Nem mesmo a revelação de que o Comité Nacional do Partido Democrata (PD) sabotou a campanha de Bernie Sanders fez o senador do Vermont retirar o apoio político que, no dia 12, entregara a Hillary Clinton. Se já todos sabíamos que as primárias democráticas foram tudo menos democráticas, a fuga de mais de dez mil emails da Comissão Nacional, prontamente atribuída por Hillary à Rússia, veio revelar os requintes anti-semitas e fundamentalistas com que a direcção daquele partido procurou denunciar as raízes judaicas de Sanders ou, pior ainda, expor o seu alegado ateísmo. «Para a minha malta baptista no Sul há uma grande diferença entre um judeu e um ateu», pode ler-se num email divulgado pela Wikileaks em que Brad Marshall, chefe das finanças do PD, pondera a estratégia de ataque a Sanders na comunicação social.
Debbie Schultz, presidente do Comité Nacional do PD e responsável política pela trapaça, foi célere no pedido de demissão e desembaraçada no álibi. Clinton, por seu turno, devolveu o obséquio com a distinção de chefe honorária da campanha. A Convenção Nacional do PD, que terminou esta quinta-feira em Filadélfia, na Pensilvânia, lá coroou Clinton, sem louros nem surpresas, candidata democrata às próximas eleições presidenciais nos EUA. Mas nem a monstruosa retórica de Donald Trump nem a perspetiva de vê-lo na presidência parecem bastar para unir os progressistas em torno de Clinton.
Valendo o que proverbialmente valem, as últimas sondagens realizadas nos EUA à escala federal convergem em dois fenómenos: Trump à frente de Hillary (com os votos de Sanders) e a meteórica emergência de outros candidatos que ameaçam romper o dédalo bipartidista. Segundo um estudo divulgado, esta segunda-feira, pela CNN, Trump recolhe 44 por cento das intenções de voto e Clinton 39, enquanto o liberal de direita Gary Johnson pode chegar aos nove por cento e, à esquerda, Jill Stein, do Partido Verde, poderá ultrapassar os três por cento.
Mesmo que enviesados, os estudos de opinião parecem traduzir um sentimento facilmente palpável na atmosfera política estado-unidense: Clinton encosta-se à direita e fala ao centro; Trump encosta-se ao centro e fala à direita. Esta dinâmica conheceu, na semana passada, momentos catárticos, com ambos os candidatos a anunciarem as respectivas escolhas para vice-presidente. Trump escolheu Mike Pence, governador do Indiana, uma escolha pacífica no universo conservador que aplaca os receios dos republicanos mais moderados. Já Clinton, menosprezando o apoio de Sanders e de metade do eleitorado democrata, escolheu o ex-governador da Virgínia, Tim Kaine, homem de mão de Wall Street conhecido pelas suas posições homofóbicas, contra os direitos sociais, contra a interrupção voluntária da gravidez e a favor da guerra imperialista.
Rumo aos anos vinte?
Entretanto, Trump continua uma perigosa deriva fascizante. Prometendo «fazer do Partido Republicano um partido dos trabalhadores», o magnata cavalga as frustrações da pequena e média burguesia e alimenta-se dos medos da classe trabalhadora branca. Empregos, aumentos salariais, expulsão dos imigrantes, repressão dos negros, supressão da resistência nas ruas: é esta a mensagem do candidato que pode ganhar as eleições. Mas se tão bem se dá a semente do fascismo é porque, semeada na sociedade estado-unidense, encontrou aconchego em leira para o efeito aberta por republicanos e democratas. Daí a aflitiva incapacidade de Clinton para responder a Trump: o governo de Clinton foi o governo da história dos EUA que mais imigrantes deportou; descreveu jovens negros como «super-predadores»; patrocinou golpes de Estado nas Honduras, no Paraguai, na Ucrânia e em outros tantos países; levou a guerra e a morte a 10 mil líbios; atirou a Síria para o caos, provocando meio milhão de mortos; promoveu uma política neoliberal de destruição de direitos dos trabalhadores…
Quer isto dizer que Trump é igual a Clinton? Não, mas as diferenças fundamentais não são retóricas mas económicas: representando diferentes interesses da mesma classe, Trump é mais aprazível aos interesses de sectores, actualmente minoritários, da alta burguesia dos serviços e do imobiliário que procuram uma aliança com a pequena e a média burguesia atascadas na crise. Clinton, não desdenhando nenhum destes propósitos, é mais favorável ao «capital fictício» da especulação financeira e da integração económica prevista no âmbito da NAFTA, do TTIP e do TTP.
Neste estado de coisas, o movimento encabeçado por Bernie Sanders irá entornar-se por todas as candidaturas, reforçando, como nunca desde os anos 20, os resultados das candidaturas à esquerda do PD. Entre as seis principais, a de Jill Stein, do Partido Verde (GP) e apoiada pela Alternativa Socialista (SA); a de Gloria la Riva, do Partido pelo Socialismo e Libertação (PSL) e apoiada pelo Partido Paz e Liberdade (PFP) e pelo Partido da União para a Liberdade (LUP) e a de Monica Moorehead, do Partido do Mundo dos Trabalhadores (PWW). À esquerda, outra minoria conta a velha história de que para evitar Trump é necessário apoiar Hillary. Será Hillary, comparada com Trump, o mal menor? Em quê?
António Santos
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