossas atividades e modos de vida; dos nossos recursos, das relações entre nós próprios e com o mundo. Em suma, a imposição e desenvolvimento deste turismo pelas decisões do poder central e assentimento de gente algarvia (talvez não merecedora de o ser), para agudizar e eternizar a tradição da ditadura da mono-atividade turística, com impacto assinalável no PIB nacional, mas que vende em nome do lucro de muitos grupos estrangeiros ou nacionais que recorrem a offshores sem que qualquer dessa riqueza se traduza na região onde é produzida – na qualidade de vida dos algarvios, na dignidade dos trabalhadores sujeitos à exploração e sazonalidade e na constatação que o sempre arguto cacique algarvio, marcando o seu conjunto de interesses, continuará a manter a muita tradicional forma de actuar, proclamando cá pelo feudo gritos de Ipiranga contra o poder central, no relativo a questões como as portagens da Via do Infante, requalificações de estradas como a EN 125 ou reabilitação de portos marítimos. Depois, porém, como pequenos algarvios na grande cidade e na Assembleia da República, fora da zona de conforto (e das mentiras apregoadas) na região, aprovam as medidas que a lesam , abstêm-se quando deveriam tomar posição ou votam, junto dos que nos prejudicam, contra a revogação das medidas que violentam o Algarve e os algarvios.
Sabemos, pois, nestes tempos que temos a tradição de ser donos “do mar azul, das areias, dos trezentos e tantos mais dias de sol, das unidades hoteleiras de excelência, de pratos tradicionais algarvios (se a nossa gastronomia não fosse tão rica que a cada três quilómetros difere o que é tradicional e onde até a sardinha assada nacionaleira é tradicional do Algarve”. Todos lugares-comuns, para justificar a mono-atividade turística algarvia, enquanto matriz única da inevitabilidade de toda a riqueza de uma região, presente e futura.
E escondidos noutra tradição de lugares-comuns, menos convenientes de serem apregoados, ficam os dos salários de miséria, da ausência de direitos, o de determos, na proporção nacional, uma das maiores taxas de desemprego e um panorama de precariedade absoluta, e o do agravar de uma emigração que nos sugou uma geração jovem, capaz e competente, especialmente na nossa região.
De entre outras tradições inventadas, temos a do ataque cego à pesca tradicional, com a falta de apoio à colectivização da mesma enquanto recurso gerador de riqueza e de postos de trabalho; as de que a agricultura na região só se pode basear no modo biológico e nas pequenas explorações, mais a gosto de pequena horta como produto acessório dos turismos rurais, destinado a dar a sensação de férias úteis à Humanidade do yuppie centro-europeu que se julga, durante duas semanas, como estando a retomar a vida ligada à terra. E isto quando, essencialmente, as tecnologias e serviços que vende na sua vida profissional durante o ano, delapidam predatoriamente mais recursos naturais e humanos que sejam eventualmente necessário, na lógica do capitalismo globalizado onde todos, no geral, vegetamos.
Das tradições inventadas que defendem a Ria Formosa, tendo-lhe deixado fechar barras naturais e abrindo outras em sentido contrário ao das correntes marítimas e ventos dominantes, centenariamente. E que, nos últimos quinze anos, assorearam a ria, mataram viveiros, liquidaram mariscos, acabaram com a pesca dentro dela e onde a tradição do conhecimento dos antigos, que tanto alertaram estudiosos sobre certas pertinentes questões, foi desprezada.
A tradição inventada da brutal especulação imobiliária que tornou Quarteira, Monte Gordo e um pouco de toda a costa algarvia em caixotões de cimento com vista para o caixote em diante, que, esse sim, tem vistas para o mar. Da especulação que empregou, na construção, milhares de pessoas que haviam deixado a pesca e agricultura, pela morte destas atividades, em tempos que a União Europeia dera verbas para modernizar. Mas que nos bolsos das mentalidades curtas de armadores e proprietários de terras, assoberbados por dinheiro fácil, se modernizaram em abandonos de campos e abates de embarcações de pesca.
Uma mais grave, quiçá, que foi a tradição inventada das demolições a esmo na zona das ilhas barreiras de Olhão, quando as gentes que lá nasceram, viveram, tiveram seus filhos e lá morreram e querem continuar a morrer lentamente, sem algum dia lhes ter sido dada a dignidade que mereciam, como no caso dos Hangares de Olhão, da Culatra e outras. Ou a invenção da tradição de colocar pontões a Barlavento, com a erosão das falésias e com o desgaste e arrastamento de areias, que vão depois assorear a Sotavento.
A invenção das tradições que brilharam na requalificação da Praia Maria Luísa, arruinada para que existisse mais espaço para o turista desfrutar da sua beleza. Ou as tradições que deixam património de valor artístico e arquitetónico incalculável, como o Palácio da Fonte da Pipa ou outros, arderem por falta de intervenções adequadas.
Ainda da tradição inventada para uma região sem estradas fundamentais ao transporte de pessoas e bens. Sem vias rápidas alternativas gratuitas e fundamentais para a atividade económica da região e com a EN 125 marcando a sua lei de perigo constante e sinistralidade. E de como se impõe uma restruturação e reabilitação do conjunto de estradas regionais, bem como os desassoreamentos das vias navegáveis tanto da costa, como dos rios, o que, do ponto de vista do investimento em obras públicas, permitiria gerar milhares de postos de trabalho. Ou ainda do que será necessário para quebrar outra tradição inventada – a que enuncia a falta de capacidade de resposta e de infraestruturas que permitam um acesso de primeiro mundo à saúde, aos habitantes desta região densamente povoada e frequentada, anualmente, por várias centenas de milhares de turistas.
Assim, e sem mais me alongar, porque longa vai esta opinião mas assim se impunha, quando leio e vejo que algum do povo desta região, entregue às mentiras que lhe são impostas mas que se alça para defender a invenção dessas mesmas mentiras pelos que o submetem a tudo o que atrás mencionei. E vindo estes demonizar o petróleo ou as estufas hidropónicas. Ao primeiro, pelo suposto facto dos mares e praias do Algarve, com a sua exploração, se virem a tornar um tanque de despejo de hidrocarbonetos. Quanto às estufas (que, em Espanha, cometeram o gravíssimo pecado de reaproveitar, de forma otimizada a água da condensação das noites do deserto de Almeria e que geraram mais de 50 mil postos de trabalho direto e outros tantos indiretos, numa das regiões com maior desemprego do nosso país vizinho), por cá vai vingando o pretexto que a inestética visão das estufas estraga as paisagens do turismo, em regiões de barrocal e serrania praticamente desertificadas de população e onde, curiosamente, estas estufas do século XXI até são mais jeitosas que as estufas que pelo Algarve se espraiavam nos anos 70 e 80 do século passado.
Sobre esta ignorância dos nossos, que lhes é vendida pelo cacique ou pela voz e reflexão maniqueísta de alguns que se julgam iluminados entre tantos, e que, por sua vez, são no combate ao poder central, vítimas incautas do mesmo.
Ontem como hoje, nos corredores de Lisboa pretende-se fomentar a anulação da consciência da nossa grande força enquanto região produtiva, diversificada e não entregue apenas a um monopólio qualquer, que gere capitais que não servem depois ao desenvolvimento do Algarve. A estes usurpadores, a suspeita remota de qualquer intenção de que o sector produtivo se pretenda reformular e, por consequência, se consolide a autonomia do Algarve – aspiração que sempre nos coube por inteiro e tem de ser a exigência de todos nós, em relação ao nosso destino comum – é motivo para desencadear a intoxicação mediática sustentada nas tais tradições inventadas. Nunca haja um algarvio que, à menor consciência, venha de forma incauta defender a sua região e o modo de vida da sua comunidade, sustendo como preocupação fulcral as paisagens, a pretexto destas serem parte total da qualidade de vida da região. As mesmas que serão depois, de modo espúrio, capitalizadas como portfólio da monoactividade turística da região… É que se as paisagens do Algarve são uma riqueza de todos nós, elas não podem ser, só por si, apenas um retrato estático cujo desejo de manutenção implique o sacrifício de um povo que continua a sofrer do descaso histórico do poder. Pois para que a paisagem se cristalize, não pode acontecer que a vida de pessoas e seus filhos tenha que se cristalizar igualmente – e tal tem vindo a suceder desde há mais de quatro décadas, em nome do Turismo e do Algarve do sol e praia.
João Tomás Rodrigues | Técnico Superior de Património Cultural
Fotografias: Artur Pastor (media kit da exposição dos Encontros de Fotografia de Lagoa – ENFOLA 2015).
barlavento.pt
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