Investidores arremataram construção monumental no norte da Alemanha; museus sobre história do projeto e seu uso no século 20 podem ser despejados
São quatro horas e meia no trem entre Berlim e a praia de Prora, em Rügen, ilha turística debruçada sobre o Mar Báltico, no norte da Alemanha. Os 308 quilômetros são derrotados lentamente, salpicados pelas cidades hanseáticas da Meckelmburgo-Pomerânia e suas catedrais pontiagudas. Primeiro Rostock. Depois, Stralsund. Somente então, a solidão de Prora.
A chuva fina e as primeiras temperaturas baixas do outono dizem que a alta temporada chegou ao fim. Sou o único a desembarcar de um trem praticamente vazio. O vento cortante logo desfaz qualquer ideia de paraíso, mas em volta há o silêncio, o ar puro, as árvores altas de folhas amareladas, as trilhas bucólicas e as ciclovias confortáveis.
Assim que passam os primeiros casais de bicicleta, cabelos brancos sob os capacetes, roupas impermeáveis combinando cores, a quietude ganha sabor de retiro. Rügen tem 926 km² para explorar nos pedais. É mais que o dobro da Ilha de Santa Catarina. Prora, parada obrigatória das bikes, tem 4,5 quilômetros de praia de areia branca. São 400 metros a mais que Copacabana.
À parte a extensão, porém, o recanto alemão nada tem a ver com o cartão-postal carioca. Basta enfiar os pés na areia gelada e olhar ao redor. Em vez de uma movimentada Avenida Atlântica, a orla é ocupada pelos restos mortais de um projeto faraônico de Clemens Klotz, escolhido como vencedor de um concurso por Adolf Hitler e apelidado sugestivamente de “Koloss von Prora” ou “Colosso de Prora”.
Divulgação / Prora Solitaire
Simulação de vista aérea do novo Colosso de Prora
Simulação de vista aérea do novo Colosso de Prora
Grand Prix de 1937 na Exposição Internacional de Artes e Técnicas de Paris, construído entre 1936 e 1939, o colosso era uma espécie de colônia de férias nazista, dotada de oito blocos com 100 mil m² de edifícios beges com cinco andares cada. Até hoje, com pedaços em pé, outros deitados, outros em obra, outros reformados, o cenário parece um quebra-cabeças político do século 20, mas permanece como uma das principais heranças arquitetônicas do nazismo.
Os números, naturalmente, são fabulosos. O “Colosso de Prora”, deixado de lado por Hitler após o início da Segunda Guerra Mundial, ofertaria milhares de quartos para 20 mil alemães conviverem no balneário. Jovens deitariam nas areias brancas sob a filosofia da Kraft durch Freude (KdF) ou, em tradução livre, Força pela Alegria, uma sub-organização da Frente Alemã do Trabalho, entidade responsável por gerir o tempo livre e as férias dos cidadãos sob os auspícios do Führer.
Em outras palavras, a proposta oficial era usar o KdF-Seebad Prora, nome oficial do trambolho, como centro de treinamento de homens e mulheres para a guerra e, futuramente, para uma Alemanha nacional-socialista pós-guerra. As férias seriam controladas e com propósito: cidadãos felizes e fortes para destruir o inimigo.
NVA Museum
Foto de autor desconhecido mostra Colosso em 1940 ou 1941
Foto de autor desconhecido mostra Colosso em 1940 ou 1941
Cursos preparatórios foram, de fato, ministrados em Prora. As fotos revelam grupos de homens e mulheres sorridentes, servindo a suástica com afinco e, acima de tudo, ignorantes que 70 anos depois, naquele mesmo lugar, em uma cambalhota da história, a arquitetura nazista seria transformada em um hotel de luxo pelas mãos de investidores – entre eles Ulrich Busch, filho de Ernst Busch, um dos mais notórios atores comunistas alemães do século 20.
Recauchutado
Da varanda de um dos lofts do resort Prora Solitaire, Ulrich Busch lembra, com toques de nostalgia, de sua estadia no Copacabana Palace, de cruzar ao volante a Ponte Rio-Niterói e de “muita diversão” – o que rompe, por alguns segundos, a seriedade de seu olhar, tão parecido com o do pai famoso.
Roberto Almeida / Opera Mundi
O empreiteiro Ulrich Busch, na varanda de um dos blocos do Colosso de Prora, agora Prora Solitaire
O empreiteiro Ulrich Busch, na varanda de um dos blocos do Colosso de Prora, agora Prora Solitaire
O cantor Ernst Busch, sobrevivente de um campo de concentração na França e morto em 1980, aos 80 anos, interpretava com o cenho decidido as canções políticas de Kurt Tucholsky e Bertolt Brecht, entre outros – uma delas, Das Einheitsfrontlied (Canção da Frente Unida, em tradução livre), está entre as mais conhecidas do movimento trabalhador alemão. Comunista convicto, dá hoje nome à Academia Ernst Busch de Artes Dramáticas, a principal escola de teatro da Alemanha, em Berlim.
Sobre o pai celebrado até hoje, o empreiteiro Ulrich Busch é apenas lacônico: “Uma grande figura. Na infância foi difícil. Hoje, até é bom pensar que sou filho dele.”
Detalhista, Busch gosta mesmo é de apresentar as variações de plantas dos apartamentos, destilar números, falar com propriedade sobre a resistência da estrutura original, da fundação às esquadrias, e das discussões sobre a Denkmalschutz (lei alemã de preservação de patrimônio), que duraram anos até que um acordo entre governo e investidores permitiu alterações na fachada.
Roberto Almeida / Opera Mundi
A fachada de frente para o mar de um dos blocos do Colosso de Prora
A fachada de frente para o mar de um dos blocos do Colosso de Prora
Por dentro e por fora, a verdade é que pouco resta do visual nazista nos Blocos 1 e 2, comprados por ele em 2006. O bege foi substituído por branco, as paredes dos quartos minúsculos caíram, as janelas simples receberam amplas varandas de vidro temperado, com vista privilegiada para o Mar Báltico. A pequena cidade de Binz, a leste, pontua a paisagem verde, branca e azul.
Nos blocos reformados, as memórias de 1939 descansam camufladas no teto da cobertura, em que as vigas de concreto permanecem cruas, e em alguns pilares internos, que lembram as colunas do Estádio Olímpico de Berlim, construído pelos nazistas para os Jogos de 1936.
Por um momento, parece surreal que esses elementos se misturem a propostas de decoração e tecnologia como “cozinha americana” e “piso com aquecimento controlado”, mas o volume de vendas, além de iluminar o rosto de Busch, afasta questionamentos sobre a viabilidade do negócio.
Roberto Almeida / Opera Mundi
Obra remove as paredes internas, já que os quartos originais eram minúsculos, sem banheiros
Obra remove as paredes internas, já que os quartos originais eram minúsculos, sem banheiros
Com entrega programada para o fim do ano, 90% dos apartamentos de férias e 75% dos apartamentos residenciais foram vendidos. O preço estimado da diária, na versão de 45m², é de 100 euros, cerca de R$ 450. Para arrematar um, é preciso desembolsar entre 4 mil e 10 mil euros (entre R$ 18 mil e R$ 45 mil) por m². O valor depende do bloco e, é claro, da vista para o mar.
“Nossos compradores são 99% alemães. Um deles era soldado na Alemanha Oriental e morou aqui. Foi um dos primeiros a se mudar para cá. Veja só como é a vida”, sorri Busch.
Roberto Almeida / Opera Mundi
Detalhe do projeto original em maquete do Nationalvolksarmee-Museum
Detalhe do projeto original em maquete do Nationalvolksarmee-Museum
Caserna kitsch
Uwe Mayerl, atencioso e bonachão, é ex-soldado da Alemanha Oriental com orgulho. Conheceu Prora em 1963, em férias com a família, e voltou à praia em 1983, quando foi destacado para servir em Rügen. Ao contrário do outro ex-soldado, que vive no Prora Solitaire, seu posto de trabalho, logo ao lado, ainda está ligado ao exército que desapareceu.
Mayerl opera regularmente na recepção do indescritível NVA-Museum (Nationalvolksarmee-Museum, o Museu do Exército Popular Nacional da Alemanha Oriental), uma verdadeira obra-prima do kitsch alemão. “Vá lá dar uma olhada. Depois me diga o que achou”, ofertou generoso, com direito a piscadela.
Instalado em um dos blocos do Colosso de Prora desde 1991, o museu celebra em cinco andares e dezenas de quartos o extinto Nationalvolksarmee com uma profusão de insígnias, equipamentos, vídeos, móveis, metralhadoras Kalashnikovs, mapas e uniformes pendurados em cabides, aliados a cacarecos de toda sorte que pouco tem a ver com o país, desde bicicletas empoeiradas da década de 1930 a uma coleção de vinhos austríacos, passando por animais empalhados um tanto assustadores e cópias de rascunhos de Pablo Picasso.
Roberto Almeida / Opera Mundi
Fotos mostram alemães se divertindo em Prora na década de 1940
Fotos mostram alemães se divertindo em Prora na década de 1940
Em meio à fartura de opções divertidas e randômicas, a estrela principal do NVA-Museum é uma maquete de 18 metros de comprimento – e 1.550 mini-árvores – do projeto original do Colosso de Prora, construído em 1996 pela ONG Dokumentationszentrum Prora, responsável por preservar a história do trambolho. Mesmo com escala 1:250, o visitante ainda se sente pequeno diante de tamanha enormidade.
Segundo Mayerl, são necessárias duas horas e meia para apreciar o monumental acervo e, de quebra, aproveitar a promoção de café com fatia de bolo mármore por € 2,90 (cerca de R$ 13) no restaurante com vista para o mar – da janelinha de um ex-quarto nazista transformado em salão de chá. “Todo mundo precisa dar uma relaxada”, sentenciou.
Como é de se imaginar, o ex-soldado, hoje funcionário do museu, adora falar sobre o passado. O Colosso de Prora foi ocupado pelas tropas soviéticas em 1945 e, a partir de 1956, utilizado pelo exército da Alemanha Oriental por quatro décadas. Há dezenas de vídeos das manobras com tanques, aviões e helicópteros gerando comoção na areia branca da praia de Prora.
Roberto Almeida / Opera Mundi
Fachada do bloco reformado, com varandas de frente para o mar
Fachada do bloco reformado, com varandas de frente para o mar
Por um motivo especial, porém, Mayerl vê a passagem do tempo com desgosto: após 24 anos, a instituição particular que opera o museu sem ajuda do governo vai ter de fechar as portas. Quatro dos cinco blocos do colosso já foram comprado por investidores, entre eles o que abriga o acervo.
“Faz sentido fazer alguma coisa da construção, mas não algo só para ganhar dinheiro”, pondera Mayerl. “Nós lutamos pela permanência do museu por três razões: não temos apoio e queremos manter nossos trabalhos; as pessoas querem apagar a história e não existe outro museu que apresente a história do exército da Alemanha Oriental; e não queremos que Prora, esse filhote impopular da história, seja transformada pelo dinheiro de grupos privados.”
A “luta” de Mayerl pela permanência do museu, no entanto, é das mais complicadas. Ulrich Busch deve entregar o Prora Solitaire até o fim do ano e aposta que os Blocos 1, 2, 3 e 4, entre eles o que abriga o NVA-Museum, hoje nas mãos de colegas investidores, devem estar prontos para os novos hóspedes até o fim de 2016.
Roberto Almeida / Opera Mundi
Famílias soltam pipa na praia de Prora
Famílias soltam pipa na praia de Prora
‘Macht Urlaub’
Em 1992, ano em que o Colosso de Prora foi declarado pelo governo alemão patrimônio arquitetônico do país, ainda havia reverência à história do projeto. “O conjunto arquitetônico de Prora seria o maior balneário do mundo. Seu esqueleto de concreto armado é evidência da performance técnica da década de 1930 e, por isso, trata-se de uma referência importante das circunstâncias trabalhistas e produtivas da época”, afirma o documento da ratificação.
Contudo, pouco mais de duas décadas depois, o medo de que a “história seja apagada” é recorrente entre os que veem no passado de Prora uma maneira de educar as gerações futuras. A ONG Dokumentationszentrum Prora, a mesma que construiu aquela enorme maquete, é dona de um pequeno museu em um dos blocos do Colosso de Prora – e também já prevê dificuldades em continuar instalado ali.
Roberto Almeida / Opera Mundi
Sede da ONG Dokumentationszentrum Prora, centro de documentação sobre a história do empreendimento
Sede da ONG Dokumentationszentrum Prora, centro de documentação sobre a história do empreendimento
A exposição permanente chama-se Macht Urlaub (ou Saiam de Férias, em tradução livre), com exibição de fotos e documentos sobre o colosso no período nazista. O ponto alto, de acordo com funcionários, são as visitas escolares. “É preciso que as crianças saibam o que aconteceu aqui. Que o passado não seja esquecido”, disse um deles, após lamentar um eventual encerramento de atividades.
Se a toada continuar a mesma, apenas o Bloco 5 continuará com a aparência original. De propriedade da administração pública de Rügen, ele foi transformado em 2011 em um Albergue da Juventude com 400 camas. Os demais já estarão redesenhados como hotéis, spas e residências de férias – usos que o arquiteto Clemens Klotz e Adolf Hitler jamais imaginaram.
Simulação do novo Colosso de Prora
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