A comissária europeia do Comércio assume "preocupação" face aos "sinais" de que a administração Trump quer "desvincular" os EUA da Organização Mundial do Comércio e que pretende afastar Bruxelas dos acordos bilaterais a assinar com os países europeus.
Em entrevista ao DN e à TSF, Cecilia Malmström fala ainda das "dificuldades" da UE, prestes a iniciar as negociações do brexit. A comissária chega hoje a Portugal para um diálogo com os cidadãos sobre a política comercial e para debater o Livro Branco para o relançamento da UE, nos 60 anos do Tratado de Roma, num encontro a realizar, às 12.00, na Sala dos Espelhos do Palácio Foz
Está preocupada com a abordagem dos EUA em relação a alguns acordos internacionais de comércio, nomeadamente quando um conselheiro do presidente americano diz que os EUA vão abandonar a Organização Mundial do Comércio (OMC) e cancelar o Acordo de Parceria Transpacífico (TPP) ou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA)?
Donald Trump, durante a campanha, disse que não iria assinar o TPP e que iria renegociar o NAFTA. Foi isso que anunciou e é o que está a fazer agora. Prometeu isso aos eleitores e agora tem de o fazer. São preocupantes esses sinais, de quererem desvincular-se da OMC. Porque precisaríamos que os Estados Unidos fossem fortes nesta estrutura. Trabalhamos muito com eles. Ainda não vimos nada de concreto. Quando estiverem plenamente em funções, iremos abordá-los para ver como poderemos cooperar. Esperamos que continuem a ser um ator forte na OMC. Existem regras internacionais. Precisamos que todos os países trabalhem de acordo com essas regras. E isso também é bom para os EUA.
É possível negociar acordos de comércio na União Europeia isoladamente, país a país, como um responsável americano sugeriu?
Não. A União Europeia é uma unidade. Por isso se eles querem substituir o acordo de Parceria Transatlântica têm de fazê-lo com a UE. Vamos ter de lhes explicar também isso.
Esse tipo de afirmações pode ter por base alguma ignorância?
Para ser honesta, nem sempre é fácil, até mesmo para os europeus, perceber como funciona a União Europeia. Talvez eles não tenham tempo para se debruçar sobre isso. Ficaremos felizes se pudermos explicar-lhes. Veremos se, no entretanto, haverá um retomar das discussões para o TTIP. Neste momento estão congeladas. Teremos de esperar até que a administração americana esteja completamente em funções. O que, provavelmente, levará mais um ou dois meses.
Acredita que depois disso as negociações para o TTIP poderão avançar?
Não faço a mínima ideia. Também dependerá deles. Veremos.
Neste período, habitualmente caracterizado como desafiador, que expectativa tem sobre os encontros em Roma em relação ao futuro da UE?
Penso que, antes de mais, é uma oportunidade para os Estados membros e para os seus líderes, para se lembrarem que, sim, há desafios e dificuldades na UE. Mas estarmos juntos tem também muitas vantagens. Conseguimos muito no que diz respeito à paz, à prosperidade económica, tendo um papel de liderança no combate às alterações climáticas. Esta cimeira serve para lembrar o que já conseguimos e para começar a pensar um pouco no futuro e em como organizar a União que temos, para que funcione melhor e como se pode interagir melhor com os cidadãos, para pensarmos a que outras coisas deveremos dar prioridade. E, isto é algo que nos leva a uma discussão mais ampla, por toda a UE. Mas é também um momento para refletirmos, que é algo muito bonito o que criámos juntos.
... e o Livro Branco é a resposta necessária para os desafios que a UE tem pela frente?
O Livro Branco não dá qualquer resposta, mas alimenta a discussão que está a ser agora levada a cabo. Que tipo de Europa queremos, como deveremos focar-nos no futuro. Esta é a nossa contribuição para a discussão, que espero venha a ter lugar em muitos países. Eu e os meus colegas, na Comissão Europeia, mas também muitos ministros e muitas outras pessoas estão empenhadas, no Parlamento, na sociedade civil, entre os cidadãos, sindicatos, organizações de comércio ou empresas em darem os contributos para as questões que foram colocadas e alcançarmos o que é preciso agora. Será um período de discussão interessante. Talvez seja o que precisamos agora.
Numa altura em que são precisas respostas, a Comissão lançou cinco perguntas. Significará isto que já não é capaz de dar respostas?
Temos o brexit, temos dificuldades, temos eleições, temos os partidos populistas que ameaçam retirar os países da União Europeia. Por isso, não me parece que a resposta correta da Comissão seja apresentar um decreto a dizer o que devemos fazer. Em vez disso está a empenhar-se largamente a todos os níveis, perguntando que tipo de União querem. Claro que tem um ponto de vista sobre isso. E eventualmente faremos propostas. Mas penso que agora é o momento para debater, para refletir e nos empenharmos amplamente. De outro modo, teremos os críticos a dizerem que a Comissão decidiu sem ouvir as pessoas.
Seria capaz de apontar um cenário preferível?
Talvez até fosse capaz. Mas não é o momento para o fazer. Penso que essa resposta precisa de estar enraizada numa ampla discussão com os cidadãos, em que pode haver pontos de vista diferentes.
Em Portugal, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista tentaram impedir a adoção do Acordo de Comércio com o Canadá (CETA) pelas leis nacionais. Vê isto como uma mudança em Portugal no apoio à política europeia de comércio?
Esse é um assunto com o qual o governo português tem de lidar. Tivemos sempre o apoio muito forte do governo de Portugal durante as negociações para o CETA. É um bom acordo também para Portugal.
Quanto uma economia como a portuguesa pode beneficiar com este acordo?
Na realidade, muito. Portugal é um pequeno país, que sempre dependeu do comércio ao longo da história. Eu venho de um país semelhante, do Norte da Europa, também muito dependente do comércio. E, com o CETA, haverá um aumento do mercado de serviços, do mercado dos contratos públicos. Haverá um levantamento das tarifas, que são extremamente onerosas para as exportações portuguesas, nomeadamente em produtos como o calçado, máquinas e os químicos. O setor alimentar também beneficiará muito. Serão eliminadas tarifas nos vinhos, em alguns queijos que já são exportados por Portugal. Este acordo reconhece 20 denominações de origem em Portugal. O vinho, as amêndoas, a fruta, os queijos serão protegidos como produtos portugueses únicos. E isto é bom para as exportações. O acordo também oferece a possibilidade de, por exemplo, arquitetos ou contabilistas poderem mais facilmente trabalhar no Canadá.
Que resposta dá àqueles que pedem mais transparência e acusam Bruxelas de secretismo nas negociações com o Canadá?
Essas acusações não são propriamente justas. Todos os documentos das negociações com o Canadá estão online há vários anos. Fizemos alterações ao acordo, tendo em conta os pedidos dos cidadãos. As negociações começaram há sete anos e os documentos estão online há muito tempo. As negociações que estamos agora a levar a cabo foram alvo de grandes reformas, para as tornar mais transparentes. Temos publicado na internet os resumos de todas as negociações, para que todos as possam ver. Temos publicado as posições europeias, documentação de background, as propostas europeias que nós enviamos para os Estados Unidos e para qualquer outro Estado com quem estejamos a negociar. Por isso penso que mudámos muito a maneira como as negociações são conduzidas. Mas, obviamente, quando estamos a negociar questões muito difíceis não podemos ter lá as câmaras de televisão. Mas podemos incluir os cidadãos muito mais do que se fez no passado. Os cidadãos querem participar e isso é muito bom. Estamos realmente a fazer que as negociações de comércio sejam muito mais transparentes. É algo que é absolutamente necessário. Sou completamente a favor disso.
Está em condições de garantir que estes acordos não reduzem os padrões europeus em matéria social, ambiente, segurança alimentar ou saúde?
Se estamos a falar do Canadá, devemos saber que é um país com padrões muito elevados relativamente aos direitos dos consumidores, tal como a Europa. Mas isso está especificamente incluído no acordo. Vamos monitorizar os acordos de comércio, tal como sempre fazemos. O Conselho Europeu, que deu luz verde ao acordo, e o Parlamento, que o aprovou com larga maioria, também vão estar atentos. Estamos confiantes em relação a isso. Faremos um acompanhamento regular para nos assegurarmos que nada irá limitar, nem ameaçar os padrões ambientais ou de consumo na Europa - no acordo com o Canadá, mas também no futuro. Isto é claro como a água, em todos os mandatos que recebi do Conselho. Posso assegurar que isso [redução dos padrões] não irá acontecer.
A Comissão Europeia está a negociar cerca de 20 acordos de comércio. O acordo com o Japão tem sido a prioridade. Mas, para Portugal, o acordo com o Mercosul poderá ser dos mais interessantes. Quando é que a Comissão espera ter este acordo concluído?
Queremos fazer progressos em todos os acordos que estamos a negociar. Mas devo dizer que, este ano, além do CETA entrar em vigor, vamos concluir o acordo com o Japão, com o México e com o Mercosul. Estes serão os mais importantes que queremos concluir este ano. Estamos a trabalhar muito arduamente, com os nossos parceiros, para o conseguirmos.
Quando o ministro da Economia brasileiro diz que o acordo entre a UE e o Mercosul fica concluído em 2017, não está apenas a ser otimista, é uma realidade que vai acontecer?
É isso que pretendemos. Esta semana temos novas negociações. Estamos a fazer muitos progressos. O nosso objetivo preliminar é termos uma conclusão política até ao fim do ano. Mas teremos de ter um bom acordo para apresentarmos aos Estados membros e ao Parlamento Europeu. Poderemos precisar de um pouco mais de tempo para as "tecnicidades". Mas este é o nosso objetivo, que é amplamente partilhado com os nossos quatro parceiros e amigos do Mercosul.
Quando é que o acordo pode entrar em vigor?
Primeiro tem de estar completamente finalizado. Depois tem de ser transcrito do ponto de vista legal, para nos assegurarmos de que está de acordo com as nossas leis. Depois tem de ser traduzido. Com todos estes processos falamos de, pelo menos, mais um ano.
Como garante que, depois do acordo com o Mercosul, os cidadãos da UE continuam protegidos de fraudes como a que ocorreu agora com a carne brasileira?
Estamos a acompanhar de perto as investigações em curso no Brasil. Foi na sequência de uma intensa ação diplomática e em resposta a um pedido explícito da União Europeia, que as autoridades brasileiras confirmaram a suspensão das licenças de exportação, dos estabelecimentos envolvidos no inquérito. É importante esclarecer que esta questão não tem qualquer ligação direta com as negociações comerciais em curso entre a UE e o Mercosul. Esperamos que essas negociações cubram produtos agrícolas e incluam um capítulo moderno sobre medidas sanitárias e fitossanitárias, estabelecendo um quadro regulamentar rigoroso para todas as importações da UE provenientes dos países do Mercosul. Um futuro acordo de comércio livre entre a UE e o Mercosul não diminuirá, reforçará os nossos elevados requisitos regulamentares e normas de segurança alimentar para as importações agrícolas.
Que resposta daria a quem critica o acordo com o Mercosul, dizendo que deixará a porta da UE aberta para a entrada de produtos poucos saudáveis, como por exemplo carne fora de prazo?
A Europa tem os mais altos padrões do mundo quando se trata de segurança alimentar e estes padrões não estão em negociação em qualquer acordo comercial. Qualquer país que pretenda exportar para a UE, terá de assegurar que os seus produtos satisfazem essas normas, com ou sem um acordo comercial.
As mudanças de governo no Brasil e na Argentina têm alguma influência no andamento das negociações?
As mudanças de governo na Argentina fez que as coisas avançassem bastante. Eles estão muito empenhados nas negociações. O governo brasileiro também está muito empenhado. O que vai acontecer em futuras eleições, continua por se saber. O acordo é importante para a economia e para a sociedade no Brasil, na Argentina e também no Uruguai e no Paraguai. É também uma forma de nos aproximar das pessoas daqueles países. É um acordo económico mas também é um acordo estratégico.
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