Está em causa, diz na acção à qual o PÚBLICO teve acesso, uma casa que “sempre foi habitada por juízes a exercer funções na comarca de Cascais”. E o ministério confirma que sempre foi esta a sua utilização. Helena Mesquita Ribeiro não desempenha actualmente funções de magistrada, apesar de ser juíza de carreira. Tomou posse no actual Governo em Novembro de 2015.
A juíza que recorreu ao tribunal diz que o processo de atribuição da casa, localizada no centro de Cascais, tem várias ilegalidades e viola vários princípios, incluindo o da transparência. Algo que o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), tutelado por Helena Mesquita Ribeiro, contesta, considerando a acção desprovida de fundamento.
Em resposta a várias perguntas do PÚBLICO, o ministério insistiu que “não existem casas de função especificamente destinadas a magistrados”, mas apenas “um conjunto de imóveis cuja gestão se encontra confiada ao IGFEJ e que se destina a fazer face às necessidades do ministério, sejam elas quais forem, em cada momento”. Questionada pelo PÚBLICO através da assessoria de imprensa do ministério, a secretaria de Estado não se pronunciou.
Em Agosto passado, a magistrada requereu que lhe fosse atribuida a casa. Nessa altura foi informada de que a habitação já se encontrava ocupada. O ministério reconheceu ao PÚBLICO que o imóvel esteve “desde o seu início” até 12 de Abril de 2016 ocupado por “magistrados”, altura em que ficou vago, sendo habitado pela governante desde 1 de Julho desse ano. Adiantou ainda que além do pedido da juíza queixosa recebeu um de outro magistrado “em 12/10/2016, indeferido pela mesma razão”.
Helena Mesquita Ribeiro tem residência permanente em Amarante e encontra-se deslocada em Lisboa. Por isso, pediu em Dezembro de 2015 à ministra da Justiça, Francisca van Dunem, que lhe fosse autorizada a “atribuição de habitação por conta do Estado”, um direito previsto num decreto-lei de 1980, entretanto revisto, e que abrange os “membros do Governo que não têm residência permanente na cidade de Lisboa ou numa área de 150 quilómetros”. O hábito tem sido, porém, o da concessão de um subsídio a estes governantes.
Ministério atribui duas casas
A ministra autorizou a atribuição da casa a 16 de Dezembro de 2015 e, a 22 desse mês, o IGFEJ afectou ao gabinete da secretária de Estado um apartamento, localizado em Loures, vazio desde 2007. A 6 de Junho do ano passado, sem que tal fosse formalmente pedido, os serviços do instituto propõem que a governante mude para uma casa de Cascais, que ficara devoluta em Abril com o falecimento do juiz que a habitara mais de uma década.
Uma funcionária justifica a sugestão com o facto da casa, situada perto do mercado de Cascais e a uma curta distância do tribunal, ter “características e tipologia mais adequadas à satisfação” das necessidades e por, contrariamente ao apartamento de Loures, não se encontrar “em processo de alienação”. A 17 de Junho o conselho directivo do IGFEJ aprova a atribuição num despacho assinado só pelo seu presidente, Joaquim Rodrigues. A casa, garante o instituto, foi ocupada por Helena Mesquita Ribeiro em Julho. Só em Agosto de 2016 a juíza de Cascais pediu a atribuição desta mesma casa ao IGFEJ justificando que “recentemente” teve conhecimento do falecimento do colega, através da publicação de um obituário no site do Conselho Superior da Magistratura. “Inexiste outro juiz de direito em exercício de funções na comarca, com maior antiguidade na carreira (...) que pretenda a atribuição da referida casa de função de magistrados”, argumentou na carta que enviou ao presidente do IGFEJ.
Na missiva explicou que está colocada em Cascais desde 2009 e que nessa altura a casa de função já estava ocupada. Afirmou que perante a inexistência de outra habitação na comarca, arrendou um imóvel e passou a receber o subsídio de compensação que é agora de 620 euros.
O secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), João Paulo Raposo, confirma que esta casa foi ocupada durante muitos anos por juízes. “O juíz que estava há mais tempo naquela comarca era o que ficava com a casa”, afirma. João Paulo Raposo adianta que a juíza de Cascais recorreu ao apoio jurídico disponibilizado aos associados da associação para interpor a acção, mas esclarece que a ASJP não tem qualquer intervenção no processo.
No final de Agosto do ano passado, o presidente do IGFEJ informou a juíza de que “a casa de função pretendida se encontra ocupada desde 1 de Julho” e compromete-se a informar a magistrada quando ficar disponível. A juíza não se conforma e a 6 de Setembro solicita uma cópia do processo de atribuição da casa. Mais tarde pede outros documentos em falta como o termo de entrega da casa, uma formalidade prevista na lei. Mas o instituto considera a formalidade cumprida com um auto de afectação emitido a 1 de Julho e assinado pelo presidente do instituto e pelo chefe de gabinete da governante.
Só a 25 de Outubro o instituto rejeita formalmente o pedido da juíza feito em Agosto, “em virtude de nessa data a casa não se encontrar disponível para atribuição”. Numa carta com seis páginas, na qual o IGFEJ faz uma análise exaustiva das casas que possui na zona, da sua ocupação e do estado de conservação, informa a magistrada de que “não dispõe de casas de função devolutas que reúnam condições de habitabilidade”. Isto porque as dez que se encontram vazias sofrem todas de “degradação e de anomalias”, que implicavam a realização de obras.
O princípio da transparência
Na acção judicial, a juíza pede a anulação da deliberação do IGFEJ que atribuiu o imóvel a Helena Mesquita Ribeiro e a que indeferiu o seu pedido, actos que considera “ilegais a vários títulos”. Argumenta que a casa “sempre foi habitada por juízes a exercer funções na comarca de Cascais”, onde foi sempre “muito pretendida”. Diz que pensa saber que a secretária de Estado habita a moradia “desde Setembro de 2016” e contesta desde logo não ter sido avisada de que o imóvel tinha vagado, o que, diz, viola o princípio da transparência. Sustenta que foi igualmente violado o princípio constitucional da participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes disserem respeito.
A magistrada, que refere ainda que “tudo aponta para não existir deliberação” do IGFEJ a “afectar a referida casa”, diz ainda que também “parece não existir a atribuição da casa em causa à secretária de Estado” — mas sim ao seu gabinete — e “parece não existir” o tal termo de entrega. “Tudo isto denota, claramente e além do mais, o desrespeito mais uma vez do princípio da transparência a que a Administração Pública deve respeito.”
O ministério insiste que “o IGFEJ não ‘classifica’, a priori, as casas de Loures ou de Cascais como casas de função para magistrados ou para outros agentes do Estado, porque pura e simplesmente não existe qualquer ‘classificação’ legal desse tipo”. Salienta que “uma casa que hoje esteja atribuída a um magistrado pode, amanhã, sê-lo à Polícia Judiciária, mais tarde a uma comarca para servir de arquivo, depois a um membro do Governo da área da Justiça”. E acrescenta: “Os usos passados são irrelevantes para esta questão — estes em nada determinam o uso que lhes é, mais tarde, atribuído.”
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