(1922 – 1975)

Em 4 de Março de 2014 publicou o blogue o meu texto “Pier Paolo Pasolini: paixão e ideologia”(1), no qual se referia sobretudo o percurso de vida do grande cineasta, poeta, ensaísta, dramaturgo e romancista, morto tragicamente na madrugada de 2 de Novembro de 1975. Retornando agora ao autor de “As cinzas de Gramsci”, aqui ficam algumas considerações sobre a sua poesia e a ideologia que lhe está subjacente.

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A primeira poesia de Pasolini (1922-1975), escrita em dialecto friulano, evidencia o experimentalismo linguístico que desde sempre ocupou o poeta, como operação cultural que precedia a operação poética. Como quem se sente atrofiado numa civilização em crise (também linguística), o autor propõe-se saltar o obstáculo recorrendo ao dialecto, usando-o como “língua mais próxima do mundo” rural e arcaico, pré-capitalista e dialectal, não contaminado pelo consumismo, aspecto que constituirá o sinal distintivo da sua grande poesia.

Entretanto dá-se a descoberta de Marx e dilui-se a carga narcisista. L’usignolo della Chiesa Cattolica(“O rouxinol da Igreja Católica”) é, neste sentido, um livro de charneira na sua evolução poética, a passagem de uma perspectiva filológica e linguística à consciência ideológica e à pesquisa de um «espírito lógico e historiográfico» (Paixão e ideologia, 1960). Não surpreende, portanto, que o poema Le ceneri di Gramsci (1957) seja invadido por uma densidade histórica e que aluda ao mundo «orgulhoso e perdido» que se seguiu a 1945. Aqui confluem os aspectos do drama não resolvido a que se refere o próprio Pasolini no seu famoso ensaio “La libertà stilistica”: a crise aberta pelo marxismo na consciência do intelectual burguês; a proposta de uma “racionalidade” em sentido anti-tradicionalista; e o subproletariado romano como problema social e como “pureza” e “inocência” ameaçadas pelo desenvolvimento.

Não se trata, porém, de continuar a tradição progressista do racionalismo e do “realismo crítico” da arte burguesa proposto por Lukács, mas sim de recusar “este” progressismo que o poeta considera corruptor e causa da aculturação que alastrou pela sociedade italiana. Certos temas continuam latentes em La religione del mio tempo(1961), como, por exemplo, os da Resistência, dos escombros e do pranto que se reflecte «neste dias/ em que se levanta o doloroso espanto/ de saber que toda aquela luz/, pela qual vivemos, foi apenas um sonho/ injustificado, não objectivo, fonte/ agora de solitárias, vergonhosas lágrimas». Pasolini repropõe agora a relação antitética entre o “seu” povo e a sociedade que o confina, contraposição explícita entre a “religião” dos subproletários e a “irreligiosidade” do neo-capitalismo e da Igreja. Neste âmbito se inscreve o poema “A um Papa” (pio XII), modelo de poesia-testemunho entre neo-realismo e neo-vanguarda e ponto de partida para alguns dos temas que tratará posteriormente.

Porventura é aqui que se inicia a ruptura com o passado poético e se inscreve uma certa agressividade polémica, por vezes provocatória, e que explodem, de forma decisiva, em Poesia in forma di rosa (1964), fio condutor da sua poética. Uma tal operação resolve-se na auto-condenação («aceito toda a culpa») e no sarcasmo com que denuncia a “fraqueza” dos que «não foram capazes/ de chegar até ao fim». A ironia adquire tonalidades trágicas, consciência da esperança naufragada com a “partida” dos partigiani e a implementação da «social-democracia nascente». Fixa-se então a poética pasoliniana como cristalização de um momento de luta que gradualmente se foi diluindo e degradando: «Quero ver quem tem a coragem de dizer-lhes/ que o ideal que arde secreto nos seus olhos/ se extinguiu, pertence a outro tempo, que os filhos// dos seus irmãos já há anos não lutam/ e que a história cruelmente nova/ trouxe outros ideais, os corrompeu tranquilamente».

O tom provocatório acentua-se, por isso, posteriormente. Basta recordar um famoso, polémico e longuíssimo poema contra os estudantes , escrito em 1968 e evocando um recontro com a polícia: «Vocês têm cara de meninos-bem./ Odeio-vos como odeio os vossos pais./ Quem sai aos seus não desmente […]. Quando ontem em Valle Giulia tiveram recontros/ com os polícias,/ eu simpatizava com os polícias./ Porque os polícias são filhos dos pobres». Estes aspectos polémicos  miram sobretudo a oposição política italiana, a qual, segundo Pasolini, depois de 1945, só procurou integrar-se na ortodoxia: «Ah! bárbaros, meus únicos amigos,/ nenhum homem de Igreja destruiu jamais uma Igreja;/ a luta travou-se sempre entre a ortodoxia velha e a nova» (Trasumanar e organizzar, 1971).

E a polémica, como escândalo, insinua-se por entre os versos de La nuova gioventù (1975), onde o poeta volta a usar, intencional e simbolicamente, o dialecto friulano à mistura com a língua italiana, isto porque o universo campesino acabou por perder a sua “pureza” inicial, uma vez assimilado à cultura burguesa e à sociedade de consumo. Escreveu Pasolini em Scritti Corsari (1975): «o verdadeiro fascismo, já o disse e repito-o, é o da sociedade de consumo e os democratas-cristãos, mesmo que não se dêem conta disso, acabaram por ser os reais e autênticos fascistas de hoje». E neste fundamental livro de ensaios, teve ainda o autor ocasião para analisar o caso português: «Se o seu fascismo tivesse que prevalecer, seria o fascismo de Spínola, não o de Caetano, isto é, seria um fascismo ainda pior do que o tradicional, mas já não seria fascismo. Seria qualquer coisa que já na realidade vivemos…».

Com impressionante ardor cantou polemicamente Pasolini os seus temas segundo uma orientação nacional-popular gramsciana, cujo peso interfere decididamente no seu itinerário poético. Por vezes a sua poesia é panfletária, certamente, mas também nítida demonstração do laboratório intelectual (com uma singular e atípica colocação teórica, a rebentar de heteredoxia) de um dos maiores poetas do nosso tempo.

(texto extraído, com variantes, da introdução à antologia “Pasolini, poeta”, 1978)

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