Modestas Histórias do Bairro Antigo
02 Abril 2015, 09:59 por Baptista Bastos | b.bastos@netcabo.pt
Antes de se entrar no Beco do Xadrez, havia um prédio de dois andares e, no rés-do-chão, a Margarida dos longos caracóis, sempre à janela, cega e linda, e eu permanecia a olhá-la, e creio que ela sabia que a olhava (...). Tenho de repetir que eu era muito feliz.
(A Jorge Palma)
A meio da calçada virava-se à direita, caminhávamos um pouco, por onde ficava a mercearia do sr. Torrado, e desembocávamos no largo. O largo estava emoldurado de casas térreas, habitadas por ciganos, sendo o sr. Torcato o mais velho dentre eles e também o mais respeitado. Gostava muito do largo, chafariz ao meio, homens sentados em caixotes, conversas amenas. Caminhava-se um pouco mais, até ao Beco do Xadrez, habitado pelo sr. Arsénio, operário no Arsenal, dado à bebida e à melancolia, depois de passar três anos no Aljube, preso por motivos políticos; pela Luísa dos gatos, dezenas deles; pela minha avó, e pelo João Maneta, grande amigo do meu tio João e do meu pai, que costumavam ir ver o Belenenses. Ainda havia as Salésias, o Rio Seco e o Carcavelinhos. E eu era muito feliz, embora a minha mãe estivesse a morrer com um cancro. Não percebia a natureza do que acontecia, nem que ia ficar, em breve, sem mãe.
Antes de se entrar no Beco do Xadrez, havia um prédio de dois andares e, no rés-do-chão, a Margarida dos longos caracóis, sempre à janela, cega e linda, e eu permanecia a olhá-la, e creio que ela sabia que a olhava. A mãe dela tocava piano e os sons espalhavam-se pelo bairro. Tenho de repetir que eu era muito feliz.
Nos dias de calor e em que o meu pai estivesse em casa, de folga do jornal onde trabalhava de noite, descíamos a calçada até à Torre de Belém. Brincava na areia e, às vezes, dava uns mergulhos na água glauca. O meu pai gostava de ir à leitaria do Zenida e beber uma amêndoa amarga, lia o jornal República e falava um pouco com o barbeiro, mesmo ali ao lado. O barbeiro era baixinho e não tinha uma orelha. Também tinha por hábito conversar com o sr. Alfredo, um negro alto e sorridente, por aqueles tempos o único motorista de táxi negro em Lisboa.
Nas horas livres, depois da sair da escola primária da Dona Odete, brincava com o Malagueta e com o Reginaldo. O Malagueta morreu atropelado e o Reginaldo foi para a Austrália, marinheiro de barcos de cabotagem. No largo morava a Alzira, cantadeira de fados, que vivia maritalmente (era assim que se dizia) com o Américo alfaiate, que tocava guitarra nos intervalos dos afazeres.
Nada disto poderá ser esquecido, e eu conhecia aquelas ruas e aquelas pessoas como se tudo fosse meu. Às vezes, observo os meus netos como, antes, olhava os meus três filhos, com a vaga melancolia de saber que eles nunca verão isto, vendo, porém, outras coisas, certamente por igual belas, que encherão as suas memórias.
Nos quartéis da calçada, três, ressalvo o erro, tocavam a recolher quando arriavam a bandeira. Os homens paravam de andar, tiravam o chapéu, num grande respeito, e as mulheres benziam-se. Eu fazia a mesma coisa, e os meus amigos também. Esquecia-me de lhes dizer que, aos domingos, assim houvesse uns tostões. Íamos ao cinema, ao Salão Portugal, dois filmes, desenhos animados e actualidades francesas, e as mulheres esmeravam-se nas roupas e os homens punham gravata e fumavam nos intervalos.
Não; nada disto poderá ser esquecido. E eu era muito feliz.
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