AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O MEU AMOR CLANDESTINO - HISTÓRIAS DE LIBERDADE







Conheceram-se na ilegalidade, ou antes dela, mas por amor ultrapassaram anos de clandestinidade. O Observador conta histórias de comunistas que cederam a identidade, os filhos e o amor a uma causa.
Margarida casou com Carlos, que era Viriato. Às vezes Aníbal. Não era Margarida, era Leonor. Antes de ser Marta, tinha casado com José, que foi Fausto e tal como no poema de Goethe era apaixonado por Gretchen, Margarida. Ele foi José Augusto no dia da morte, assassinado pela PIDE, com a identidade forjada pela mulher no bolso. Depois, Margarida, que foi Teresa, enviuvou e esteve nove anos sozinha. Foi Marta, amiga de Cunhal em Moscovo, e virou Leonor para se juntar a Carlos, ora Viriato ora Aníbal. Não voltou a ser Margarida senão depois do 25 de abril.
UMA MULHER, TRÊS AMORES. A HISTÓRIA DE MARGARIDA TENGARRINHA
clandestinidade, margarida tengarinha,
Esta é uma história de identidades. Falsas para fora e verdadeiras e com significado para dentro. É a história de três romances e uma mulher. Um romance legal que terminou na clandestinidade, um legal que virou clandestino, outro clandestino que só virou legal depois do 25 de abril. Margarida Tengarrinha de seu nome teve uma vida cheia, interessante. Teve três companheiros – chama-lhes assim para não lhes chamar maridos, nem camaradas – ao longo de 86 anos que já leva de vida.
O primeiro, um arquiteto, com quem esteve casada seis meses, foi amor de adolescência que sucumbiria nos olhos de um comunista, acabado de sair da prisão. Margarida, comprometida quase a casar, olhou para aquele homem de lenço vermelho ao pescoço e de livros debaixo do braço, recebido nas Belas-Artes como herói depois de uma prisão política, e apaixonou-se. Ele. José Dias Coelho, já comunista de gema, ela membro do MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil, que bradaria contra a guerra e contra o lançamento de bombas atómicas pelos Estados Unidos e escreveria murais a dizer “Queremos paz!”. A alma de Margarida era agitada demais para um casamento sossegado, burguês e sem luta. Tentou anular o primeiro casamento para se unir a José Dias Coelho. Só o conseguiu quando ambos, já a viver juntos, estavam na ilegalidade.
“Escolhi o melhor caminho. Não voltava atrás”, conta. Afinal, na encruzilhada da vida, decidiu ser comunista e ilegal. A década era a de cinquenta e o futuro incerto. Não sabia, mas estava ainda a vinte anos de poder dizer de novo o nome que os pais, pessoas da classe média alta do Algarve, lhe tinham dado: Margarida Tengarrinha. Nessas duas décadas de peripécias foi Teresa, Leonor, Marta na maior parte das vezes. Teve duas filhas e dois amores.

A morte saiu à rua num dia assim

Foi arrebatador. Daqueles amores que sacodem a alma e deixam os ossos a tremelicar. Daqueles que 60 anos depois deixam a lágrima no canto do olho. Acabou cedo demais, abrupto demais. Margarida, que era Teresa, falsificava identidades com José Dias Coelho, que era Fausto. Ambos artistas, montaram a oficina de falsificação de bilhetes de identidade, de passaportes ou licenças de bicicleta que seriam espalhadas pelos camaradas da luta. Ela teve sorte, nunca foi apanhada apesar de um susto. Ele, o pintor de Zeca n'”A morte saiu a rua”, morreu. Entraram para o PCP em 1954, mas só em 1955 estavam completamente clandestinos. Antes, tinha nascido a filha mais velha, Teresa, de nome oficial, mas só registado mais tarde. Depois nasce a segunda, Guidinha, que era ainda bebé quando o pai foi assassinado pela PIDE, em dezembro de 1961.
A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome p’ra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte ‘o pintor morreu’
Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação 
Compositor: Zeca Afonso
Na revolta da morte do companheiro, foi para Moscovo trabalhar com Álvaro Cunhal. Ainda esteve em Budapeste, na rádio Portugal Livre e conta com orgulho como fez a cobertura para o Avante! das comemorações dos 50 anos da revolução de Outubro. Foi Cunhal que a ajudou a registar a filha mais nova como nascida na antiga União Soviética. E foi o líder comunista que lhe garantiu que nada aconteceria à criança apesar do medo de ser assassinada como o pai da filha ou de ser presa.
clandestinidade,
Postal de Álvaro Cunhal a Margarida Tengarrinha, na altura, Marta, em 1963


Hoje vive a quase 280 km do amor maduro que a clandestinidade lhe pôs à frente. Casados no papel, vivem em duas casas diferentes. Ela em Portimão, para onde voltou depois do 25 de abril para poder voltar a dar aulas, ele em Lisboa, onde ainda hoje ajuda o PCP.

clandestinidade, teodósia gregório,
Nas voltas da ilegalidade, Teodósia Gregório tornou-se amiga de Margarida. Chegaram a dividir o mesmo teto. A alentejana de Montemor virou (se é que se vira, descobre-se, encontra-se, sabe-se) comunista por causa do pai e foi a conselho e com proteção dele que se embrenhou na clandestinidade. Ainda não tinha os 20 anos feitos. A mãe preocupada mandava as mãos ao peito na aventura da filha e dizia-lhe: “Tu é que sabes”. Corria o ano de 1954. Foram vinte anos ilegal. Vinte anos. VINTE anos.
Foi viver para Lisboa aos mandos e desmandos do partido. Foi o PCP que a entregou a uma casa onde iria parar também Afonso Gregório. Primeiro eram três, com Aida Magro, também ela militante clandestina. Depois, Aida saiu e ficaram os dois a fingir que eram um casal. Não estavam muito longe de saber que fingir requer arte e manha e que o melhor é parar de representar e viver a verdade, que já o era. “Vocês gostam um do outro”, diziam os “camaradas”. Ela encolhe os ombros e conta: “Nunca namorei”, como quem diz que o amor, essa coisa que faz trepidar o coração, é luxo para as novas gerações. Não é que não o tenha sentido, longe disso, os olhos até brilham de saudade, mas não o consegue pôr cá para fora. Afinal, foram anos a guardar lá dentro o sentimento, o nome e os filhos. “Foi um bocado complicado, mas é a vida”, resigna-se com aquele sorriso nervoso de quem afinal, viveu feliz.




Nas complicações da vida contam-se sobretudo duas: a separação do filho, que viu o pai ser preso quando tinha três anos de idade; e a longa prisão do companheiro, que o desviou dela durante dez anos. O filho nasceu na casa de camaradas, também eles clandestinos, e aos quatro anos, quando já tinha fingido ter mais “pais” falsos, foi entregue aos avós. “O meu filho nunca pôs problemas, nem com os meus pais. Compreendeu sempre”, conta Teodósia.

SOMOS UM CONJUNTO. ANTES E DEPOIS DA ILEGALIDADE
clandestinidade, américo leal, cesaltina leal,
Não há um sem outro. Para quê tentar? São 93 anos e 86 anos, quase 70 lado a lado. Américo e Cesaltina Leal contam a história como se as falhas de memória fossem preenchidas pelo outro. Afinal, a idade já lhes come pormenores. Ele era o rebelde saído de Sines, que foi preso por querer combater com os Aliados ainda na Segunda Grande Guerra. Estaria demasiado perto de virar ilegal. Foi apanhado pela polícia quando, depois de uma greve, foi até à embaixada inglesa dar-se como voluntário. A travessura contou-se em 45 dias no Aljube e no bilhete de passagem direto para a clandestinidade. Foi na prisão política de Lisboa que conheceu Militão Ribeiro, que lhe mostrou a militância no PCP. Não mais se desvincularia. Aos 93 anos ainda vai todos os dias do Vale da Amoreira, na Moita, para Setúbal trabalhar na sede do partido.
Ela fica em casa. Foi aliás sempre o trabalho dela, como de grande parte das mulheres que foi para a clandestinidade. Já eram casados e já tinham um filho quando ele teve de partir para lugar incerto, para não voltar a ser apanhado pela PIDE. Foram 27 anos com nomes emprestados e com uma vida a conta-gotas. Viveram no Alentejo, perto da Covilhã e em várias casas nos arredores do Porto. Tiveram dois filhos: um virou clandestino com dois anos de idade e depois foi criado pelos tios para poder ser legal; o segundo haveria de ser enviado para Moscovo aos sete anos, para lá estudar e só regressar com a Liberdade. “Só quando veio o 25 de abril é que soube que ele [o filho mais velho] era casado e que tínhamos um neto”. Tarde demais para recuperar uma relação (quase) perdida. Resuma-se: uma relação marcada. “Custa a separação. Eu chorei. Aquilo dá um abalo”, relata Américo.



Foi o abalo maior de quase três décadas a jogar ao gato e ao rato com a PIDE. Ele conseguiu, ela não. Quando foram destacados para a Covilhã, o camarada que lá tinha estado antes foi preso “e badalou tudo”, que é como quem diz, deu com a língua nos dentes e fez com que vários comunistas fossem presos. Entre eles Cesaltina e o filho. Resultado: um ano na prisão de Caxias, e mais uns meses devolvida à casa dos pais até que o partido encontrou maneira de a mergulhar outra vez na clandestinidade com o marido. “A clandestinidade era dura, rigorosa e nem todos os camaradas conseguiram resistir”, conta Américo. A parte mais dura: a separação dos filhos e da família. “Quando voltei a minha mãe recebeu-me assim ‘senta aqui, filha’. Abriu-me o colo. Ela também sentiu a dor de tantos anos”, conta Cesaltina, que chegou ao pé da mãe já na casa dos quarenta.
Mesmo assim, tudo vale a pena. “Eu não faço nada sem ele. (…) Valeu a pena porque sempre gostei deste homem. Foi atrás dele que eu fui. Nunca houve outro que gostasse. Só gostei deste. É ou não é? Amor que pica sempre fica”. Ficou.

SER TRABALHADOR E SER CLANDESTINO
clandestinidade, elvira nunes, manuel ribeiro,
Mais do que marido e mulher, a palavra para estes casais é outra: “Companheiros”. Manuel Ribeiro e Elvira Nunes foram isso tudo a vida toda. Ela foi sempre com ele e até foi presa no mesmo dia. “Quem sabe se à mesma hora”, diz a sorrir. Passaram à clandestinidade quando o pai de Manuel, também ele envolvido nas lides comunistas, morreu. A PIDE sabia do pai e do filho e quis ir buscá-lo ao trabalho. Ele fugiu para só ser apanhado anos depois, quando já estava a trabalhar em Almada.
Ela foi com ele, pois claro. Afinal, gostava dele, já lhe tinha dado o sim e já tinha um filho nos braços. Não sabia bem o que era essa coisa de ser comunista, também não se importava muito. O que importava era “guardar segredo” para proteger o marido e o filho. Protegeu o mais que pode, mas o “menino” – como ainda hoje chama ao filho – podia começar a falar e teve de o entregar à família de Manuel. Doeu, dizem, mas ao contrário de muitos filhos de casais que viveram na clandestinidade, o filho de Manuel e Elvira compreendeu.











Pouco tempo depois, foi a PIDE que lhes falou de perto. Ela na rua da Prata, em Lisboa, ele do outro lado do rio. Na inocência, escondiam a morada, mas não mudaram os primeiros nomes. Manuel e Elvira estiveram sempre ao serviço do partido, mas nunca foram seus funcionários, por isso não tinham as regras, mas também não tinham a mesma proteção. O que lhes valeu? A ela um mês na prisão, a ele quatro anos, oito meses e 16 dias. Apesar de ter sido condenado a cinco anos, deixaram-no sair mais cedo. Mas não se pense que foi por simpatia: “Não cumpri o tempo total porque se saíssemos com o tempo total saíamos totalmente livres”, conta Manuel. Passou por todas as prisões políticas: começou na António Maria Cardoso a ser interrogado pela PIDE, depois foi para o Aljube, passou por Caxias e ficaria em Peniche depois de ser condenado. Foi por lá que ainda recebeu visitas da mulher e do filho.
Para esta gente, o 25 de abril não foi apenas o dia da Revolução, e já era muito se o fosse. Foi o dia em que puderam voltar a ser eles próprios. O dia em que puderam dizer ao mundo como se chamavam, quem eram os seus filhos, registá-los, mostrar aos pais – se ainda fossem vivos – com quem tinham casado e retomar uma vida aparentemente normal, sem precisarem de olhar por cima do ombro ou interrogar de soslaio os vizinhos, não fosse um deles ser da PIDE.

Texto: Liliana Valente
Fotografia e vídeo: Hugo Amaral
Edição de vídeo: Fábio Pinto
Grafismo e animação vídeo: Andreia Reisinho Cost


Sem comentários: