António Guterres, secretário-geral da ONU, censurou um relatório que denunciava o regime de apartheid construído por Israel, expressão institucionalizada da dominação e opressão que exerce sobre o povo palestino. Com a sua atitude, alinhou com o país que é o maior violador de resoluções da ONU e que o faz impunemente. Um secretário-geral na linha dos seus antecessores recentes, ou pior ainda.
O mandato do SG da ONU começou mal, no que respeita ao povo palestino, com a proibição dum relatório elaborado pela Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental (CESAO) que afirmava: «Israel construiu um regime de apartheid que institucionaliza de forma sistemática a opressão racial e a dominação do povo palestino». Rima Khalaf, sub-secretária-geral da ONU responsável pela CESAO, diz que Guterres lhe exigiu a retirada do relatório e que, perante a recusa de Guterres em reconsiderar, apresentou a demissão dos seus cargos na ONU. O relatório foi logo retirado da página da CESAO na Internet.
O relatório censurado é obra de dois juristas dos EUA. Um deles, R. Falk, foi em 2008 Relator Especial da ONU para os direitos humanos nos territórios palestinos ocupados. Embora Falk seja judeu, Israel «comparou o relatório ao jornal Der Stürmer, um órgão de propaganda nazi» (Le Monde, 17.3.17). Foi por pressão dos governos de Trump e Netanyahu que Guterres mandou retirar o relatório. O embaixador de Israel na ONU saudou a decisão, nestes termos: «Os militantes anti-israelitas não têm lugar nas Nações Unidas. É tempo de pôr fim a estas práticas em que responsáveis da ONU utilizam os seus cargos para promover objectivos anti-israelitas» (Le Monde, 17.3.17).
Faz 70 anos que a ONU decidiu a partição da Palestina em dois estados, um «judaico» e outro «árabe». Da Resolução 181 resultou apenas a criação de Israel, fundado sobre a limpeza étnica da Palestina (o título dum livro do historiador israelita Ilan Pappe). Após 70 anos, os palestinos continuam à espera do seu Estado. Foram 70 anos de crimes de Israel: massacres, perseguições, ocupação, guerras. Crimes não apenas contra o povo palestino, mas contra outros povos da região, e a própria ONU a que Guterres preside. Israel, o maior violador de resoluções da ONU, é um permanente agente de guerra e violência. Ocupa há 50 anos parte do território sírio.
Ocupou durante décadas parte do Egipto e do Líbano. No Líbano, foi responsável por hediondos massacres em campos de refugiados palestinos (Sabra e Chatila); bombardeou instalações da ONU em Qana que albergavam 800 civis libaneses, matando 106 pessoas, incluindo quatro soldados da ONU (1996); matou outros quatro soldados da ONU em 2006, no que o então SG Annan classificou de «alvejamento aparentemente propositado» (BBC, 26.7.06); e em 2015 foi a vez dum capacete azul espanhol (El País, 27.2.15). Em 2014 Israel bombardeou escolas da ONU em Gaza que acolhiam refugiados, matando numerosas pessoas (CBS, 24.7.14). São estas as práticas que «não têm lugar nas Nações Unidas». Não pode haver compadrio com os algozes, nem equidistância entre carrascos e vítimas.
A ONU tem obrigação de saldar a sua tremenda dívida histórica para com o povo palestino. Mas há razões para pessimismo. Após a eleição de Guterres, o jornal israelita Jerusalem Post (10.6.16) titulou: «Novo chefe da ONU é ‘amigo de Israel’», e o ex-PM Ehud Barak disse que «Guterres ajudou Israel na UE e na Internacional Socialista». Agora, parece querer quebrar o isolamento a que os crimes de Israel justamente remeteram esse país. Mais uma machadada na ONU.
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2261, 30.03.2017
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