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sábado, 15 de fevereiro de 2014

CONHECER PROFUNDAMENTE A CULTURA DE DIREITA EM PORTUGAL

A cultura de direita em Portugal.

 

 



A direita portuguesa contemporânea:
itinerários socioculturais  (1)


 


Em 1983 foi criado o jornal Semanário por Marcelo Rebelo de Sousa, Daniel Proença de Carvalho, José Miguel Júdice, João Lencastre, Vítor Cunha Rego, João Amaral, entre outros (2). Nos outdoors da campanha publicitária de lançamento surgiam, o que é significativo, os rostos dos fundadores desse jornal. Mais tarde, em 1988, O Independente usaria Winston Churchill nos seus outdoors promocionais, um outro sinal de que Portugal mudara – e muito – desde os tempos do PREC (3). O Semanário teria como repórter, que entrevistava em Paris figuras da «grande direita» europeia, sobretudo francesa (e não anglo-saxónica, note-se), um jovem chamado Paulo Sacadura Cabral Portas. Não era uma estreia: com uma notável precocidade, Paulo Portas já tinha trabalhado no jornal A Tarde, dirigido por Vítor Cunha Rego, ao lado de personalidades como Vasco Pulido Valente, António Barreto, Manuel de Lucena ou Francisco Saarsfield Cabral. Regressemos aoSemanário. Além da política, num tempo em que o jornalismo económico era muito incipiente – até por efeito colateral da incipiência da actividade privada nos sectores-chave da economia – o Semanário, a dada altura, a altura das privatizações e das Ofertas Públicas de Venda (OPV’s) (4), teria um papel importante na informação económica ou na orientação dos compradores de acções.

Mas, por muito descabido que pareça, o aspecto que aqui quero focar foi o surgimento, creio que logo no primeiro número do Semanário, de uma rubrica intitulada «Meia Desfeita», uma coluna social com fotografias, originalmente a preto e branco, de festas ou eventos mundanos em discotecas que renasciam das cinzas, como o Van Gogo, de Cascais, ou o Stone’s, de Lisboa, ou outras que viam a luz do dia – ou da noite… – nessa época, como o Banana Power, criado em 1981 por um conjunto de sócios liderados por Manecas Mocelek, boémio e empresário da vida nocturna que em 1975 partira para Angola e, depois, para o Brasil. Sendo uma discoteca com restaurante e clube privado de acesso restrito, o Bananas, como era vulgarmente conhecido, com senhas de entrada a 150$00 para o comum dos mortais e cartão gold para os sócios, correspondia a um padrão cultural – e mental – que teria sido impensável no período revolucionário (5). A sua festa de inauguração foi, por assim dizer, o «Baile Patiño da democracia» ou o «25 de Novembro social» de certas elites e até de uma certa Weltanschauung, mais mundana e frívola. Assumir pública e abertamente, sem traumas nem complexos, a mundanidade e a frivolidade representava uma viragem muito sintomática relativamente aos tempos mais inflamados da revolução.
 
 
 

A par disso, a «Meia Desfeita» publicitava acontecimentos como corridas de touros ou raids hípicos, dando visibilidade a redes de sociabilidades desde sempre conotadas com a direita tradicionalista, marialva e ultramontana, ou aos exclusivos bailes de debutantes no Clube Portuense, estudados por Clara Maria Ferraz no âmbito de um trabalho académico sobre as estratégias endogâmicas das classes superiores (6). Para o público feminino, e não só, a rubrica «Meia Desfeita» era um dos principais atractivos do novo periódico, a ponto de, seguindo uma ideia de Marcelo Rebelo de Sousa, Vítor Cunha Rego e José Miguel Júdice, se ter transformado mais tarde numa revista autónoma, a cores, vendida com o próprio jornal, a Olá!, numa tentativa óbvia, porventura demasiado óbvia, de mimetização da sua congénere espanhola, a ¡Hola!. A dada altura, de algum declínio, muitas pessoas compravam o jornal por causa da revista Olá! e não o contrário. Na sua fase de agonia, que terminaria com o encerramento em 2009, o Semanário viria a ser comprado por uma personalidade hoje relativamente esquecida, Rui Teixeira Santos, um yuppie meteórico que também adquirira os armazéns Braz & Braz.
 
 
Olá! Semanário
 

Poder-se-ia falar do papel que o Semanário, sobretudo a sua coluna «Mão Invisível», também teve – e lembremos que tudo isto coincide com o emergir do reaganismo e com o thatcherismo – na difusão do pensamento económico liberal ou neoliberal de uma geração que, de Jorge Braga de Macedo a Diogo Lucena, passando por António Borges ou pelos irmãos Pinto Barbosa, possuía ligações académicas aos Estados Unidos ou ao INSEAD de Fontainebleau e que começou um processo de internacionalização universitária «em rede» que era relativamente inédito na academia portuguesa.

Quero concentrar-me no aspecto mundano do jornal e não o faço por um desejo de originalidade ou para fazer uma deambulação nostálgica por curiosidades esquecidas dos anos oitenta (7). Mas creio que, de facto, se não cairmos em exageros, a revista Olá!, pelo que significou historicamente, tem relevo cultural, sociológico e até ideológico. 

Sempre existiram revistas sociais em Portugal e, desde 1976, Jacques Rodrigues publicava com grande êxito a Nova Gente. Simplesmente, a Nova Gente falava de actores da moda, muitos vindos do teatro de revista, de cantores populares e futebolistas, mas não tinha, creio que até deliberadamente, qualquer glamour. Na linha do que sempre seria a marca do Grupo Impala, era uma revista vocacionada para a classe média e para a classe média-baixa, de grande tiragem, tendo chegado aos 150.000 exemplares em finais dos anos oitenta.

No entanto, o facto de um jornal como o Semanário, que veiculava um projecto claramente de direita ou de centro-direita, protagonizado pelos principais ou mais influentes intelectuais da direita possível da altura, que davam a cara em outdoors, possuir uma rubrica em que apareciam eventos sociais das classes altas era uma novidade cujo efeito não quero sobrevalorizar, mas que merece ser realçado. É que o habitus, para usar um conhecido conceito que Bourdieu desenvolveu em várias obras, como La Distinction (1979), havia sido bruscamente interrompido quando as elites do salazarismo e do marcelismo debandaram para o Brasil ou para Espanha. Numa altura em que a estrutura de classes se reconfigurava e necessitava de alguma pavimentação simbólica, havia que renovar a exposição dos mecanismos de desigualdade social, expondo o «sistema de disposições reguladas» que fundam o habitus. Ora, a «Meia Desfeita» e a Olá! serviram esse propósito na perfeição e o seu sucesso mostrou que, para além da exposição pública da desigualdade, por parte dos emissores da mensagem, existia, por parte dos receptores ou destinatários da mesma, um «público» que aceitava a existência dessa estrutura de classes, que convivia bem com ela e que pretendia observar e acompanhar os movimentos dos seus protagonistas.  A criação de uma «esfera social», de que o Semanário fazia eco, era indício da recomposição da estrutura de classes no início da década de oitenta, feita naturalmente à base de uma mescla, nem sempre fácil, entre velhas e novas elites, que convergiam em eventos e negócios mas raramente se cruzavam em termos, por assim dizer, «endogâmicos» ou familiares.  

Não quero, obviamente, exagerar a importância de uma coluna social de um semanário, até porque outros exemplos se poderiam fornecer, como a campanha presidencial de Diogo Freitas do Amaral, em 1986, que teve alguns traços distintivos de cariz classista. Popularizou a moda dos sobretudos verdes de loden, de inspiração austríaca (o candidato usava um), e foi uma campanha «à americana», de grande espectacularidade, com chapéus de palhinha feitos em… plástico. Mas, mesmo no plano das publicações, poderíamos igualmente falar, até porque também tinha uma coluna social para consumo das elites, com amplas reportagens das recepções nas embaixadas, da revista Casa e Jardim, fundada em 1977 por Eduardo Fortunato de Almeida (8), e que possuía o mesmo nome de uma revista brasileira, a qual, por sua vez, mimetizava uma famosa publicação norte-americana, a House and Garden, remontando esta a 1901. Simplesmente, aCasa & Jardim era uma publicação de decoração de interiores, não-ideológica, e que se esgotava no seu próprio objecto, enquanto a coluna «Meia Desfeita» e a revista Olá! estavam associadas a um projecto jornalístico/político que procurava ser uma alternativa ao Expresso e, mais ainda, uma alternativa que era assumidamente situada «à direita» do Expresso(9). De algum modo, era um sinal, um sinal muitíssimo expressivo, de que, na ressaca do 25 de Abril, os ricos «saíam do armário», faziam aos poucos o seu outing e deixaram de ter vergonha em ser ricos – uma tendência que se irá aprofundar de forma algo feérica e exuberante no período do chamado «cavaquismo».

Ao mesmo tempo, começou na altura a emergir um fenómeno que, à falta de melhor, poder-se-ia chamar neoconservadorismo do gosto ouneoconservadorismo do imaginário, um fenómeno estético, imagético e social, mas que remetia para um universo de representações que possuíam um indiscutível sentido ideológico.

Na lógica de recomposição das elites no pós-25 de Abril ou, mais precisamente, nos alvores dos anos oitenta, havia que reafirmar (diríamos, em termos weberianos)  o valor do status, por oposição à noção de classe. Para usar um conceito de Thorstein Veblen, a emulação, a luta, fazia-se não em torno do material mas do imaterial. Isto devido a uma série de razões, entre as quais se pode apontar o facto de as velhas elites, depapuperadas pela revolução, não poderem competir no terreno do consumismo conspícuo, outro conceito de Veblen, e de o consumo de luxo não estar ainda difundido entre nós com a dimensão que hoje possui, uma dimensão de luxo que, paradoxalmente, é massificada, algo que certamente teria confundido Werner Sombart quando estudou a importância do luxo nos alvores do capitalismo (10). A recomposição da estrutura de classes, que se irá aprofundar com o crescimento económico verificado no tempo dos governos de Cavaco Silva, implicava uma revalorização do capital social imaterial por parte daqueles que não dispunham de capital material, ou não dispunham dele na mesma medida do que os «emergentes», para usar uma expressão do Brasil, ou, se preferirmos a terminologia de Vance Packard, daqueles que, naquela ambiência, se configuravam como os status seekers. Foi neste contexto que se desenvolveu o «neoconservadorismo do gosto», que é, como se referiu, estético e simbólico mas que possui conotações ideológicas em termos de representações e valores que são sustentados de uma forma aberta, assumida e até, por assim dizer, «militante». Em termos muito simplificados: à arquitectura provocatória de Tomás Taveira, um absoluto self-made man que exibia o seu Rolls Royce pelas avenidas de Lisboa e pontificava no Bananas, sendo o expoente mais triunfalista e barroco das novas vias de ascensão social, haveria que opor os solares e casas de família que, graças a fundos vocacionados para o denominado «turismo de habitação» (11), começaram a ser recuperados num processo muito interessante de invenção da tradição, para usarmos o conhecido conceito de Eric Hobsbawm (12). Mas mesmo uma personalidade amante da controvérsia como Tomás Taveira via-se na contingência de explicar, em entrevistas, que a sua arquitectura correspondia, de uma forma pós-moderna muito peculiar, a uma «reinvenção da tradição», convocando arquétipos ancestrais da portugalidade: o edifício-sede do Banco Nacional Ultramarino (1989) a representar a guitarra portuguesa ou as Torres das Amoreiras (1985) a assumirem a forma de capacetes de guerreiros medievais, evocando castelos de reis e princesas. Trata-se de um discurso que é justificativo e, claro, também ele provocatório, mas que arquitectos como Siza Vieira ou Souto de Moura nunca seriam obrigados a usar (13).

É em todos este movimento que se inscreve também, por exemplo, um renascer da valorização social da aristocracia, com o Anuário da Nobreza a retomar a sua publicação em 1985. A par disso, assiste-se ao aprofundamento de uma noção de exclusivismo do imaterial, construída em torno de topoi como a posse de propriedades de família, o gosto herdado mais do que aprendido, a «educação de berço», a pertença a uma linhagem não transaccionável. A própria onomástica dos nomes próprios começou a sofrer este influxo neoconservador, com o retomar de nomes tradicionais portugueses, simples e lhanos, ou o recurso a nomes com uma ressonância deliberadamente «antiga», como Salvador, Lopo, Martim, Constança, Caetana, Tomás, Lourenço, Sebastião, Piedade (14). E tudo isto foi passando para a esfera pública, com uma reconstrução das redes de sociabilidades em torno de clubes, de bailes de debutantes, de irmandades, de confrarias religiosas, de associações que se formam mais ou menos na altura, como a Associação Portuguesa de Casas Antigas (1978) ou a Turihab (1983), para fins comerciais de exploração do turismo de habitação, a par da marca «social» que é conferida a iniciativas como as procissões em Lisboa ou festividades em Ponte de Lima (as Feiras Novas), em São Martinho do Porto (o Baile da Chita), na Golegã (a Feira da Golegã) ou em Évora.       

O ponto que me interessa explorar é que o emergir desta tendência foi mais do que uma «moda» fugaz, como o demonstra o seu enraizamento até aos dias de hoje, bastando ver os fenómenos contemporâneos doupcycling, da propagação do artesanato urbano ou a releitura da simbologia lusitana feita por Joana Vasconcelos. De resto, a «nostalgia como indústria» (15),  que percorre vários segmentos e campos, corresponde a um fenómeno muito visível na cultura popular de massas, particularmente na cultura musical, em constante retromania, para usar uma expressão de Simon Reynolds (16). Talvez seja necessário, como é evidente, distinguir vários tipos de revivalismo e compreender que cada qual possui um sentido específico, não podendo sobrepor-se a tentativa de recuperação ou reinvenção da tradição aristocrática e conservadora com a retromania da música pop. De igual modo, é necessário entender que existem diversos ciclos e ritmos na revisitação do passado, não devendo confundir-se, por exemplo, a actual vaga de redescoberta – académica e popular – do período do Estado Novo com o ideário de uma direita nacionalista ultraminoritária (17).
 

Heróis do Mar

 
 

 
No Portugal dos anos oitenta, o revivalismo tinha um significado político intenso, já que surgia na sequência de uma ruptura, de uma ruptura revolucionária. Em face dela, qualquer redescoberta do passado era, por natureza, «contra-revolucionária» e, nessa medida, possuía um sentido ideológico preciso e profundo. Tal revivalismo confluiu com outros fenómenos, os quais não eram necessariamente convergentes mas que, trilhando caminhos paralelos, partilhavam algumas afinidades electivas. Darei dois ou três exemplos. Desde logo, o surgimento, na cena musical, de bandas como os Heróis do Mar (1981), tendo por vocalista Rui Pregal da Cunha, onde se encontram personalidades como Pedro Ayres Magalhães ou Carlos Maria Trindade que mais tarde, em 1987, fundam o projecto dos Madredeus, ou os Sétima Legião (1982), onde pontificava Rodrigo Leão – que, mais tarde, estará também nos Madredeus (18) – e cujas músicas tinham letra de Francisco Ribeiro de Menezes, que também fazia as vozes do coro e é actualmente diplomata, exercendo funções como chefe de gabinete do Primeiro-Ministro (19). Relativamente aos Heróis do Mar, devido à iconografia de que se rodeavam, chegou a surgir na altura a suspeita, ou até a acusação, de que se tratava de um grupo nacionalista de vanguarda, ligado à extrema-direita. Os Sétima Legião foram menos questionados quanto a esse ponto, mas, em qualquer caso, eram bandas que se inseriam claramente numa linha «anos 80», que, na esteira de um movimento de «rock português» inaugurado em 1980 por Rui Veloso e Carlos Tê com o álbum Ar de Rock, rompe por completo com os baladeiros e «cantautores» dos anos sessenta e do imediato pós-25 de Abril.
 
 
MEC, candidato ao PE nas listas do PPM (1987), aqui
 

Um outro exemplo prende-se com uma personalidade que emergiu justamente a partir da crítica musical, Miguel Esteves Cardoso (ou «MEC»), cuja notoriedade se deveu ao seu talento ímpar, como é evidente, e ao facto de tirar partido do bilinguismo e da proximidade ao Reino Unido para, nas suas crónicas no jornal Se7e, em O Jornal ou na Música & Som, e reunidas no livro Escrítica Pop (1982), dar conta das bandas que se afirmavam na «cena» britânica, designadamente as que se editavam com a chancela Factory e se inscreviam na new wave pós-punk: Joy Division, New Order, The Durutti Column, etc. Era um tipo de informação que, numa altura em que não existia Internet, os jovens buscavam com avidez, sendo transversal a ideologias ou famílias políticas.

Em 1982, Miguel Esteves Cardoso criou, com Pedro Ayres Magalhães, Ricardo Camacho e Francisco Sande e Castro, entre outros, a Fundação Atlântica (Companhia de Discos de Portugal), a primeira editora portuguesa independente, que produziu  discos de Anamar (Baile Final/Lágrimas, 1983), dos Sétima Legião (Glória/Partida, 1983; A Um Deus Desconhecido, 1984), ou de um grupo então desconhecido, os Delfins (O Vento Mudou, 1984; A Casa da Praia, 1985), bem como o álbum Amigos em Portugal (1983), dos The Durutti Column. O nome Fundação Atlântica é significativo, como é significativo o facto de Miguel Esteves Cardoso, com o seu emblemático laço ao pescoço e o seu Volkswagen «carocha» preto, que estudara a saudade, o sebastianismo e o Integralismo Lusitano (20) e se afirmava como monárquico, o que era totalmente desconcertante, além de alimentar polémicas com Fernando Namora ou Eduardo Prado Coelho, se ter tornado um autor de culto devido às crónicas semanais que publicava noExpresso, e que seriam reunidas em livro em 1986, com o nome A Causa das Coisas, objecto de várias edições e ainda hoje um livro de sucesso (21). No ano seguinte, em 1987, Miguel Esteves Cardoso será candidato independente pelo Partido Popular Monárquico às eleições para o Parlamento Europeu, numa campanha com uma marca anti-europeísta que surpreendia pela inventividade e pela frescura moderadamente subversivas, e que seduziu certas franjas intelectuais urbanas e jovens, e em cujos tempos de antena surgiam Pedro Ayres Magalhães e, note-se, Paulo Portas, o antigo repórter do Semanário com quem dois anos mais tarde Miguel Esteves Cardoso fundará O Independente, tendo, logo na altura da fundação, sido combinado que Portas ficaria como nº 2 para mais tarde passar a director, quando «MEC» saísse, como saiu, para fundar a revista Kapa (22). Recordemos que as originalíssimas crónicas de «MEC», transformadas em leitura de culto numa época em que não existia Internet nem muitos meios de fruição intelectual «leve», eram acompanhadas semanalmente da reprodução de um anúncio antigo a um produto comercial do quotidiano do Estado Novo, numa reapropriação que explorava o nonsense, é certo, mas também alguma nostalgia e um certo revivalismo. Só por tal via, a via do humor suave e cândido, ainda que por vezes mortífero, de Miguel Esteves Cardoso, é que essa imagética salazarista poderia ser recuperada sem suscitar o clamor indignado de uma certa esquerda que, de tão reactiva, se arriscava com o tempo a tornar-se reaccionária. Mas o facto é que a pasta medicinal Couto ou a cera Encerite, que mostrava uma criada fardada, de avental e crista, a encerar um soalho de joelhos – e a Encerite só tinha interesse, humor e graça se mantivesse essa imagem –, puderam aparecer e ser toleradas devido a um dispositivo «braudillardiano» de simulacro, envolvendo o kitsch e o humor ou, talvez melhor, devido a uma reelaboração da sensibilidade camp, tal como recortada por Susan Sontag no seu célebre ensaio de 1964.    





 
Este revivalismo corresponde, aliás, a uma tendência que persiste e é hoje muito difundida, sendo comercialmente explorada por Catarina Portas, em quiosques rétro e sobretudo na loja/marca A Vida Portuguesa (2004), que cito apenas por ser o exemplo mais conhecido e com maior simpatia junto dos media (23). Na loja da irmã de Paulo Portas, uma mulher assumidamente de esquerda, encontramos caixas de lápis Viarco com rapazes vestindo a farda da Mocidade Portuguesa, mas também reproduções dos cartazes de João Abel Manta figurando a Aliança Povo/MFA. Há um esvaziamento político dos objectos de consumo mas também, sem dúvida, alguma «ideologia» neste processo de «des-ideologização» (24). Curiosamente, objectos com a farda da Mocidade são vendidos a poucos metros da antiga sede da PIDE/DGS, cuja reconversão em condomínio de luxo suscitou a indignação de movimentos como «Não Apaguem a Memória». A isso, Catarina Portas poderia retorquir que é justamente a «memória» que constitui o seu core business, mas não vou entrar na complexa questão da «guerra das memórias». Em todo o caso, trata-se de um sinal, de um sinal muito interessante, a circunstância de, na mesma loja, se venderem – e a preços elevados, aliás – produtos que eram usados pelas criadas de servir do Estado Novo e cartazes da aliança Povo/MFA, como é interessante a retórica de consumo do «tradicional» e do «português» que lhe está subjacente – e que está a ser induzida, de outras formas, na actual conjuntura de alguma revivescência nacionalista. O intensíssimo movimento das confrarias e das academias gastronómicas – por exemplo, as academias de bacalhau, estudadas por José Sobral (25) –, a par do culto dos produtos biológicos e absolutamente «naturais», de origem portuguesa, não importados, é um outro tema que se inscreve nesta lógica comportamental e social de que estou a dar apenas alguns exemplos.  

Como referi, nos alvores da década de oitenta tudo isto coincidiu com aquilo a que poderemos designar como «neo-romantismo», o qual converge com a redescoberta e a hipervalorização do «rural», dos solares e das casas de família, da arquitectura com materiais naturais, mais tarde levando a uma reedição, de gosto duvidoso, do estilo «português suave» (26) em muitos condomínios privados, de actividades como o hipismo, a caça (27), as touradas, o turismo de habitação, e, nos nossos dias, os «lugares de charme». Refiro estes aspectos porque uma história cultural da direita portuguesa pode tender a concentrar-se nos exemplos publicamente mais ostensivos, mais extremados, como os desfiles de cariz nacionalista do 1º de Dezembro liderados por Vera Lagoa ou o ideário de Jaime Nogueira Pinto e dos seus próximos, desvalorizando estas correntes que objectivamente foram muito mais influentes e abrangeram segmentos muito amplos da nossa sociedade, alguns deles nunca conotados com a direita. 
 
 



 

A revista Kapa seria fundada em 1990 com capitais da Valentim de Carvalho e da SOCI do advogado Luís Nobre Guedes, personalidade próxima de Paulo Portas (28). A Kapa, onde «MEC» tem um papel preponderante (a revista era o seu sonho desde a fundação de O Independente), publicava inúmeros artigos de cunho revivalista, por exemplo, no domínio da arquitectura, assinados por um purista absoluto, Alberto Castro Nunes, tinha um grafismo e uma imagem rétro, publicava, por exemplo, um famoso ensaio de Vasco Pulido Valente que procedia a uma revisitação do consulado de Marcelo Caetano em tonalidades trágicas (29). O título de capa, porém, não correspondia ao sentido do escrito de Pulido Valente. Assim, enquanto o ensaio tinha por subtítulo, sintomaticamente, «As desventuras da razão», a capa da revista ostentava os dizeres: «Marcello, o Maior». O nº 1 da revista ostentava na capa uma fotografia a preto e branco de rapazes da Casa do Gaiato, da autoria de Inês Gonçalves, que poderia perfeitamente ter sido captada na década de 40 ou 50, e abria, logo nas primeiríssimas páginas, com uma fotografia do general António de Spínola, acompanhada de uma legenda encomiástica: «Um herói esquecido sempre pelas razões erradas. O 28 de Setembro nada significou na carreira de um homem que queria descolonizar e democratizar pacificamente. Hoje é um símbolo tranquilo de patriotismo, discrição e comedimento» (30). Na página a seguir, a actriz Maria de Medeiros e, logo depois, uma fotografia do edifício estadonovista do Instituto da Vinha e do Vinho. A Kapa era inclassificável.  
 

 
 
 
 
Noutro número da revista, Maria Filomena Mónica atacava violentamente Aníbal Cavaco Silva, uma personalidade com a qual, quer a direita neoconservadora tradicional, quer sobretudo a direita e a esquerda intelectuais sempre mantiveram uma relação que se resume numa palavra: ódio. É que Cavaco Silva e a sua entrada fulgurante na vida política portuguesa vinham subverter por completo os dispositivos de regulação dostatus. Aníbal Cavaco Silva afirmava as suas origens sociais humildes mas, ao mesmo tempo, não era um completo parvenu: fora bolseiro e investigador da Fundação Gulbenkian desde 1965, doutorara-se na Universidade de York em 1971, ao mesmo tempo ou até antes do que alguns vultos da intelligentzianacional, ainda que, ao contrário destes, nunca tenha convertido esse capital universitário em capital social (em capital político talvez sim, mas em capital social decididamente não). Note-se que em 1970 doutoraram-se apenas 61 pessoas em Portugal, incluindo o reconhecimento de doutoramentos feitos no estrangeiro, especialmente no Reino Unido (31). Além disso, Cavaco Silva era técnico do Banco de Portugal e Sá Carneiro escolhera-o para um lugar tão importante como ministro das Finanças, preterindo diversos «gurus» da Economia, com muito maior projecção mediática. Portanto, Cavaco Silva era demasiado distante das redes de sociabilidades das elites mas, em simultâneo, suficientemente próximo delas para causar perturbação, pelo que haveria que estabelecer um cordon sanitaire em seu redor. E era essa suficiente proximidade, porque lembrava aos críticos as suas próprias fragilidades (desde logo, no quadro das suas representações mentais, a fragilidade de terem nascido portugueses…), que suscitava e suscita sentimentos tão extremados. A acrescer a tudo isto, Cavaco Silva conquistaria duas maiorias absolutas, um facto inédito na história da nossa democracia. Daí adensar-se a animosidade de uma certa intelectualidade cosmopolita e bem-pensante contra a sua pessoa, sendo que o ponto de ataque, como não poderia deixar de ser, se centrava justamente na sua alegada incultura, na «falta de mundo», na não-pertença a um universo social e mental que, à esquerda e à direita, muitos foram educados desde o berço a considerar como «seu». Daí a insuportabilidade visceral que despertava  em personalidades como Vasco Pulido Valente (32) ou Maria Filomena Mónica (33), ou na redacção de O Independente, onde, como diz Paulo Portas, «a humildade não era propriamente o género dominante» (34). Cavaco Silva  era um «intruso» que já estava «cá dentro», o que o tornava particularmente incómodo. Quando, mais recentemente, Maria Filomena Mónica se referiu a Cavaco Silva como se tendo doutorado numa «instituição que, por ser recente, não tinha prestígio, mas que lhe pareceu adequada aos seus fins» (35)   é justamente esse dispositivo inigualitário que pretende explorar: não podendo negar que se doutorara no estrangeiro, no mítico estrangeiro, há que encontrar nuancesque apoiem a sua desvalorização que, mais do intelectual, é social (36). É sintomático que, nas páginas de O Independente, Paulo Portas haja acentuado o «indisfarçável arrivismo» de Maria Cavaco Silva, recomendando-lhe «volte a ser discreta» e classificando-a de «PMI (Pequena e Média Intelectual)». Não podendo negar por inteiro o estatuto de intelectual à mulher do então Primeiro-Ministro, Portas procurava depreciá-la no plano social e do gosto, falando, evidentemente, do seu «mau gosto poético». Quanto ao marido, era considerado «ambicioso», «paroquial», «ordinário» e «um homem de esquerda» que «não gosta da direita». Em contrapartida, Freitas do Amaral era descrito por Paulo Portas como «um senhor» e «um homem de bem» (37). Paulo Portas, aliás, não hesitava em adoptar um registo de clara segregação social, atacando, a propósito dos governos de Cavaco Silva, «o bando possidónio que tomou conta da cidade, sem respeito nem continência, e que vê na política uma espécie de promoção social». O cavaquismo, para Portas, «fez uma revolução na classe dirigente», povoando-a de «homens sem história». Contra um sentimento difundido entre algumas elites da altura – o da exaltação das origens humildes como prova de qualidades pessoais –, Portas insurgia-se fazendo o discurso oposto: «é bem ter nascido mal e vale a pena fazer gala disso. (…) A democracia que temos exibe o brasão ao contrário. A nova oligarquia é a dos self-made men, criaturas que se acham mais capazes e de maior direito». Aludia mesmo a «um ódio de classe e a uma psicopatia de má inserção social», não hesitando em criticar-se, como outrora se tinha feito com Carlos Mota Pinto, a forma de vestir de Aníbal Cavaco Silva.    
 
 
Aníbal Cavaco Silva e Francisco Sá Carneiro
 

         Em paralelo, num domínio mais profundo, o dos valores, das representações e das crenças sociais, começa a fazer-se um «ajuste de contas» com os pretensos excessos do PREC. A pedagogia, porque recebe o influxo de alguma obsessão da parentalidade e da preocupação colectiva com as «gerações que estamos a formar», é um dos barómetros mais precisos destas tendências sociais algo larvares ou subterrâneas. Em 1997, Maria Filomena Mónica publica Os Filhos de Rousseau (38). Gabriel Mithá Ribeiro dará à estampa A Pedagogia da Avestruz em 2003. Mais tarde, em 2006, Nuno Crato irá atacar o «eduquês» e a pedagogia romântica. Santana Castilho lançara em 1999 o Manifesto para a Educação em Portugal, Rui Baptista publicará em 2005 o livro O Leito de Procusta: Crónicas sobre o Sistema Educativoe, nesse mesmo ano, David Justino publica No Silêncio somos todos Iguais. A editora Gradiva, de Guilherme Valente (ele próprio, autor de uma obra recente intitulada Os Anos Devastadores do Eduquês, 2012), que publicou os títulos de Nuno Crato e David Justino, deu um importante contributo para um repensar crítico da Educação que ia, de alguma forma, num sentido «correctivo» dos excessos do PREC. É a David Justino que, enquanto Ministro da Educação (2002-2004), se deve a publicitação dos rankings dos estabelecimentos de ensino, os quais geraram polémica em alguns sectores docentes, que os consideraram «elitistas», mas foram acompanhados obsessivamente pelos pais e encarregados de educação, por vezes de forma acrítica, passional e imediatista. Nesse tempo, com os rankings a apontarem o ensino particular como via mais segura de acesso ao superior, há uma afluência em massa aos colégios, alguns deles religiosos. No Colégio Sagrado Coração de Maria, em Lisboa, que ficara bem colocado no ranking, os pais chegaram a passar a noite na rua para inscreverem os filhos. E, em simultâneo, criam-se colégios com «marcas de distinção» nos domínios da onomástica e da heráldica. Se virmos, por exemplo, a página na Internet do Real Colégio de Portugal (39), que foi criado em 1999 mas descreve com minúcia os pergaminhos antigos da quinta onde está sediado (Quinta do Conde do Paço, no Lumiar), teremos um bom exemplo de «invenção da tradição». O uso de fardas, os brasões dos emblemas dos colégios, as divisas e máximas grandiloquentes, a separação de sexos em alguns estabelecimentos e até a aprendizagem precoce de línguas como o latim são hoje encarados com tranquilidade (40). Se aquele é o panorama dos colégios privados, no sistema educativo em geral as palavras de ordem são «excelência», «autoridade aos professores», «rigor» e «exigência» no ensino dos alunos, o que acabaria por ter tradução legal no Estatuto do Aluno, aprovado em 2002 e revisto em 2008 e 2010, tendo, em 2012, sido aprovado um novo Estatuto do Aluno e da Ética Escolar (Lei nº 51/2012, de 5 de Setembro). Entretanto, em 2008 o país assistia chocado a imagens de alunos a atirarem ao chão uma professora no meio de uma sala de aula, por causa de uma disputa sobre a posse de um telemóvel. Fenómenos como este, isolados ou não, provocam sempre sentimentos reactivos de tipo neoconservador, como é evidente. Isto também se passa na abordagem da criminalidade, ainda que Portugal não tenha sofrido o influxo do «populismo penal» (41) que marca, por vezes de forma brutal, os Estados Unidos e, em menor grau, a França ou a Inglaterra, sendo curioso notar que, neste último país, a abordagem «dura» da criminalidade foi teorizada à esquerda, pelo New Left Realism, de Derek Cornish e outros (The Reasoning Criminal, 1986). Tony Blair percebeu o capital político desse movimento e, naturalmente, o New Labour apropriou-se dele. Em Portugal, os vestígios mais evidentes desta tendência situam-se nos projectos para criação de um registo ou de uma base de dados de condenados por abusos sexuais a menores.

Quer no neoconservadorismo estético, quer na direita urbana há uma relativa quebra com a direita tradicional, salazarista [e até anti-marcelista (42)], nacionalista, católica, mas também com a chamada «nova direita» que surgira um pouco antes pela mão de nomes como Jaime Nogueira Pinto, António Marques Bessa, José Adelino Maltez, Miguel Freitas da Costa, Nuno Rogeiro, Eurico de Barros, cada um naturalmente com o seu percurso e características singulares. A revista Kapa nada tem a ver com a Futuro Presente, fundada em 1980 por Jaime Nogueira Pinto, José Miguel Júdice, António Marques Bessa, entre outros, tendo esta um conteúdo político-ideológico mais marcado e militante, ainda que fazendo incursões culturalistas por domínios caros àquela corrente da direita nacionalista, domínios como a ficção científica, a sociobiologia, a banda desenhada, e até a chamada «filosofia portuguesa». Mas, paradoxalmente, ou talvez não, acabou por ser muito maior a influência cultural e ideológica de uma «não-esquerda» assumidamente aggiornata – preocupação que não existia na Futuro Presente, em O Diabo de Vera Lagoa ou em O Dia de Silva Resende. Num ensaio publicado em 1987, Jaime Nogueira Pinto pressentia já que a ideologia e a estratégia dominantes na direita eram «possibilistas», e não poderiam ser mais do que isso, mas entreviu na adesão à CEE um espaço de afirmação possível desta corrente ideológica. O nacionalismo português, segundo ele, poderia assentar na «questão da conservação da identidade nacional no contexto das Comunidades Europeias». Será esse o tópico que servirá de leit-motiv à candidatura de Miguel Esteves Cardoso ao Parlamento Europeu, sendo a direita tradicional, uma vez mais, relegada para segundo plano. Outro eixo em que Jaime Nogueira Pinto via alguma possibilidade de combate ao «esquerdismo dominante» era, como sempre, África. Segundo Nogueira Pinto, esta era uma questão tão ou mais importante quanto, a partir de meados da década de oitenta, os «governos marxistas de Angola e Moçambique» estavam a constituir um «lóbi de interesses em Lisboa, apoiado em círculos de negócios e no próprio PSD» (43). Tudo indicia que o projecto político de Nogueira Pinto não logrou o seu objectivo de vencer os lóbis angolano e moçambicano. Pelo contrário: o apoio à UNITA, proclamado nesse texto como a solução mais consonante com a crítica à descolonização, esfumar-se-á com a morte do seu líder histórico, Jonas Savimbi. O «fenómeno cavaquista», na expressão de Nogueira Pinto, emergia do facto de Cavaco Silva adoptar um discurso nacional e populista, tendo Freitas do Amaral e, depois, Adriano Moreira, sido incapazes de contestarem o domínio daquele economista pragmático. Na perspectiva de Nogueira Pinto, Freitas do Amaral seria um representante da «direita orleanista» - parlamentar, liberal, gradualista e consensual. Esse espaço político esfumara-se com o advento do «cavaquismo», que o absorvera. Ainda assim, existia em alguns sectores e personalidades (v.g., Paulo Portas, Pedro Santana Lopes) uma persistente nostalgia pelo legado de Sá Carneiro, ele sim considerado o representante do espírito liberal entre nós (44), o que não sucederia com Cavaco Silva.  

O ponto que, neste passo, interessa salientar é tão-só o seguinte: a direita urbana dos anos oitenta percebeu que estaria condenada se estivesse ligada à direita ultramontana e tradicionalista, nostálgica do salazarismo. Falava de nação, de pátria, de tradição, participava na campanha contra o Tratado de Maastricht (1992), mas estava muito mais próxima de alguma esquerda, até nas sociabilidades que construía [por exemplo, em bares míticos como o Frágil, inaugurado em 1982 (45)], do que dessa direita mais «antiga», que cultivava pontes com alguns meios castrenses, ou mesmo de uma direita que, quando queria ser «moderna», tinha um corpus de referências completamente distinto: a banda desenhada de Corto Maltese, as obras de ficção científica de Phillip K. Dick ou a música de inspiração céltica.   



 
De alguma forma, naquela direita urbana e sofisticada pode ter havido como que um prenúncio da formação de uma espécie de «bloco de direita», em confronto com o que mais tarde será o Bloco de Esquerda (Francisco Louçã terá afirmado, o que é sintomático, que O Independente era o «Correio da Manhã dos intelectuais»). Não se pretende afirmar, obviamente, que esteve em gestação um projecto partidário, pois isso nunca existiu, ainda que O Independente tivesse trilhado um caminho político e o seu director acabasse por entrar na política activa, assumindo inclusivamente funções governativas. Por «bloco de direita» refiro-me a uma abordagem iconoclasta, narcísica, com um sentido de superioridade intelectual, urbana, relativista nos costumes, liberal na economia, conservadora em política, diletante, hedonista, cosmopolita, terrivelmente snobe. «Éramos libertários na estética e conservadores na substância», diz Paulo Portas, procurando explicar as óbvias contradições do projecto ideológico subjacente ao jornal que fundou (46). De facto, esta era uma direita attrape tout, uma irreverência sem margens que tinha uma capacidade notável de absorver e largar tudo, sem distinções ou sectarismos, mas também sem inquietações de coerência. Todos se recordam que, a dado passo, já no final da vida, Agostinho da Silva é subitamente «descoberto» e converte-se numa figura nacional, com a sua imagem de místico ou profeta, o seu percurso de vida singular, a imagem iconoclasta do homem de espírito franciscano que sonhava com um Quinto Império e que nem sequer tinha bilhete de identidade. O fascínio que exerceu durou praticamente até à sua morte e foi, de certo modo, transversal a muitos credos políticos (47).
 


 

Em resumo, existe uma convergência, que é menos epidérmica do que parece, entre o movimento que levou à criação de uma direita urbana e sofisticada e uma tendência social para valorizar o «autêntico», o «antigo», o «nacional». É essa direita – e só poderia ser ela a fazê-lo – que, no fundo, realiza a síntese entre duas realidades à primeira vista contraditórias: vanguardismo cosmopolita e saudosismo nacionalista. Desde logo, porque conquistara espaço público para este empreendimento, através da abertura de circuitos próprios e redes de sociabilidades muito amplas e eficazes. Namovida portuguesa dos anos oitenta, essa direita urbana e sofisticada convivia com a esquerda na moda, na noite, no hedonismo e numa visão libertária em matéria de costumes. De certa forma, era uma «direita que era de esquerda» e isso foi um contributo muitíssimo importante para combater algo extremamente enraizado entre nós: a estanquicidade da divisória esquerda/direita, o esquema dicotómico e maniqueísta que, no final, dava prevalência à esquerda. Agora, com este approach desconcertante, «MEC» e outros vinham reequilibrar a agenda cultural e, sobretudo, mostrar, pela primeira vez desde há muitos anos, que se podia ser culto não sendo de esquerda e vice-versa. Na sua abordagem desarmante, esta direita – ou, talvez melhor, esta «não-esquerda» –  foi a primeira corrente no pós-25 de Abril a questionar, com popularidade (48), a hegemonia cultural da esquerda, mostrando que se podia ser fashion e «culto» sendo de direita ou, pelo menos, não sendo de esquerda.  

Julgando-se «independente» (49), uma independência que se exibia através de sucessivas manchetes contra os poderes instituídos [dos ministros de Cavaco Silva ao governador de Macau nomeado pelo Presidente Soares, passando pela UGT de Torres Couto (50)], a direita urbana dos anos oitenta, aparentemente contestatária do establishment assente no duopólio PS/PSD e no seu rotativismo da mediocridade, acabou, de certo modo, por servir o «sistema». À semelhança do que ocorre com a «novíssima direita dos blogues», de que falarei a seguir, é possível que esta direita dos anos oitenta tenha desempenhado, em alguma medida, o papel de «idiota útil», semelhante ao dos compagnons de route que enalteceram as maravilhas da União Soviética. Sem dúvida, a «direita anos 80/90» causou danos quando passou para a esfera política – ou político-judicial – da denúncia de «casos» nas manchetes de O Independente (51), mas, no estrito âmbito cultural, serviu naquelas décadas para mostrar que em Portugal também havia uma modernização, uma movida festiva - e isso era útil ao poder instituído, como é óbvio.
 

Vasco Pulido Valente



homo cavaquensis, para usar uma expressão de Vasco Pulido Valente (52), não era apenas o que apoiava e votava no PSD, mas todos aqueles que, directa ou indirectamente, beneficiaram do melhor período de crescimento económico de toda a história da democracia portuguesa, com taxas entre 5% a 8% entre 1986 e 1990 (53).

Ora, a nova direita, sofisticada e urbana, só pôde emergir graças a esta conjuntura expansionista, ainda que contestasse aquilo que lhe permitia ver a luz do dia: a adesão à CEE, por um lado, e a governação de Cavaco Silva, por outro. O Independente e a Kapa alimentavam-se da expansão acelerada do consumo, da sofisticação da visualidade, da massificação dos hábitos culturais, da pós-modernidade teorizada em França por Lyotard e entre nós absorvida em versão Eduardo Prado Coelho e Manuel Maria Carrilho e aplicada na arquitectura de Tomás Taveira e em diversos movimentos artísticos, assumidamente «a-políticos» ou, pelo menos, já não apostados ou empenhados na transformação do mundo e na construção de grandes utopias (54). Sem o crescimento económico daqueles tempos, sem a adesão à CEE, não teria havido espaço para a afirmação de uma elite que reforçava o seu estatuto de superioridade devido à «informação privilegiada» que detinha pelos seus canais próprios de acesso ao estrangeiro. Ao saber, primeiro do que os outros, o que se passava lá fora, há um inside tradingcultural no trabalho desta elite, que, informando o «povo» e cultivando-lhe o gosto, contribuía para um consenso que sedimentou o «cavaquismo» e favoreceu as suas maiorias absolutas. Assim, neste trade-off todos ficavam a ganhar. Aliás, é curioso recordar que uma das Grandes Opções do Plano do governo minoritário de Cavaco Silva foi redigida por Miguel Esteves Cardoso. Uma entrevista que «MEC» concedeu em 2008 à revista Ler faz adivinhar o conteúdo do documento: «A  primeira coisa que  publiquei na revista do Colégio Inglês foi poesia. Escrevi as Grandes Opções do Plano, a tese de doutoramento, os bilhetes à empregada, cartas de amor». Se quisermos, num balanço muito simplista, pode dizer-se que O Independente, sobretudo a partir de certa altura, contribuiu decisivamente para o desgaste político do «cavaquismo», mas também, do mesmo passo, alimentou o espírito lúdico e o imaginário de segmentos muito diferenciados da sociedade – das classes médias e médias-altas até à juventude das mais variadas origens sociais –, impregnando-a de um sentimento difuso de bem-estar, material e imaterial, que foi relevantíssimo para os triunfos políticos de Cavaco Silva, materializados na obtenção de duas maiorias absolutas monopartidárias no quadro de um sistema eleitoral proporcional. 
 

Nas palavras de Maria Filomena Mónica, «A manutenção de Cavaco Silva no poder não se compreende se não tivermos em conta a situação económica que se viveu, no triénio que se seguiu à adesão à CEE. Melhor do que ninguém, Cavaco Silva soube materializar as aspirações das classes médias nascidas com a Revolução de Abril. O sucesso do cavaquismo radicou no facto de muitos portugueses estarem ainda suficientemente perto da miséria para não tolerarem brincadeiras com a economia, e suficientemente longe das velhas famílias para não acalentarem visões nostálgicas sobre o regresso dos senhores» (55).

Indiscutivelmente, o aumento do poder aquisitivo das classes médias foi essencial para as maiorias absolutas de Cavaco Silva, as quais coincidem, não por acaso, com um aumento dos níveis de bem-estar e de aumento de consumo. Basta recordar a euforia vivida aquando da abertura dos primeiros hipermercados. No dia 10 de Dezembro de 1985, na inauguração do primeiro hipermercado português – o Continente, de Matosinhos –, as prateleiras ficaram literalmente vazias. Em 1987, o grupo Pão de Açúcar abriu uma grande superfície na Amadora, logo seguido pelo Continente (56). Num expressivo sinal dos tempos, o Continente de Matosinhos foi implantado num terreno comprado à diocese do Porto: o avanço do consumismo correspondia a um retrocesso da influência da Igreja na sociedade portuguesa.





 Ora, se o bem-estar material se reflectiu nas maiorias absolutas de Cavaco Silva, a mensagem festiva e hedonista de O Independente e, mais vincadamente ainda, da Kapa remetiam para uma noção de «mudança», demovida, que também serviria os sucessos eleitorais do PSD. Noutro contexto, interessaria citar ainda a abertura das televisões privadas, fenómeno ocorrido um pouco mais tarde e que consigo trouxe um sentimento de novidade, pluralismo e diversidade na oferta cultural vocacionada para as massas, além, naturalmente, de novos canais de difusão da publicidade e de padrões comportamentais e estilos de vida. A 6 de Outubro de 1992, a SIC (Sociedade Independente de Comunicação) iniciava as suas emissões e, três anos depois, em Maio de 1995, ultrapassava, pela primeira vez, as audiências do canal público (57). Curiosamente – e à semelhança do semanário de Esteves Cardoso e Paulo Portas –, a SIC ostentava no nome a palavra «independente», reforçando a mensagem de distanciamento face ao poder político. Também a TVI, cujas emissões começam a 20 de Fevereiro de 1993, se denominava Televisão Independente. O triunfo de audiências da SIC sobre a RTP equivalia, no plano simbólico e não só, a uma vitória da iniciativa privada sobre o sector público. E, aos poucos, o broadcasting foi dando lugar ao narrowcasting, com a sucessiva abertura de canais temáticos para públicos específicos. No entanto, o ponto essencial a salientar é o seguinte: a marca da novidade e diversidade contribuiu, de forma decisiva, para fomentar um difuso sentimento de bem-estar imaterial, muito importante para o sucesso de Cavaco Silva, especialmente a sua primeira maioria absoluta. Não houve, em todo o caso, uma relação directa entre a abertura de canais privados e os dois grandes triunfos eleitorais do PSD, já que estes ocorreram antes – em 1987 e em 1991, respectivamente – do início das emissões televisivas da SIC e da TVI. Neste particular, aliás, existiu um acontecimento que provocou um profundo desgaste na maioria governativa – o chamado «buzinão» na Ponte 25 de Abril, transmitido em directo, em emissões ininterruptas, pelas televisões privadas, naquele que foi o seu primeiro grande «evento» jornalísticos e também o primeiro grande teste à sua autoproclamada «independência». Se é frequente atribuir às manchetes de O Independente um efeito corrosivo sobre a governação social-democrata, importa não descurar este episódio, até pelas repercussões que teve, naturalmente muito mais amplificadas devido ao uso de um canal de comunicação de massas como a televisão. Esta, justamente pelas mesmas razões, precisamente devido à escala do impacto das suas mensagens, foi também decisiva no plano das mentalidades e dos costumes. Talvez não tanto como causa de transformações, mas como eco e amplificador das mesmas, já que tudo indicia que as grandes mudanças de atitudes e comportamentos começaram a ter lugar um pouco antes das primeiras emissões televisivas privadas, em meados e finais da década de oitenta.   


Casa dos Segredos - 4

 

É elucidativo que, segundo alguns observadores, haja sido nessa década que a sexualidade se começou a revelar cada vez mais central na formação e expressão da identidade dos jovens (58). A este respeito, há um ponto importantíssimo: a ideia de um sentido de gratificação pessoal, muito veiculada pelo jornal O Independente, pela Kapa, pelos meios culturais que se moviam, em Lisboa, na zona do Bairro Alto. A ideia de um sentido de gratificação pessoal foi decisiva para que a sociedade portuguesa estivesse apta a receber as privatizações, a economia de mercado, a adesão à CEE, os governos de Cavaco Silva. Se não existisse esse sentido de autonomia e de gratificação pessoal, incutido em cada um, não poderia fazer-se a transição pós-revolucionária. Não haveria espaço mental para tanto, para que o hedonismo triunfasse em absoluto sobre o colectivismo no universo das representações de muitos cidadãos, nomeadamente os jovens.  

Como é evidente, isso teve – e tem  –  consequências que incomodam os mais conservadores, como o aumento exponencial da taxa de divórcio, a hipersexualização da sociedade, o consumismo, mas quero apenas sublinhar que o sentido de gratificação pessoal foi importantíssimo na viragem cultural da década de oitenta, espelhando, muito provavelmente, o recuo da influência da Igreja nas atitudes e mentalidades.    

Esta questão é também relevante porque desvenda, à pequena escala lusitana, uma das contradições culturais do capitalismo, de que falava Daniel Bell num famoso livro de 1976 (The Cultural Contradictions of Capitalism): o capitalismo vive à base de princípios de acção que tendem a destruir a ética «protestante» que alimenta o seu espírito. Num sentido próximo, ainda que não convergente, emerge também neste movimento uma tensão que, entre outros, Anthony Giddens detectou no discurso ideológico da direita (59). Trata-se da tensão entre conservadorismo e liberalismo, entre Edmund Burke e Milton Friedman. Como pode a direita ser liberal na economia e conservadora nos costumes, ou vice-versa? A direita festiva dos anos oitenta e noventa e, mais recentemente, a novíssima direita dos blogues não resolvem o problema, adoptam uma atitude de fuga para a frente e, verdadeiramente, não colocam a si próprios estas questões, que são dilacerantes para a sua coerência – e para a sua consciência. De facto, é difícil conciliar a proclamação da «liberdade de escolher» (na actividade profissional, no sistema de ensino, na vida empresarial) e a preservação de um conjunto de princípios e valores que, à partida, são considerados axiologicamente «superiores» enquanto linhas de orientação de padrões comportamentais e estilos de vida. O fracasso do projecto original da «televisão da Igreja», a TVI, espelha bem a dificuldade de conciliar, por um lado, uma lógica agressiva de mercado e de captação de audiências numa sociedade marcada pelo sentido de gratificação pessoal e, por outro, a salvaguarda de uma constelação de valores alheia – e até adversa – àquela lógica. Já O Independente, em contrapartida, convivia melhor com essa dupla exigência. Sob um grafismo arrojado, inspirado no Libération,  podia, inclusivamente, adoptar uma retórica nacionalista que, se acaso tivesse sido utilizada por outros protagonistas, com menos «redes» e «pontes» à esquerda, seria de imediato apodada de retrógrada e obsoleta. O Estatuto Editorial dizia que o jornal tinha «valores», acrescentando: «Para O Independente o primeiro valor é Portugal. Será defendido o conceito de Pátria, no sentido mais amplo de unidade essencial de território e cultura» (60). Mas, do mesmo passo, autodefinindo-se como «democrata e conservador», dizia tomar «partido por quem tiver razão e não será cúmplice de qualquer abuso de poder». Instaurava, por conseguinte, um projecto que se caracterizava como patriótico e conservador e, em simultâneo, como anti-institucionalista e até libertário. Uma das crónicas de Miguel Esteves Cardoso, escrita a propósito de uma entrevista televisiva de Cavaco Silva, debruçava-se sobre o «cuspo nos cantos da boca do senhor primeiro-ministro». Uma das edições do Caderno 3 mostrava Cavaco Silva metamorfoseado de galã de Hollywood e ostentava o título «Na cama com Cavaco». Anunciava-se: «Fita de qualidade. 208ª semana. Ameaça reposição». O enredo era assim resumido: «Ele veio de Boliqueime. Ele subiu a pulso. Ele arrastou multidões. Intriga. Sucesso. Sedução» (61).


Manchete de O Independente: «Cidadãos Soviéticos Raptados em Lisboa»
 
 

Se ideologicamente parecia seguir uma matriz «conservadora» e «nacionalista», o ponto de vista económico, O Independente afigurava-se, em contrapartida, como «liberal». Um folheto publicitário distribuído com o jornal, nos seus números iniciais, intitulava-se, expressivamente, «A Paixão de Saber Escolher» e o Estatuto Editorial proclamava «o mercado como princípio da vida económica», sendo «preciso devolver à iniciativa privada os direitos que o Estado português lhe nega». Em suma, escrevia-se, «um bom jornal é uma nação a falar consigo mesma [e] O Independente quer tomar parte nessa conversa» (62). Haveria, naturalmente, uma tensão, porventura insanável, entre princípios conflituantes, mas nada disso era relevante em face do seu estilo provocador e iconoclasta, à luz do qual tudo se justificava: «O que nos interessava, afinal, não era o conteúdo mas o estilo, e estilo foi coisa que jamais faltou ao Indy – entre um bom título e a verdade, geralmente sacrificava-se a verdade. Heresia? Qual heresia. Em tempos cinzentos – como aquele e como estes –, a provocação faz tanta falta quanto a verdade e o rigor», escreve João Miguel Tavares (63).  A irreverência do jornal levá-lo-ia, por exemplo, a fazer um inquérito a diversas personalidades públicas, interrogando-as sobre que roupa interior usavam: 
 
 


 

 

A tensão entre liberalismo e conservadorismo torna-se mais evidente na geração seguinte da intelectualidade portuguesa de direita, talvez até mais «libertária» em matéria de costumes do que a sua antecessora. Para o nascimento desta «novíssima direita», a fractura decisiva foi a Internet, e a velocidade da sua disseminação. A Internet e, sobretudo, a blogosfera e as redes sociais, constituíram um ponto de viragem absolutamente radical cujas proporções dificilmente podem ser exageradas. Doravante, não era preciso um jornal ou uma revista, não era necessário pertencer a uma classe determinada ou conhecer as «pessoas certas» para publicar crónicas e difundir opinião. E, num espaço de segundos, acedia-se a informação estrangeira que, nos tempos das encomendas de livros na Buchholz ou na Férin, demoravam semanas ou meses a chegar. A Internet permitia a democratização dos talentos e o cosmopolitismo sem sair de casa – do quarto na casa dos pais… –,  sem ter necessidade de uma bolsa da Fundação Gulbenkian, sem ter que esperar pela crónica semanal de «MEC» para saber o que se fazia «lá fora». Sintomaticamente, ensaístas como Alain Minc sustentam que Sartre foi o último dos «intelectuais»: o surgimento da Internet, um fenómeno avassaladoramente democratizador, fez desaparecer hierarquias e circuitos privilegiados de acesso e difusão das ideias (64). Em contrapartida, a quantidade de informação acabou por implicar maior esforço intelectual: desde então, não bastaria proclamar «o que existe» ou «saiu um livro A ou um disco B» pois isso em poucos segundos se sabe e, de uma forma niveladoramente «democrática», todos o sabem. Tornou-se necessário, cada vez mais, um contributo adicional, próprio, para resgatar o auditório do seu alegado provincianismo. Nos tempos da Internet, uma publicação com o perfil de O Independente, designadamente o seu famoso Caderno 3 (dirigido por Esteves Cardoso), teria muita dificuldade de se afirmar na esfera pública.

A produção na Internet tem também efeitos nos conteúdos: a luta ideológica, transferida para o universo digital, cede ao imediatismo e até aos insultos e ataques pessoais (particularmente visível nas caixas de comentários), tem um espaço limitado para o desenvolvimento de um pensamento, obriga a um esforço de síntese que não se compagina com uma análise mais profunda, premeia o estilo contundente, polemizante, comsoundbytes provocatórios e vive em excesso no presente, no dia-a-dia e na espuma do efémero, desvalorizando a importância da memória e a percepção de que toda a realidade tem uma genealogia; por vezes uma genealogia mais prosaica e mais «mundana» do que aquela que se apresenta.
 


Pedro Mexia


Pedro Lomba

João Pereira Coutinho



Em todo o caso, a Internet foi extraordinariamente importante para a afirmação de uma nova geração, e hoje existem tantos blogues influentes de direita quanto de esquerda. A blogosfera e as redes sociais, com destaque para o Facebook, são muito mais plurais e equilibradas em termos de representatividade das diversas correntes de opinião do que, por exemplo, as televisões e, sobretudo, a imprensa escrita. Mas também é certo que foi através da imprensa escrita que muitos dos nomes cimeiros da direita intelectual contemporânea se começaram a projectar, como aconteceu com Pedro Mexia e Pedro Lomba, no suplemento cultural do Diário de Notícias, oDNa, sendo igualmente na imprensa escrita que, após a passagem pela blogosfera, fazem actualmente ouvir a sua voz. Ao contrário do que por vezes se diz, Pedro Mexia e Pedro Lomba não «nasceram nos blogues»; participaram, isso sim, em projectos combativos de afirmação de ideias que utilizavam a Internet como veículo (sem terem a noção exacta da dimensão que esta viria a ter) e que não coincidiam com o estilo snob de O Independente, nem com o discurso místico-patriótico que este propalava nem com a mundanidade nocturna que constituiu o principal eixo de apoio da rede de sociabilidades que alicerçava o programa cultural e estético de «MEC». Pela sua qualidade e originalidade, merece destaque o blogue «Coluna Infame», projecto de 2002-2003 de Pedro Mexia, Pedro Lomba e João Pereira Coutinho, muito influenciado na sua génese pelos acontecimentos do 11 de Setembro, que haviam dado lugar a uma obra marcante para a intelectualidade de direita, o livro de Fernando Gil e Paulo Tunhas, Impasses. Seguido de coisas vistas, coisas ouvidas (2003). Todos eles, até por razões que precederam ou acompanharam a sua presença no «A Coluna Infame», conquistaram um lugar de destaque na esfera pública, ainda que percorrendo caminhos diversos. Pedro Lomba escreveria no Público, Pedro Mexia noExpresso, João Pereira Coutinho no Correio da Manhã e, com grande êxito, naFolha de S. Paulo. Todos tiveram presença marcante na blogosfera, mas afirmam agora as suas posições noutros lugares, como a imprensa escrita ou a televisão. E todos eles tinham e têm, a par da componente estritamente política, uma marcadíssima aproximação de natureza cultural, sendo patente a sua reverência por Nelson Rodrigues, Philip Larkin, Evelyn Waugh, a pop inglesa ou o cinema independente. A partir desse encontro, cada qual seguiu o seu caminho: Pedro Lomba e João Pereira Coutinho mais ligados às universidades, Pedro Mexia mais próximo dos meios literários do que académicos, todos rejeitaram a atracção do tribalismo e, ao invés, cultivaram um estrito individualismo, pessoal e intelectual.         

É certo que existem muitas outras personalidades na intelectualidade de direita – até mais marcadamente de direita – e que a direita não se circunscreve ao âmbito cultural; em todo o caso, estas são especialmente representativas e particularmente decisivas, ou influentes, na formação da opinião, devendo notar-se que, de algum modo, se situam numa linha de continuidade com a geração fundadora de O Independente, em especial na preferência pela intervenção no campo cultural e pela abertura ao diálogo com outros quadrantes – características muito visíveis em Pedro Mexia – e, bem assim, pela repulsa pela direita mais ultramontana e inflamada, a qual também encontrou na blogosfera um novo território de expressão e propaganda.   

Nos actuais blogues de intervenção político-ideológica, que já pouco têm a ver com a linha de «A Coluna Infame», agrupam-se personalidades («A ou B escreve no 31 da Armada…») e formam-se novas redes. Há também a tendência para um extremar de posições, a qual possui em pano de fundo acontecimentos marcantes no plano internacional, como o 11 de Setembro ou a guerra no Iraque, ou no plano nacional, como a nomeação de Pedro Santana Lopes como Primeiro-Ministro e a queda do seu governo, o consulado de José Sócrates ou a crise económica e o programa de austeridade adoptado na sequência do pedido de ajuda financeira externa. Dificilmente se encontram blogues plurais, cada blogue é «de esquerda» ou «de direita», «pró» ou «contra», sendo a realidade objecto de uma simplificação selvagem e totalmente maniqueísta. Aliás, este fenómeno paradoxal de afunilamento de perspectivas devido à «tribalização digital» tem sido estudado por observadores da Net. E já há personalidades que se afirmam na esfera pública sobretudo devido à popularidade dos seus blogues, como acontece com João Gonçalves, do «Portugal dos Pequeninos», ou, noutro quadrante, com Paulo Guinote, de «A Educação do meu Umbigo». Com esta afirmação não se está, note-se, a emitir qualquer juízo de valor. Pelo contrário, a fazer um juízo ele só terá de ser positivo, pois num meio tão ferozmente competitivo e frenético como a blogosfera, é necessário um grande talento para se destacar. Constata-se apenas que há uma mudança muito interessante, que consiste no facto de a blogosfera ser um canal de acesso ao poder e um instrumento de influência cultural e social que está aberto a todos, ou quase todos.

A «novíssima direita dos blogues» (termo redutor, aqui usado por comodidade de expressão) desenvolve a sua acção em múltiplas direcções e seria muito injusto simplificar uma realidade onde até intervêm idiossincrasias pessoais: uns são mais cultos do que outros, há os mais belicosos e os mais complacentes, e existem mesmo lutas internas, dentro da facção a que se pertence, com acusações de falta de coragem, conformismo, adesão ao «sistema» ou, ao invés, de ambição de protagonismo e de carreirismo. O que interessa notar é que esta novíssima direita, tendo emergido num ambiente pós-secular, é liberal nos valores e, em regra, não toma posição nas «questões fracturantes». Tem pavor de ser conotada com a direita tradicional, ou tradicionalista, considerada acéfala, intolerante, ultramontana. Tem horror ao carreirismo político feito nas juventudes dos partidos. É culta, informada, cosmopolita, não tem um projecto político agregador, é individualista e, por isso, consegue perceber muito bem, quase que por reacção instintiva, que seria fatal para ela confundir-se com a direita dita «caceteira» do antigamente  (65). Se o fizesse, seria liquidada em segundos pelos seus adversários. Esta direita é também, sobretudo em alguns casos, muito mais «combativa» e «adversarial» do que a direita dos anos oitenta, até porque a Internet favorece, promove e proporciona, muito mais do que os jornais e a imprensa escrita, um estilo imediatista de acção e resposta (66).  

         Esta corrente convive, sem se confundir, com aquilo que é, isso sim, claramente uma «moda» e creio que, ao contrário do «neoconservadorismo estético», será efémera. Refiro-me a uma difusa e até inclassificável revisitação pop do salazarismo. António de Oliveira Salazar tornou-se um produto de consumo de massas. Não apenas pelo facto de ter sido eleito «o maior português na História» num concurso televisivo de 2007 (em que foi «defendido» por Jaime Nogueira Pinto), mas pela abundância, em seu redor, de publicações e de livros, de filmes (por ex., Salazar: A Vida Privada, de Jorge Queiroga, com Diogo Morgado e Soraia Chaves, 2009), e até de um certo revivalismo da imagética estadonovista. Cobrindo um espectro mais amplo do que o salazarismo, esta rememoração iconográfica abarca desde álbuns sobre a «Lisboa desaparecida», de Marina Tavares Dias, à reedição dos antigos manuais das escolas primárias (67) ou ao levantamento, em vários volumes, das imagens marcantes do século XX português, realizado por Joaquim Vieira, bem como uma resenha do quotidiano lisboeta na década de 60, de Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowski. Seria impensável, aqui há uns anos, publicar livros sobre a Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Feminina onde o lado estético assume lugar central, como agora acontece, sem que isso provocasse uma onda de clamor e indignação. Em larga medida, tal deve-se ao facto de esta «indústria» não ser alimentada apenas por autores ou protagonistas situados à direita do espectro político-ideológico. Na revisitação do legado salazarista emergem personalidades como Joaquim Vieira ou Irene Flunser Pimentel, autores das duas obras, atrás citadas, que recuperam a iconografia e a imagética da Mocidade Portuguesa e da Mocidade Portuguesa Feminina (68). Académicos e jornalistas têm publicado uma infinidade de obras sobre o salazarismo, cobrindo os mais variados temas: o amor e a sexualidade no Estado Novo; o futebol e o cinema; as ligações com os grandes empresários; o cinema; o relacionamento de Salazar com organizações como a Maçonaria ou a Opus Dei; a vida privada do ditador ou dos seus próximos, incluindo a sua influente governanta. Esta vaga avassaladora de publicações não possui necessariamente uma carga ideológica, sendo algumas delas, aliás, bastante críticas do Estado Novo. Em todo o caso, de um ponto de vista mais estritamente mercantil ou comercial, a lógica global que está subjacente a esta vaga evidencia que existe um público interessado – ou, pelo menos, predisposto a consumir obras históricas ou ficcionais – num período da História contemporânea que, por representar um dos principais lieux de mémoire da esquerda oposicionista ou «de resistência», era por esta considerado como seu património ou território exclusivo de intervenção intelectual. É sintomático que,  como se referiu, a revisitação do passado salazarista se faça actualmente com grande despojamento ideológico por parte de amplos sectores da sociedade, como é sintomática a reacção instintiva daquela esquerda a todas as tentativas de leitura do Estado Novo que não se enquadrem nos seus modelos interpretativos e estereótipos, tais como a necessária caracterização do salazarismo como «fascismo» ou a aplicação do labéu de «revisionismo» (69) a todas as vozes dissonantes de uma visão historiográfica que, no fundo, se pretende configurar como hegemónica e até inquestionável.     




Os ressaibos nostálgicos ou revivalistas são mais evidentes num movimento paralelo, de recuperação da memória ultramarina, com a publicação de álbuns de postais [por ex., de João Loureiro, Postais Antigos de Macau, 1995;Memórias de Moçambique, 1997; Postais Antigos do Estado da Índia, 1998;Memórias de Cabo Verde, 1998; Postais Antigos e Outras Memórias de Timor, 1999;  Postais Antigos de S. Tomé e Príncipe, 1999; Memórias de Angola, 2000;Memórias da Guiné, 2000; Postais Antigos da Ilha de Moçambique, 2001; Postais Antigos e Outras Memórias da Zambézia, 2001; Memórias de Lourenço Marques, 2003; Memórias de Benguela e Lobito, 2004; Memórias da Beira, 2005; Memórias de Cabinda, 2008 (70)] ou de relatos da vida em Angola apresentada como umabeautiful life tropical (Ana Sofia Fonseca, Angola Terra Prometida, de 2009). Atente-se como a questão da descolonização e dos «espoliados do Ultramar» era tratada, inclusive em processos-crime, em tons ainda muito «aguerridos» pela direita nacionalista, que acusava alguns de traição à Pátria (71). E compare-se essa abordagem com o modo muito distinto e muito mais distendido – talvez mesmo soft ou light – como essa problemática é tratada agora, de uma forma não-ideológica. Não referindo os livros Caderno de Memórias Coloniais (2009), de Isabela Figueiredo, e O Retorno (2011), de Dulce Cardoso, objectos literários e memorialísticos à parte, pode citar-se, por exemplo, as incursões romanescas de Júlio Magalhães (Os Retornados, 2008), de Leonel Acácio (A Balada do Ultramar, 2009), de Tiago Rebelo (O Último Ano em Luanda, 2008), de Manuel Arouca (Deixei o Meu Coração em África, 2005; Exilados, 2010), de Carlos Vale Ferraz (Fala-me de África, 2007), de Júlio Borges Pereira (O Último Retornado, 2012), ou as aproximações historiográficas/jornalísticas de Isabel Valadão com testemunhos da vida colonial (A Sombra do Imbondeiro. Estórias e memórias de África, 2012), de Rita Garcia sobre a ponte aérea Luanda-Lisboa de 1975 (SOS Angola, 2011) e os retornados (Os Que Vieram de África, 2012), tema também tratado por Sarah Adamopoulos (Voltar. Memória do colonialismo e da descolonização, 2012) e Fernando Dacosta (Os Retornados Estão a Mudar Portugal, 1984; Os Retornados Mudaram Portugal, 2013). Num registo diferente, em 2009 foi publicadoAlvorada Desfeita, de Diogo de Andrade (pseudónimo), incursão romanesca próxima da História virtual ou contrafactual, em que a acção decorre com a derrota do Movimento dos Capitães a 25 de Abril de 1974. Mais recentemente, Jaime Nogueira Pinto deu à estampa Novembro, o seu primeiro livro de ficção, onde é patente a marca da memória autobiográfica. 

A par disso, existe um «memorialismo de guerra» que, pela pena de antigos combatentes, começou a surgir em editoras como A Tribuna da História ou a Prefácio e está presente semanalmente em depoimentos publicados no Correio da Manhã. De algum modo, o passado agora é mais objectivado e menos erigido em território de polémica. Uma evocação recente da Lisboa da década de sessenta é praticamente «apolítica», dando total prevalência aos aspectos vivenciais ou visuais desse decénio, mas sem que daí decorra qualquer acusação – de resto, descabida – de «revisionismo» (72). A emissão da série documental «A Guerra» (2007-2012), de Joaquim Furtado, também graças ao seu rigor, não suscitou especial controvérsia. O mesmo ocorreu, aliás, com a série de ficção «Conta-me Como Foi» (adaptada da sua congénere espanhola «Cuéntame cómo pasó»), produzida e apresentada pela RTP entre 2007 e 2011, de que foi consultora histórica Helena Matos, antiga directora da revista Atlântico e autora de uma obra fundamental sobre o quotidiano do marcelismo, Os Filhos do Zip Zip (2013). De igual modo, a série «Depois do Adeus», que, por assim dizer, prolonga «Conta-me Como Foi», centrando-se agora no pós 25-Abril, não suscitou reacções significativas, excepção feita à previsível crítica nas páginas doAvante! (73). Deve reconhecer-se que existem, em todo o caso, dimensões nostálgicas e até saudosistas numa tendência cultural de massas que tem diversas e heterogéneas concretizações. No entanto, nenhuma delas foi até agora capaz de produzir – e esse ponto é muito curioso – efeitos imediatos na esfera política.      
 
 
Conta-me Como Foi
 

Quais os caminhos que a novíssima direita, a direita nascida nos blogues, irá tomar? É difícil fazer previsões e, mais ainda, generalizações, sempre abusivas. Em todo o caso, parece certo que não existe uma sociedade civil e um empresariado que estejam dispostos a alimentar esta geração através de think thanks, editoras ou publicações como, no passado, ocorreu com O Independente ou com a revista Kapa. Por seu turno, a universidade portuguesa não tem dimensão suficiente para ser o ponto de apoio para um movimento ideológico de vulto e de larga projecção, para o que muito contribui um outro problema: o da escala. E a «irreverência», o grande trunfo quer de O Independente, quer da Kapa, desde há muito que abandonou o universo do papel impresso, tendo-se transferido em definitivo para a esfera da Internet.

A ausência de escala e dimensão dificulta, desde logo do ponto de vista comercial, projectos editoriais abertamente conotados com uma área ideológica de direita ou produzidos em exclusivo pela intelectualidade de direita. Para conseguirem alguma sedimentação e acolhimento, parecem carecer de «pontes» com outros quadrantes, fórmula que ditou o sucesso da revista Kapa. Em todo o caso, existem exemplos de projectos que puderam servir de veículos para a afirmação de vozes alternativas ao establishmentdominado pela esquerda, num tempo muito marcado por uma intensa polarização ideológica sobre a intervenção militar norte-americana no Iraque. A este respeito, destaca-se a revista Atlântico (2005-2008), publicação que ficou conhecida pelo desassombro com que, mais até que O Independente, adoptou uma posição assumidamente liberal-democrática e, como o próprio título indicava, uma postura pró-atlantista, pró-americana e, em termos menos visíveis, pró-israelita. Com direcção executiva de Helena Matos e, depois, de Paulo Pinto Mascarenhas, nela surgiam nomes como Rui Ramos, Vítor Bento, Joaquim Aguiar, Maria Filomena Mónica, Maria de Fátima Bonifácio, Vasco Pulido Valente, João Marques de Almeida, Nuno Garoupa, Pedro Lomba, João Pereira Coutinho ou Pedro Mexia. Este projecto, cuja importância histórica ainda permanece por analisar, culminaria na formação de um blogue, encerrado em 2009, e integrado, entre outros, por Alexandre Homem Cristo, André Azevedo Alves, Bernardo Pires de Lima, Francisco Proença de Carvalho, Henrique Burnay, Henrique Raposo, Lucy Pepper, Miguel Morgado, Paulo Pinto Mascarenhas, Paulo Tunhas, Pedro Boucherie Mendes, Pedro Marques Lopes, Rodrigo Adão da Fonseca, Rui Ramos, Tiago Moreira de Sá, Vasco Campilho ou Vitor Cunha (74). A par de nomes consagrados, foi a Atlântico que lançou e projectou uma vaga de autores de centro-direita com grande impacto público, alguns dos quais se destacam hoje como colunistas ou publicistas de referência numa certa área política, possivelmente mais liberal do que conservadora. Trata-se de um legado que, de certo modo, O Independente não deixou. Talvez porque se tratava de um jornal, enquanto a Atlântico, sendo uma revista, concedia mais espaço a comentadores e analistas, muitos vindos do meio académico, do que aos profissionais da comunicação social. Ou, talvez mais decisivamente, porque, sem prejuízo da heterogeneidade de visões dos seus colaboradores, possuía uma matriz editorial mais coerente e não se encontrava vinculada a um projecto de intervenção na «política de todos os dias», designadamente nos jogos de alianças e de conflitos intra- e interpartidários. 


Atlântico. Revista Mensal de Ideias e Debates


 

Importa salientar que na «nova geração» há um apreciável individualismo, sendo qualquer alinhamento com um «grupo» visto como uma «cedência», como uma «perda de independência». E, quanto maior notoriedade adquirem, menos dispostos estão os novos intelectuais a abdicar do seu estatuto. Querem ser, acima de tudo, «intelectuais» e sentem e ressentem-se da pequenez da terra onde tiveram a desventura de nascer. A escassa dimensão cultural do país faz com que, na melhor das hipóteses, sejam «intelectuais portugueses», o que é pouco. Não se trata de ironizar com a sua ambição, mas de reconhecer um facto dramático: o cosmopolitismo, induzido até pela internacionalização dos percursos académicos ou profissionais, transfere a emulação para um patamar superior ou mais vasto. A concorrência ou o diálogo, bem como a auto-representação dos intelectuais portugueses são agora feitos num outro plano, sobretudo à medida que verificam que triunfaram e alcançaram um lugar seguro no mercado nacional das ideias. O «estrangeiramento», que devia ser um pretexto de abertura de horizontes, pode converter-se numa advertência de paroquialismo, fonte de infelicidade e revolta interior. Poder-se-ia classificar tudo isto como o «psicodrama Vasco Pulido Valente», que esta nova geração sente com muita intensidade.

         Na verdade, a geração anterior era cosmopolita nas universidades em que se doutorava mas profundamente provinciana, pois a ida para o estrangeiro, ao invés de abrir horizontes, encerrou-a numa visão diletante e snobe da realidade portuguesa. Essa geração, aliás, teve o extremo da presunção: achava que, por nascimento ou por talento possuía uma espécie de direito natural a um estatuto privilegiado, academicamente, socialmente, mediaticamente, financeiramente. Se não tivessem esse estatuto, Portugal não os merecia – e isso seria mais outro sintoma do atraso nacional. Sendo tão clarividentes nas suas crónicas de análise do país, não perceberam o que estava a acontecer em seu redor e, esse é o seu maior «crime». Limitaram-se à crítica puramente intelectual e especulativa, totalmente maldizente, nada fazendo em concreto para evitar os rumos que criticavam. No fundo, era a crítica, a pura crítica, que os animava e mantinha. O balanço final, como é evidente, não podia correr bem. Não admira, pois, o «vencidismo» dessa geração, patente na acidez desgastada das crónicas de Vasco Pulido Valente, lidas muito mais pela inquestionável elegância formal do seu estilo do que pela substância das opiniões nelas expendidas.   


Contudo, esse «vencidismo» já se começa a projectar em alguns jovens intelectuais de direita que, sendo novos, envelheceram rápida e interiormente, devido a Portugal, o «da vidinha» de O’Neill,  o Portugal «questão que tenho comigo mesmo». São muito mais cosmopolitas do que a geração precedente (já nem encomendam livros na Amazon, lêem-nos directamente no Kindle), falam e escrevem à vontade em inglês, a língua franca universal, têm redes de sociabilidades à escala mundial, tiveram experiências de estudo mais ou menos prolongadas na Europa «civilizada» ou nos Estados Unidos. Mas, à semelhança de todos os intelectuais do passado, é uma fatalidade serem incapazes de se libertarem de Portugal, feira cabisbaixa, mesmo quando se fixam no estrangeiro. Assim, como o horizonte que olham é sempre o da pátria, pátria onde não se revêem mas de que não escapam, o seu destino será idêntico, ou pior, do que o da geração precedente. É que esta última ainda tinha empregos seguros no Estado e, agora, pensões de reforma, talvez não tão seguras. Agora, a pulsão da raiva geracional será muito forte. Portanto, é provável que estes jovens tenham a mesma sorte de um Miguel Esteves Cardoso ou de um Paulo Portas. Na melhor das hipóteses, vão acabar a escrever colunas em jornais ou irão tornar-se ministros de Estado. Entre um e outro destino, não sabemos qual será o melhor – ou o pior.
 
 
 
António Araújo
 











(1) Texto que serviu de base à intervenção oral no colóquio «O estado das direitas na democracia portuguesa» (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, Fevereiro de 2012). O presente artigo não pretende ser um estudo de natureza académica, mas uma aproximação ensaística que mantém o estilo coloquial da exposição atrás citada. Agradeço a Riccardo Marcchi o convite para participar nesse encontro, bem como a autorização para publicar este texto no Malomil.      
(2) Note-se que, no percurso de algumas destas personalidades, a génese do Semanárioesteve ligada – ou, pelo menos, coincidiu temporalmente – com o lançamento de novos projectos políticos, como a «Nova Esperança» de Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Santana Lopes e José Miguel Júdice: cf. Vítor Matos, Marcelo Rebelo de Sousa, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2012, pp. 407ss.
(3) É curioso observar que, no mesmo ano em que é lançado O Independente, inicia a sua publicação a revista Máxima, dirigida por Madalena Fragoso, a qual provinha justamente da direcção da secção feminina do Semanário. A trajectória biográfica de Madalena Fragoso (1940-2013) é muito elucidativa: nascida no seio de uma família tradicional, filha do director do Diário de Notícias no tempo do marcelismo, desloca-se para Londres a seguir ao 25 de Abril. Regressa a Portugal com a chegada ao poder da Aliança Democrática, tendo sido assessora de imagem de Sá Carneiro e, mais tarde, como se disse, fundadora e directora da revista feminina Máxima.: cf. o seu obituário, da autoria de Pedro d’Anunciação, in Sol, de 1-III-2013. 
(4) Para um relato breve sobre o processo de privatizações, cf. Abílio Ferreira, «Privatizações. Regresso ao passado», Expresso/Revista, de 2-II-2013. Sobre as privatizações e a cultura política das elites, cf. José Manuel Leite Viegas, Nacionalizações e privatizações. Elites e cultura política na história recente de Portugal, Oeiras, Celta, 1996, em esp. pp. 169ss.  
(5) Cf. a reportagem de Rita Roby Gonçalves, «Banana Power fenómeno dos anos 80»,Diário de Notícias, de 7-II-2009.
(6) Cf. Clara Maria Ferraz, «As Estratégias Endogâmicas das Classes Superiores» (comunicação ao III Congresso Português de Sociologia, 1996) [disponível na Internet e consultado em 8-II-2013].
(7) Ao contrário do que sucede noutros países, não existe, segundo creio, uma obra dedicada ex professo à história política, económica, social e cultural dos anos oitenta. Além de «anuários» meramente descritivos, foi publicada, para consumo de massas, a curiosaBíblia dos Anos 80, da autoria de João Pedro Bandeira (s.l., Prime Books, 2010). Existiu ainda uma recensão com propósitos humorísticos, que incidia em particular  nos objectos de consumo infanto-juvenis dessa época, feita por Nuno Markl na Rádio Comercial e posteriormente publicada em dois livros (Caderneta de Cromos, Carnaxide, Editora Objectiva, 2010; Caderneta de Cromos Contra-Ataca, Canaxide, Editora Objectiva, 2012). Ainda que reportada ao final da década de setenta, é interessante a colecção de fotografias publicada por José Paulo Ferro, Roll Over. Adeus Anos 70, Lisboa, Documenta, 2012. Num registo distinto, assinale-se, pela sua expressividade, os Diários do poeta Al Berto, publicados pela Assírio & Alvim em 2012, com referências a várias pessoas (Manuel Reis, Eduardo Prado Coelho, Pedro Cabrita Reis, Pedro Costa, Pedro Hestnes, Paulo Nozolino, Alexandre Melo, Hermínio Monteiro, Bernardo Sassetti, Daniel Blaufuks, Sofia Areal, Zé da Guiné, Rui Chafes, Inês Pedrosa, António Mega Ferreira, Mário Cesariny, António Guerreiro, Luís Miguel Nava, Pedro Paixão, Rui Chafes, Tereza Coelho, Margarida Martins, Clara Ferreira Alves, Ana Salazar, Fernanda Fragateiro) e lugares (os restaurantes Pap’Açorda, Fidalgo e Sansão e Dalila, os bares Frágil e Majong, a pastelaria Cister, o Gay House, a Brasileira do Chiado, o Centro Cultural de Belém, a discoteca Kremlin). A evocação desses nomes e lugares é feita, de uma forma mais desenvolvida ainda, por Eduardo Pitta,Um Rapaz a Arder. Memórias, 1975-2001, Lisboa, Quetzal, 2013, com referências à vida nocturna no Bairro Alto, particularmente no Frágil, e ao «alto teor de elitismo» deste bar (pp. 109ss), bem como à revista Olá!, a qual «cumpriu a função pedagógica de mostrar a um país faminto (…) que o 25 de Abril não tocou num cabelo das sessenta famílias que Cunhal toda a vida vituperou» (pp. 129-130).  O ponto que se pretende sublinhar no texto é referido por Joaquim Vieira, nos seguintes termos: «O triunfo de uma tecnocracia urbana pós-industrial, em grande parte formada por mulheres, fornece o caldo cultura ideal para o retorno ao aprumo de gravata e fato e para a prática de uma requintada elegância feminina, em contraste com o estilo descontraído e na aparência desleixado que vingou nos rebeldes anos 70. O contexto expansionista internacional, com a emergência dos yuppies – jovens especuladores bolsistas associados às grandes praças financeiras –, estimula o novo chique»: cf. Joaquim Vieira, Portugal, Século XX. Crónica em Imagens, 1980-1990, s.l., Círculo de Leitores, 2000, p. 24, com referência àOlá!/Semanário a pp. 107ss.  
(8) Cf. Fernando Correia de Oliveira, «Revista “Casa e Jardim” comemora 25 anos»,Público, de 22-IV-2002.
(9) «O Expresso foi, em certo sentido, a principal marca de contraste que explica o nascimento de uma alternativa», escreve Paulo Portas, a propósito de O Independente. O raciocínio aplica-se, todavia, também ao Semanário, já que a génese de O Independente é indissociável de uma certa «cristalização» do Semanário justamente nos aspectos «sociais» ou mundanos, como refere Paulo Portas: «Quando, na Buchholz, o Miguel e eu tivemos a conversa distraída que está na origem de “O Independente”, cruzaram-se dois desprendimentos. O meu era uma incomodidade melancólica com o caminho que o “Semanário” estava a trilhar, capturado pelo êxito da “Olá”. Eu achava que a direita “inteligente” tinha feito um esforço para se organizar editorialmente mas corria o risco de se ver esse esforço consumido por uma euforia “social”, com queda para uma ostentação pouco cristã e, de resto, nada conservadora» (in Expresso, de 5-I-2013). 
(10) Cf. Werner Sombart, Amor, luxo e capitalismo [1913], trad. port., Venda Nova, Bertrand, 1990. 
(11) O enquadramento jurídico do turismo de habitação, do turismo rural e do agro-turismo surgiu, não por acaso, nessa altura, através do Decreto-Lei nº 256/86, de 27 de Agosto.
(12) Cf. Eric Hobsbawm, «Introduction: Inventing Traditions», in AA.VV., The Invention of Tradition, dir. de Eric Hobsbawm e Terence Ranger, Cambridge, Cambridge University Press, 1983, pp. 1ss.
(13) Cf. o elucidativo texto de Alexandra Prado Coelho, «Passaram trinta anos. Já digerimos Tomás Taveira e as Amoreiras?», Público, de 25-IV-2012. Sobre a arquitectura de Tomás Taveira, cf. José Bártolo e Maria João Baltazar, Tomás Taveira, Vila do Conde, Quidnovi, 2011.
(14) Entre 2000 e 2012, segundo os elementos do Instituto Nacional de Estatística e do Instituto de Registos e Notariado, os nomes próprios masculinos mais frequentemente utilizados foram, por esta ordem: Rodrigo, Martim, João, Afonso, Tiago, Gonçalo, Tomás, Diogo, Francisco e Miguel. Entre 1970 e 1980, haviam sido: João, Pedro, Bruno, Ricardo, José, Luís, Nuno, Carlos, Tiago e Rui. Nos nomes femininos, entre 2000 e 2012: Maria, Matilde, Leonor, Beatriz, Mariana, Inês, Ana, Lara, Carolina e Margarida; entre 1970 e 1980: Ana, Maria, Joana, Carla, Andreia, Sandra, Susana, Tânia, Patrícia e Cátia: cf. Kátia Catulo e Carlos Monteiro, «Nomes portugueses. Manuel é passado e Maria será sempre Maria», i, de 1-XII-2012. Em 2012, os nomes mais populares foram: para raparigas, Maria, Matilde, Leonor, Mariana e Beatriz; para rapazes, Rodrigo, Martim, João, Afonso e Gonçalo (cf. Joana Capucho, «A luta de classes existe na hora de escolher o nome dos filhos», Diário de Notícias, de 5-VIII-2013).
(15) A expressão é de Vítor Belanciano, «Viciados no passado», Público/Ípsilon, de 13-IV-2012, num «dossiê» em que vários jornalistas debatem o revivalismo no consumo (Inês Nadais sobre Catarina Portas e A Vida Portuguesa), no cinema (Tarantino, por Jorge Mourinha), na televisão (a série «Mad Men» analisada por Jorge Mourinha), na música (as raízes soul de Amy Winehouse, por João Bonifácio) ou na fotografia (Sérgio Gomes sobre o Instagram).
(16) Cf. Simon Reynolds, Retromania. Pop culture’s addiction to its own past, Londres, Faber and Faber, 2011.
(17) Ainda que, por vezes, existam zonas de sobreposição, algo que é patente no texto de Duarte Branquinho, «Salazar está na moda», O Diabo, de 20-III-2012, onde se recorda a escolha de Salazar como «o maior português da História», num concurso televisivo transmitido pela RTP em 2007, sendo de salientar que o antigo Presidente do Conselho teve, como «defensor», Jaime Nogueira Pinto, o qual daria à estampa o livro António de Oliveira SalazarO outro retrato, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2007, tendo anteriormente organizado a obra Salazar visto pelos seus próximos (1946-68), Venda Nova, Bertrand Editora, 1993. Recentemente, o Presidente da Câmara de Santa Comba Dão, João Lourenço, manifestou a intenção de registar a marca de vinhos «Memórias de Salazar», tendo a mesma sido rejeitada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial: cf. Graça Barbosa Ribeiro, «Santa Comba Dão queria lançar vinho “Memórias de Salazar” mas marca foi chumbada», Público/Fugas, de 28-XI-2012.        
(18) Sobre os Madredeus, cf. Jorge Pires, Madredeus. Um futuro maior, Lisboa, Temas e Debates, 1995. Entre outras intervenções, é particularmente interessante a entrevista de Pedro Ayres Magalhães a Inês Pedrosa, Anos Luz. Trinta conversas para celebrar o 25 de Abril, Lisboa, 2004, pp. 148ss.
(19) Cf., sobre este grupo musical, as reportagens realizadas por ocasião do seu trigésimo aniversário, por ex: Nuno Miguel Guedes,«Melancólica revolução da amizade», Visão, de 26-IV-2012. João Moço, «30 anos da Sétima legião. Os meninos de Alvalade», Notícias Magazine, s.d. Note-se que Francisco Ribeiro de Menezes, filho do embaixador Pedro Ribeiro de Menezes, é irmão de Filipe Ribeiro de Menezes, historiador e autor de uma biografia de Salazar que obteve grande sucesso (cf. Maria João Avillez, «Ribeiro de Menezes. Retrato de família»,Público/P2, de 22-XI-2011), a qual foi criticada por alguns historiadores de esquerda, como Manuel Loff (inAnálise Social, vol. XLVI, 2011, pp. 350ss). 
(20) Cf. Miguel Esteves Cardoso, «Misticismo e ideologia no contexto cultural português: a saudade, o sebastianismo e o integralismo lusitano», Análise Social, vol. XVIII, 1982, pp. 1399-1408.
(21) Sintomaticamente, A Causa das Coisas é uma das obras de Miguel Esteves Cardoso recentemente reeditadas pela Porto Editora, juntamente com Os Meus Problemas (orig. 1988), O Amor é Fodido (orig., 1994) e Explicações de Português (orig. 2001). A Porto Editora lançou ainda, com grande sucesso editorial e amplíssima cobertura mediática, um conjunto de crónicas mais recentes do autor, reunidas sob o título Como É Linda a Puta da Vida (2013).   
(22) Em entrevista a Pedro Mexia, Miguel Esteves Cardoso afirma que existiu uma continuidade, «até física», entre a sua candidatura ao Parlamento Europeu e o lançamento de O Independente: a percentagem de votantes na sua candidatura era um teste à viabilidade de um projecto jornalístico daquela natureza (cf. Expresso/Revista, de 24-III-2012).
(23) Cf., por ex., a reportagem «Produtos da época do Estado Novo regressam às lojas»,Diário de Notícias, de 22-IV-2009.
(24) Cf. o ilustrativo «Manifesto» de A Vida Portuguesa, que afirma: «A Vida Portuguesa nasceu com a vontade de inventariar as marcas sobreviventes ao tempo, a intenção de revalorizar a qualidade da produção portuguesa manufacturada e o desejo de revelar Portugal de forma surpreendente. Ao longo dos últimos anos pesquisámos, do Norte ao Sul de Portugal, produtos de criação e fabricação portuguesa. Que produtos são esses? São produtos que atravessaram gerações e nos tocam o coração. Fabricados desde há muito, mantiveram até aos dias de hoje as mesmas embalagens originais, bonitas, pueris. Devem a longevidade à sua qualidade, excelentíssima nalguns casos (e reconhecida no estrangeiro também). Com o tempo, o génio e o labor tornaram-nos perfeitos e essenciais. São marcas registadas na memória e comercializam uma forma de viver. Relembram o quotidiano de uma época e revelam a alma de um país. Estes produtos são nossos. Estes produtos somos nós» (in http://www.avidaportuguesa.com/). A este propósito, é particularmente interessante a entrevista de Catarina Portas à revista recursos Humanos Magazine, de Julho-Agosto de 2010. Importaria determinar em que medida este revivalismo imagético não contribui para alimentar aquilo que já se designou por «mobilização reemergente do complexo identitário português»: cf. André Barata, «A mobilização reemergente do complexo identitário português», in AA.VV., Representações da Portugalidade, dir. de André Barata, António Santos Pereira e José Ricardo Carvalheiro, Alfragide, Editorial Caminho, 2011, pp. 93ss.
(25) Cf. José Sobral, «Alimentação, comensalidade e cultura: o bacalhau e os portugueses» (comunicação ao XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, 2011) [disponível na Internet e consultado em 9-II-2013].
(26) Sobre este estilo, cf., por todos, José Manuel Fernandes, Português Suave. Arquitecturas do Estado Novo, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2003.
(27) Sobre a caça, é muito interessante o trabalho de Mário Pereira Bastos, O Problema Venatório no Alentejo – Caça, costumes e tensões sociais, dissertação de doutoramento em História Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2005, policop.
(28) Sobre a Kapa, com selecção de textos de Carlos Quevedo (alguns em co-autoria com Miguel Esteves Cardoso ou Rui Zink), cf. Carlos Quevedo, Os delírios da Kapa e outros textos, Lisboa, Oficina do Livro, s.d. Alguns textos publicados na revista encontram-se disponíveis in http://kapa.blogspot.pt/ 
(29) Cf. Vasco Pulido Valente, «Marcello Caetano. As desventuras da razão», Capa. K, nº 2, Novembro de 1990, pp. 41ss. Este marcante ensaio seria republicado em livro, em diversas ocasiões: cf., por ex., Vasco Pulido Valente, Marcello Caetano. As desventuras da razão, Lisboa, Gótica, 2003.
(30) Cf. Capa. K, nº 1, Outubro de 1990, s/p.
(31) Cf. Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas, Portugal: os números, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010, p. 39.
(32) Veja-se, por ex., os textos saídos originalmente na imprensa com os títulos «O Mistério de Cavaco», «Drama Cavaquiano» ou «O Grande Mundo do Dr. Cavaco», todos publicados in Vasco Pulido Valente, Às Avessas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, passim. No primeiro desses textos, Vasco Pulido Valente enquadra Cavaco Silva numa linha de políticos de origens humildes (Costa Cabral, João Franco, Salazar, Ramalho Eanes, Cunha Leal, Marcelo Caetano), afirmando que todos nasceram da «notória incapacidade que tem a classe dominante portuguesa de gerar os seus próprios dirigentes». Acrescentava, sobre as novas gerações de políticos: «Mas evitemos ser reaccionários. “Subir na vida” é um direito que constitucionalmente lhes assiste e não é coisa má para o país. A sociedade fluida do pós-25 de Abril tinha de os trazer à tona: e admitamos, sem excessiva repugnância, que o merecem» (ob. cit., p. 219, itálico acrescentado). Cf. ainda as diversas crónicas reunidas no livro Esta Ditosa Pátria, Lisboa, Relógio D’Água, 1997.
(33) Cf., por ex., o capítulo «O Chefe», da obra de Maria Filomena Mónica, Visitas ao Poder, Lisboa, Quetzal Editores, 1993, pp. 129ss.
(34) Cf. Expresso, de 3-I-2013.
(35) Este texto, originalmente saído na revista GQ, seria republicado in Maria Filomena Mónica, Vidas. Biografias, perfis e encontros, Lisboa, Alethêia Editores, 2010, pp. 314ss.  
(36) Curiosamente, em entrevista a Pedro Mexia, Miguel Esteves Cardoso reconhece, manifestando arrependimento, que existia algum elitismo ou snobismo, até social, nas críticas feitas a algumas elites do «cavaquismo», como Fernando Nogueira: «Fomos muito pirosos nisso. Ao princípio, achávamos graça à meia branca, era uma espécie de bulliyngarmado em snobe, de que me arrependo. É muito foleiro, mas éramos novos. Era desagradável o que fazíamos, sobretudo eu, o Paulo [Portas] não era assim. Hoje arrependo-me imenso. E gozar com a condição social da pessoa, com o gosto da pessoa, não é nada conservador (…) O Cavaco nunca pôs um processo, nunca chateou, nunca mandou uma carta, mesmo quando foi muito maltratado, foi impecável. (…) Essas pessoas com que gozávamos, como o Macário [Correia], acabavam sempre por ganhar, porque eram superiores»: cf. Expresso/Revista, de 24-III-2012.
(37) Cf. Filipe Santos Costa, «Quando Portas escrevia que Cavaco “merecia levar um estalo”», Expresso/Revista, de 18-V-2013. De si próprio, Paulo Portas escrevia: «Se há uma certeza pessoal que eu posso divulgar é a de que não tenho a menor intenção de me submeter a votos».
(38) Para um período posterior, mas no mesmo registo, cf. Maria Filomena Mónica,Confissões de uma liberal, s.l., Edições Quasi, 2007, pp. 97ss.
(40) Sem abordar esta realidade, mas de grande interesse numa perspectiva mais vasta, cf. Maria Manuel Vieira da Fonseca, Educar Herdeiros. Práticas educativas da classe dominante lisboeta nas últimas décadas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
(41) Cf. António Araújo, «O Populismo Penal: algumas notas», in AA.VV., Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, em comemoração do seu 70º aniversário, Coimbra, Edições Almedina, 2009, pp. 763ss.
(42) A crítica a Marcelo Caetano resultava ainda do facto de, em larga medida, esta direita ser o prolongamento, inclusivamente no que se refere aos seus protagonistas, da direita nacionalista radical surgida no final do Estado Novo: cf. Riccardo Marchi, Império, Nação, Revolução. As direitas radicais portuguesas no fim do Estado Novo (1959-1974), Lisboa, Texto Editores, 2009; cf. tb. José Miguel Júdice, «Oposição de direita a Marcello Caetano», in António Barreto e Maria Filomena Mónica (coord.), Dicionário de História de Portugal. Suplemento, Vol. F/O, Porto, Figueirinhas, 1999-2000, pp. 643ss. A aversão a Marcelo Caetano adensar-se-ia após o 25 de Abril, sendo aquele culpabilizado pelo fim do regime (cf., por ex., Eduardo Freitas da Costa, Acuso Marcelo Caetano, Lisboa, Liber, 1975), o que criou uma acesa controvérsia no seio das antigas elites do Estado Novo ou de personalidades próximas do legado do salazarismo. Sobre a estratégia da extrema-direita até aos anos 80, cf. Riccardo Marchi, «A extrema-direita portuguesa na “Rua”: da transição à democracia» (1976-1980)», Locus. Revista de História, vol. 18, nº 1, 2012, pp. 167ss.
(43) Cf. Jaime Nogueira Pinto, «A direita e o 25 de Abril: ideologia, estratégia e evolução política», in AA.VV., Portugal. O sistema político e constitucional, 1974-1987, dir. de Mário Baptista Coelho, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, s.d., pp. 193ss.
(44) Cf., sobre este ponto, Rui Ramos, «Um projecto de liberdade (sobre Francisco Sá Carneiro)», in Outra Opinião. Ensaios de História, Lisboa, O Independente, 2004, pp. 154ss.
(45) Cf., por ex., Raquel Carrilho, «Uma utopia chamada Frágil», Sol, de 22-I-2012. É interessante o depoimento de Rodrigo Leão no Diário de Notícias, de 15-VI-2012. 
(46) Cf. Expresso, de 5-I-2013.
(47) Cf., para uma primeira aproximação, com abundantes indicações bibliográficas, Miguel Real, O Pensamento Português Contemporâneo, 1890-1910. O labirinto da razão e a fome de Deus, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011, pp. 526ss.
(48) Existiram, é certo, tentativas anteriores de instauração de um pensamento de direita, empreendimento que passou, por exemplo, pela tradução da obra Nova Direita, Nova Cultura. Antologia das Ideias Contemporâneas, traduzida em 1980 por Diogo Pacheco de Amorim e publicada esse ano pelas Edições Afrodite. Há também um «anticomunismo militante», que passou pela denúncia da realidade sombria do estalinismo e da União Soviética. Em 1976, a Bertrand publicara, com tradução de Francisco Ferreira («Chico da CUF»), Maria Llistó e José-Augusto Seabra, Arquipélago de Gulag, de Soljenitsine. Dois anos mais tarde, a Afrontamento daria à estampa a obra A Cozinheira e o Devorador de Homens. Ensaio sobre o Estado, o Marxismo e os Campos de Concentração, de André Glucksmann, autor que viria a Portugal participar nos ciclos de conferências que, na sequência da derrota presidencial de Freitas do Amaral, foram organizados pela então criada Fundação Portugal Século XXI (cf., a este propósito, e sobre as dificuldades desta instituição, Richard A. H. Robinson, «Do CDS ao CDS-PP: o Partido do Centro Democrático Social e o seu papel na política portuguesa», Análise Social, vol. XXXI, 1996, pp. 951ss). O combate ao comunismo e a afirmação de um espaço de direita eram tributários de uma acção desenvolvida desde o «Verão Quente» de 1975, aquilo a que já se chamou a «fase popular» do anticomunismo: cf. Miguel Reale, «Anticomunismo», in AA.VV., Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal, dir. de José Eduardo Franco, Lisboa, Círculo de Leitores-Temas e Debates, 2009, pp. 575ss. A divulgação de relatos memorialísticos de antigos comunistas, como «Chico da CUF», Silva Marques ou Cândida Ventura, a par do trabalho de análise e crítica levado a cabo por personalidades como José Miguel Júdice (autor do influente Portugal à Deriva, 1978), tiveram significativa repercussão pública e inegável importância histórica. Sintomaticamente, O Independentenão assumiu o combate ao comunismo como uma das suas prioridades e, se exceptuarmos algumas abordagens (a de Pulido Valente, por ex.), evidenciou mesmo algum «fascínio» pela figura de Álvaro Cunhal.        
(49) Sobre este traço de O Independente e a sua genealogia, cf. Maria Filomena da Silva Barradas, Uma Nação a Falar Consigo Mesma: O Independente (1988-1995), dissertação de doutoramento em Estudos de Literatura e Cultura, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012, policop., pp. 32ss.
(50) Num balanço à distância, muitos reconhecem os excessos de «populismo justicialista» patentes nas sucessivas manchetes de O Independente. Para Nobre Guedes, o jornal foi «claramente longe demais»; para José Adelino Maltez, a marca classista, patente nas críticas impiedosas às origens humildes de Macário Correia, denunciava que se estava perante «um jornal de queques da Linha». Graça Rosendo reconhece que o jornal onde trabalhava «generalizou o off e as fontes anónimas», chegando a publicar documentos antes de estarem aprovados: cf. os depoimentos recolhidos por Catarina Falcão, «O Independente. O jornal que marcou os anos 90 e a direita portuguesa», i, de 20-X-2012. Na verdade, a dada altura o jornal ficou aprisionado na sua própria lógica sensacionalista – todas as semanas tinha de publicar uma manchete com um escândalo político. Dessa forma, se contribuiu para um novo tipo de relacionamento da classe política com os media, não é menos certo que acabou por resvalar numa espiral que se revelou fatal para a sua credibilidade e continuidade. É sintomático que a última directora de O Independente, e filha do proprietário do jornal, Inês Serra Lopes, tenha sido condenada pelo Tribunal da Relação de Lisboa por crime de favorecimento pessoal na forma tentada no caso de um alegado sósia de Carlos Cruz, arguido no processo Casa Pia, no âmbito do qual António Serra Lopes intervinha como advogado daquele apresentador de televisão (cf. Público, de 6-I-2009). Esta condenação coincidiu, de certo modo, com o fim do jornal e acaba por constituir um expressivo e irónico epílogo da sua vertigem populista. De acordo com Pedro Rolo Duarte, O Independente teve baixos níveis de vendas ao princípio (20 a 30 mil exemplares), encontrando-se na iminência de encerrar, o que só não aconteceu quando publicitou o «caso Cadilhe» («e nunca mais parou», refere Rolo Duarte in Maria Ramos Silva, «Quando a insolência cozinhada na noite era o prato do dia», i, de 20-X-2012). 
(51) Curiosamente, existem versões contraditórias a este propósito. Entrevistado por Pedro Mexia, o então director de O Independente, Miguel Esteves Cardoso, nega que existisse um projecto político por parte de Paulo Portas (cf. Expresso/Revista, de 24-III-2012). Já o fundador e presidente do conselho de administração da SOCI, Luís Nobre Guedes, considera: «Acredito que a linha do jornal foi para o desgaste de um partido, de um líder e de um governo. Tudo dentro do projecto político do director-adjunto» (cf. Catarina Falcão, «O Independente. O jornal que marcou os anos 90 e a direita portuguesa», i, de 20-X-2012). À distância, parece poder afirmar-se que O Independente, sobretudo a dada altura, se inscreveu numa estratégia de afirmação política – e até pessoal – de Paulo Portas, facto que, a prazo, o colocaria perante uma questão dramática. Consistiu ela na circunstância de, enquanto jornalista, ter assumido um discurso de crítica ao poder, num estilo assertivo e peremptório que tinha subjacente uma convicção de superioridade ética, moral, intelectual e até social. Nas suas crónicas, Portas assumia um registo epigramático, utilizando frases curtas, sem dúvidas nem nuances: «Haja pudor e decência», disse em 2004 aquando da visita do Presidente angolano José Eduardo dos Santos. Ou «Somos todos dinamarqueses», título de uma célebre crónica em que Portas se colocava ao lado dos que haviam, em referendo, reprovado o Tratado de Maastricht. Ou ainda uma crónica anti-germânica («um monstro de proporções e perigos incalculáveis»), publicada em O Independente, em 27-XI-1991. Ora, ao assumir pastas de importância estratégica, como a Defesa (2002-2004) e, mais tarde, os Negócios Estrangeiros (2011-), viria naturalmente a ser confrontado com as suas afirmações pretéritas (cf., por ex., Sara Capelo, «As várias faces de Paulo Portas», Sábado, de 21-II-2013). Mais ainda, a marca «justicialista» que criou escola no jornalismo português, com frequentes trials by newaspaperde onde estava ausente o respeito por princípios como a presunção de inocência ou do segredo de justiça, acabaria por se voltar contra ele próprio (v.g., nos chamados «caso Moderna» e «caso dos submarinos») ou personalidades que lhe eram próximas (v.g., Nobre Guedes ou Abel Pinheiro). Sobre a contestação de O Independente aos governos de Cavaco Silva, cf. Maria Filomena da Silva Barradas, Uma Nação a Falar Consigo Mesma…, cit., pp. 130ss, e, em particular sobre o «caso Cadilhe», pp. 85ss. Na sua autobiografia, Aníbal Cavaco Silva refere-se a este caso, com algum pormenor: cf. Aníbal Cavaco Silva,Autobiografia Política, Vol. 2 – Os anos de governo em maioria, Lisboa, Temas e Debates, 2004, pp. 90ss. O tema é amplamente tratado na obra de Miguel Cadilhe, Factos e Enredos, s.l., Edições Asa, 1990, e no relato memorialístico do então assessor de imprensa de Cavaco Silva: cf. Fernando Lima, O Meu Tempo com Cavaco Silva, Lisboa, Bertrand Editora, 2004, pp. 116ss. 
(52) Cf. Vasco Pulido Valente, Esta Ditosa Pátria, cit., pp. 98ss. Noutro texto, analisava o «homem novo lusitano» que, supostamente, Cavaco Silva julgava ter concebido: cf. Vasco Pulido Valente, Retratos e Auto-Retratos (Ensaios e Memórias), Lisboa, Assírio & Alvim, 1992, pp. 175ss, obra que reúne artigos de opinião e ensaios, alguns dos quais extremamente críticos da governação de Cavaco Silva («Cavaco: retrato de um português muito conhecido» - pp. 159ss; «Cavaco: a culpa é minha?» - pp. 173ss). Num desses textos, escreve-se, por ex., que Cavaco Silva «defende pessoalmente criaturas indefensáveis como Leonor Beleza» (p. 167), dizendo ainda que existia uma «obtusidade, congénita ou adquirida» no modo de governação, a qual «atingiu o cume com Leonor Beleza» (p. 168). Curiosamente, neste volume é publicado um escrito autobiográfico, «Eu sempre fui assim: auto-retrato aos 50 anos» (pp. 15ss), em que a dramatis personæ de Vasco Pulido Valente, num registo melancólico e autocrítico, afirma: «Eu não quero persistir nesta guerra pública e privada comigo e com toda a gente. Lamento do coração os meus irreflectidos ataques ao amor próprio dos portugueses, que tinham, e têm, o seu lado bom» (p. 19).   
(53) Cf. Luciano Amaral, Economia Portuguesa. As últimas décadas, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010, p. 35.
(54) Cf. Isabel Nogueira, Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, pp. 213ss.
(55) Cf. Maria Filomena Mónica, Visitas ao Poder, cit., pp. 148-149.
(56) Cf. Luís Villalobos e Raquel Martins, «Primeira catedral do consumo nasceu há 25 anos em terrenos da igreja», Público, de 10-XII-2010.
(57) Cf., por ex., Rogério Santos, Indústrias Culturais. Imagens, valores e consumos, Lisboa, Edições 70, 2007, pp. 87ss.
(58) Cf. Vera Policarpo, «Sexualidades em construção, entre o privado e o público», in AA.VV., História da Vida Privada em Portugal – Os Nossos Dias, dir. de Ana Nunes de Almeida, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011, p. 63.
(59) Cf. Anthony Giddens, Beyond Left and Right. The future of radical politics, Cambridge, Polity Press, 1994, em esp. pp. 22ss.
(60) Apud Maria Filomena da Silva Barradas, Uma Nação a Falar Consigo Mesma…, cit., p. 19.
(61) Apud Maria Filomena da Silva Barradas, Uma Nação a Falar Consigo Mesma…, cit., p. 138 e p. 140.
(62) Apud Maria Filomena da Silva Barradas, Uma Nação a Falar Consigo Mesma…, cit., p. 26.
(63) Cf. João Miguel Tavares, «O Independente (1988-2006)», Diário de Notícias, de 2-IX-2006. Por sua vez, e num sentido idêntico, Miguel Carvalho observa que «o Indy era sentimentalão, divertido, alcoólico, noctívago, fumador, apaixonado, certeiro, implacável, injusto. Às vezes monárquico, às vezes esquerdista, conservador no estatuto editorial, muitas vezes livre, anárquico e descontrolado. Para o bem e para o mal. Era a vida em excesso, nas fraquezas e nas forças, nas intrigas e nas causas, nos combates e nas paixões» («O Independente»Visão, de 31-VIII-2006).
(64) Cf. Alain Minc, Une histoire politique des intellectuels, Paris, Grasset, 2010.
(65) Um dos exemplos mais expressivos é o de António José de Brito, que publicou, inclusivamente, textos que procuraram relativizar o nazismo, num registo muito próximo do negacionismo, destacando-se a esse propósito «A legenda negra antinazista», publicado no seu livro Destino do Nacionalismo Português, Lisboa, Verbo, 1962. Ora, a direita liberal contemporânea move-se visceralmente contra este tipo de aproximações quer por razões pragmáticas e de estratégia de afirmação pública, quer por não se rever minimamente, do ponto de vista ideológico, com os diversos totalitarismos e autoritarismos, designadamente com o Estado Novo. Daí a razão pela qual a sua atitude suscita particular incómodo em alguns meios de esquerda, os quais persistem na tentativa de rotular de «salazaristas» ou «negacionistas» os intelectuais públicos da direita liberal.   
(66) Alguns blogues, pela sua popularidade, acabaram por ter os seus textos publicados em livro. Um caso paradigmático é a obra de André Belo, Celso Martins, Daniel Oliveira, Pedro Oliveira e Rui Tavares, Barnabé. O que é que tem o Barnabé que é diferente dos outros?, Lisboa, Oficina do Livro, 2004, correspondendo, como se refere nos agradecimentos («a primeira pessoa a imaginar este livro e pegar num telefone para convencer os barnabés a deitarem mãos à obra»), a um projecto editorial de Bárbara Bulhosa, que mais tarde será fundadora e proprietária da editora Tinta da China. A capa ostenta os seguintes dizeres: «O blogue que a direita detesta» e «O mais lido. 1 milhão de visitas na Net». O livro é bem elucidativo do estilo combativo que, à esquerda e à direita, marca a blogosfera de intervenção política e nele é bastante visível a marca das fracturas abertas pela intervenção militar norte-americana no Iraque e no Afeganistão. A esmagadora maioria dos textos (praticamente, a totalidade) tem por alvo personalidades, e as afirmações que proferiram, só implicitamente se questionando ideias ou projectos políticos em abstracto. Resta saber em que medida esta «personalização da crítica», ademais selectiva e puramente «destrutiva», não conduz, de forma paradoxal, a um esvaziamento – a um esvaziamento ideológico, note-se – do debate público, na linha de uma tendência nacional para a «fulanização da política» que já Unamuno detectou entre nós. É sintomático que, a dada altura, os textos do Barnabé façam uma defesa da blogosfera contra os seus detractores (v.g., Pacheco Pereira) (op. cit., pp. 260ss). Como é sintomático que, num desses textos, se afirme que «com a morte da Coluna [Infame] e o nascimento de vários blogues de esquerda, o domínio da direita na blogosfera acabou» (p. 261), o que atesta bem a importância que, naquela altura, a Coluna Infame deteve enquanto lugar de afirmação e expressão da direita cultural de matriz liberal. Por outro lado, não pode deixar de suscitar reflexão o facto de autores que buscam alternativas ao «sistema» (entendido este como a democracia liberal e a economia de mercado) recorrerem aos veículos de comunicação e difusão do pensamento que esse «sistema» cria e promove, como a blogosfera, as redes sociais na Internet, a imprensa e a televisão ou mesmo as universidades, públicas e privadas, dos Estados Unidos ou da Europa ocidental, ou centros como o Instituto Universitário de Florença, ligado à União Europeia. «O que torna o capitalismo extraordinariamente resistente é a sua capacidade de tudo integrar», escreveu Daniel Oliveira no Expresso (de 2-III-2013), afirmação que, sendo proferida nas páginas de um semanário fundado por Francisco Pinto Balsemão e propriedade de um grande grupo de comunicação social (Impresa), pode ser interpretada como interessante confissão de derrota de um projecto «alternativo» ao sistema liberal. Não se esqueça, ademais, que Daniel Oliveira é um dos mais destacados intervenientes no programa «O Eixo do Mal», transmitido pela SIC-Notícias, igualmente propriedade do grupo Impresa.               
(67) Existe, a este propósito, uma interessantíssima «desconstrução» humorística, feita por Pedro Monteiro e Rodrigo Monteiro, com ilustrações de Tiago Albuquerque, Novíssimo Livro de Leitura. 1ª à 4ª Classes e Classe Operária, s.l., Lápis de Memórias, 2011.
(68) Cf. Joaquim Vieira, Mocidade Portuguesa. Homens para um Estado Novo, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2008; Irene Flunser Pimentel, Mocidade Portuguesa Feminina, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2007.
(69) Destaca-se, a este propósito, o trabalho de Luciana de Castro Soutelo, A memória do 25 de Abril nos anos do cavaquismo: o desenvolvimento do revisionismo histórico através da imprensa (1985-1995), dissertação de mestrado em História Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2012, policop. [disponível online e consultada em 12-II-2013]. Esta autora considera, inclusivamente, que intervenções do Presidente Mário Soares em sessões comemorativas do 25 de Abril acusavam a marca do revisionismo histórico: cf. Luciana Soutelo, «Visões da Revolução dos Cravos: combates pela memória através da imprensa (1985-1995)», in Raquel Varela (coord.), Revolução ou Transição? História e memória da Revolução dos Cravos, Lisboa, 2012, p. 241. No Verão de 2012, um historiador da Universidade do Porto, Manuel Loff, nas páginas do jornal Público, atacou a obra História de Portugal, da autoria de Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Monteiro, acusando-a de negar o carácter ditatorial do Estado Novo, facto que gerou acesa controvérsia, com uma mobilização mais intensa, articulada e sistemática dos meios intelectuais conotados com a esquerda, que até então não tinham questionado a obra coordenada por Rui Ramos e publicada anos antes, mas de imediato alinharam, aprofundando-a, com a pretensa crítica de Manuel Loff, sem avaliarem em que medida tal crítica possuía correspondência com a verdade do texto questionado: cf. a síntese de Filipe Ribeiro de Meneses, «Slander, Ideological Differences, or Academic Debate? The “Verão Quente” of 2012 and the State of Portuguese Historiography», e-Journal of Portuguese History, vol. 10, nº 1, Verão de 2012 [disponível online e consultada em 12-II-2013]. A crítica à obra dirigida por Rui Ramos, bem como outras que anteriormente visaram a biografia de Salazar da autoria de Ribeiro de Menezes, não impediram – pelo contrário – que ambos os livros tivessem um assinalável êxito, com vendas na ordem das dezenas de milhares de exemplares, sucesso que não ocorre, em contrapartida, com os textos da generalidade dos seus críticos. Nesse sentido, ou se considera que o público leitor não tem capacidade para discernir a qualidade das obras em causa e nelas detectar sinais de «revisionismo» ou se conclui que os argumentos esgrimidos contra os livros de Ribeiro de Menezes e de Rui Ramos não foram suficientes para abalar o interesse que os mesmos despertaram junto da sociedade portuguesa. Nas livrarias, a História de Portugalcoordenada por Rui Ramos vendeu cerca de 25.000 exemplares e, juntamente com oExpresso, foram distribuídos entre 100.000 a 120.000 exemplares.          
(71) Cf. Silvino Silvério Marques, Luís Aguiar e Gilberto Santos e Castro, Os descolonizadores e o crime de traição à pátria, Lisboa, Editora Ulisseia, 1983. Cf. ainda Luís Aguiar, Livro Negro da Descolonização, Lisboa, Intervenção, 1977; Id., A chamada «descolonização». Julgamento dos Responsáveis, Lisboa, Intervenção, 1978.  
(72) Cf. Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowski, Lx 60, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2012.
(73) Cf. Avante!, de 20-XII-2012 e de 31-III-2012.




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