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sexta-feira, 5 de abril de 2013



Dois anos depois de Fukushima
Um importante ponto de inflexão na história contemporânea do Japão
Pierre Rousset
30.Mar.13 ::
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Pierre Rousset
O impacto da tripla tragédia (sismo, tsunami, desastre nuclear) de 11 de Março de 2011 no Japão ainda está em desenvolvimento. Uma novidade importante a
considerar é ter dado ocasião à configuração de dois blocos politicamente opostos. De um lado, o lobby nuclear, as correntes militaristas e em geral a
direita nacionalista. De outro, o movimento antinuclear civil, os últimos sobreviventes de Hiroshima/Nagasaki, os pacifistas que defendem a Constituição,
a população que luta na ilha de Okinawa contra as bases estado-unidenses, personalidades intelectuais. O ressurgimento das ambições militares e imperialistas
no Japão não é um fenómeno menor. A História nem sempre se repete como farsa. Em muitos casos, repete-se novamente como tragédia.
A tripla catástrofe de 11 de Março de 2011 constituiu um importante ponto de inflexão na história contemporânea do Japão, mas o seu alcance político não
é unívoco. Marcou uma ruptura radical na imagem que muitos japoneses tinham das autoridades e das instituições do seu país e deu lugar a uma revolta cidadã
profundamente progressista. Entretanto, tudo isto se produziu no meio de uma profunda instabilidade da situação geopolítica da Asia oriental: ao sentimento
popular de insegurança acrescentou-se uma grande incerteza sobre a evolução da relação de forças entre as diferentes potências regionais, que suscitou
o renascimento de movimentos militaristas e nacionalistas reaccionários.
O terramoto e o tsunami de 11 de Março de 2011 tiveram fortes implicações sociais e económicas, sobretudo na área directamente afectada, o nordeste do
Japão, onde a maioria da população afectada se encontra impotente e muito dependente. As redes institucionais, sociais e familiares tradicionais romperam-se.



O choque psicológico é profundo, devido à desaparição física de espaços comunitários (povoados, bairros…), à perda de seres queridos, à ausência de informação
fiável, à solidão e ao sentimento de não possuir já nenhum controlo sobre o futuro. Face à enorme impotência administrativa que o Estado demonstrou durante
estes tempos de crise, as organizações militantes regionais (sindicatos, associações…) realizaram um trabalho notável para oferecer os primeiros auxílios
e gerar uma actividade colectiva dirigida aos refugiados. Para a levar a cabo contaram com o apoio de redes nacionais e internacionais, mas os seus recursos
são a todos os títulos limitados face à amplitude da catástrofe. O movimento operário japonês, por seu lado, está demasiado debilitado e burocratizado
para implicar o conjunto do país nos desafios que a catástrofe colocou na agenda.
Neste contexto, e dada a extrema gravidade do acidente na central de Fukushima, a questão nuclear dominou a cena política no período posterior ao 11 de
Março.
O consenso pró-nuclear que existia até então no Japão volatilizou-se. As confissões de personalidades implicadas neste sector económico e a publicação de
documentos inéditos mostraram que esse consenso estava baseado em mentiras, corrupção e na cumplicidade do sector público com o privado; na negação dos
riscos relacionados com a radioactividade e com a possibilidade de graves acidentes. As mentiras continuaram inclusivamente durante e depois da catástrofe,
até ao ponto de que as mães das zonas contaminadas não sabiam que precauções adoptar para proteger os seus filhos (mais sensíveis do que as pessoas adultas
a doses de radiação relativamente baixas). Antes do acidente os colectivos cidadãos contra as centrais tinham, sobretudo, um carácter local. Após o acidente,
o movimento antinuclear adquiriu uma dimensão nacional que, em algumas ocasiões, chegou a mobilizar dezenas de milhares de pessoas, coisa que nunca antes
se tinha visto no arquipélago. Por razões diversas, uma após outra, as centrais nucleares foram parando a sua actividade e em Maio de 2012 não havia nenhuma
em funcionamento. Em Julho, Naoto Kan, Primeiro-ministro na altura da catástrofe, manifestou-se a favor de um Japão sem nuclear.
Em 2012 muitas sondagens outorgavam uma ampla maioria a favor da saída da energia nuclear. Entretanto, em princípios de Fevereiro de 2013, as sondagens
mostraram que 56% eram favoráveis a uma política de relançamento das centrais, tal como apregoa o novo governo de Shinzo Ave. ¿A que se deve esta mudança?



Instabilidade regional e contra-ofensiva nuclear
Após a catástrofe de Fukushima, o lobby nuclear colocou-se na defensiva. A evolução da situação na Asia Oriental proporcionou-lhe a ocasião para retomar
a ofensiva. O lançamento de mísseis norte-coreanos, embora alguns dos quais tenham sido falhados, alimentou o medo face a uma ameaça militar. E, sobretudo,
o conflito de soberania com a China agudizou-se. Tóquio administra as ilhas Senkaku (em japonês) ou Diaku (em chinês). Pequim rejeitou sempre a sua anexação
pelo Japão mas há décadas que os dois governos evitavam fazer desta questão um “ponto quente” nas suas relações.
Os chamados “pontos quentes” territoriais encontravam-se (e encontram-se ainda) mais a Oeste: a China reivindica, com um forte aparato militar, as ilhas
Parecels e Spratley contra o Vietnam, Malásia, Brunei, Filipinas…, mas mantinha-se discreta na delimitação das suas fronteiras marítimas com o Japão.
Em Setembro de 2012, Tóquio abriu a grande caixa de Pandora: o governo “nacionalizou” as ilhas Senkaku, que estavam nas mãos de um proprietário privado.
Pequim reagiu enviando navios e aviões para a zona, e declarando depois que queria cartografar o micro arquipélago… A tensão subiu de tom quando o governo
japonês acusou um vaso de guerra chinês de ter apontado o radar de ataque a um dos seus destroyers.
Isto não quer dizer que nos encaminhemos para uma guerra entre potências, mas sim que estamos perante um conflito territorial activo, que está para durar.
Se o que até agora estava circunscrito ao âmbito diplomático se converte num conflito explosivo, isso deve-se a que cada Estado cobiça as riquezas submarinas
do Mar da China Meridional. E também porque cada um deles tem interesse em alimentar um nacionalismo de grande potência: tanto por razões internas (desviar
a atenção da crise social), como porque as relações de força estão em plena evolução. A China reafirma-se como potencia militar e não quer ver-se bloqueada
por uma “primeira linha de ilhas” que vai desde Senkaku/Diaku até Spratley e Paracels. O Estados Unidos reforçam a presença da VII Frota. Entretanto, Tóquio
não tem assegurado que a protecção de Washington continuará indefinidamente.


Nesse contexto, pela primeira vez se ouvem vozes autorizadas do Japão declarando, de forma mais ou menos explícita, que o arquipélago deveria dotar-se de
armas nucleares. Está a ponto de cair um tabu fundamental deste país que, em 1945, viveu na própria carne os crimes contra a humanidade de Hiroshima e
Nagasaki. Cada vez é mais evocada a supressão do Art.º 9º da pacifista Constituição nipónica que consagra a sua renúncia à guerra. Adoptam-se medidas concretas
(e anunciam-se outras novas) orientadas no sentido de acrescentar o poder militar das “forças de autodefesa”: incremento do orçamento militar, reposicionamento
de caças F-15, colocação em órbita de um satélite óptico de grande precisão, etc.
O lobby nuclear argumenta que quem queira a segurança energética nestes tempos turbulentos deve querer a energia nuclear, para não depender das vias marítimas
de aprovisionamento. E o mesmo para quem quer a bomba: a indústria nuclear “civil” fornecerá os materiais físseis necessários aos militares. Esta campanha
alarmista teve êxito entre a população japonesa.
Confrontada com esta nova situação, a esquerda civil japonesa lançou um apelo a que cada país da região se opusesse ao crescimento dos nacionalismos xenófobos
e militaristas. Denuncia a vontade de recorrer a uma história mitificada para se apropriar de ilhotas desabitadas. Propõe uma gestão compartilhada dos
mares no interesse dos povos e respeitando as exigências ecológicas.
Configuraram-se dois blocos politicamente opostos, o que constitui toda uma novidade. De um lado, o lobby nuclear, as correntes militaristas e em geral
a direita nacionalista. De outro, o movimento antinuclear (civil), os últimos sobreviventes de Hiroshima/Nagasaki ou quem os representam (os representantes
municipais), os pacifistas que defendem a Constituição, a população que luta na ilha de Okinawa contra as bases estado-unidenses, personalidades como o
premio Nobel de Literatura Kenzaburo Oe… Todavia, o movimento antinuclear nipónico enfrenta uma situação política difícil para a qual não estava preparado.
A ausência de uma alternativa política à esquerda, a rejeição da energia nuclear após Fukushima, foi capitalizada no terreno eleitoral pelos partidos de
centro-direita, que rapidamente caíram em desgraça pela sua incompetência. Consolidam-se novas formações políticas populistas de direita radical, primeiro
na região de Osaka e depois em Tóquio. De momento, quem reconquistou o poder, com Shinzo Abe, foi o Partido Liberal Democrata, partido maioritário do pós-guerra.
Beneficiou da abstenção dos sectores desencantados da população, de uma bem embrulhada reputação de bom gestor, e de diferir para depois da campanha eleitoral
as más notícias, como a assinatura do Tratado transpacífico de Livre Comércio, cujos efeitos sociais serão desastrosos.
Internacionalização do movimento antinuclear
Não existe possibilidade de que a central de Fukushima regresse à normalidade. A crise nuclear está para durar.
O movimento cidadão do arquipélago continua lutando dia a dia: piquetes frente à sede de Tepco (o operador de Fukushima), denúncias das vítimas, oposição
à reabertura das centrais… Em Novembro passado, o Japão acolheu a segunda conferência internacional para um mundo livre de nucleares. Teceram-se nele estreitos
vínculos entre as lutas que se desenvolvem em diversos países da região, como na Coreia do Sur ou na India. Pela primeira vez, o Fórum Popular Asia-Europa
aprovou uma declaração a favor do abandono da energia nuclear. E para Março de 2013 estão convocadas numerosas mobilizações em torno do segundo aniversário
da catástrofe.
A onda de choque de Fukushima continua a ampliar-se.

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