Porque ontem foi dia do trabalhador...
Se tivesse a honestidade e a confiança de um Warren Buffett, uma pequena elite nacional bem inserida internacionalmente podia a esta hora já ter repetido as palavras do bilionário norte-americano: “a luta de classes existe e a minha classe está a ganhá-la”. A quebra dos salários em curso é um bom indicador de uma vitória ajudada por uma taxa de desemprego de 15%. Sabemos que, em 2014, o poder de compra do salário auferido por essa ficção estatística que é o “português médio” estará ao nível de 1996. Serão pelo menos duas décadas perdidas para as classes trabalhadoras portuguesas. A quebra em curso nos salários, vá lá perceber-se porquê, não costuma ser muito animadora para uma certa economia da reciprocidade positiva em que a mais recente economia convencional diz que assenta uma boa relação laboral: ninguém trabalha bem numa economia do medo e de cada vez mais baixa pressão salarial.
Além disso, os chamados custos unitários do trabalho, que relacionam crescimento nominal dos salários com crescimento real da produtividade, servem apenas para criar um viés que favorece a redução do peso dos rendimentos do trabalho no rendimento nacional, ocultando a responsabilidades dos custos do capital pelos problemas de competitividade, como se argumenta num estudo que indica também que a compressão dos custos unitários do trabalho pode fazer muito mal ao crescimento. Esta curta e enviesada forma europeia de medir a competitividade conduz a jogos de soma nula, na melhor das hipóteses, entre os países e a jogos de soma negativa para classes trabalhadoras europeias. O peso dos rendimentos do trabalho reduziu-se em 10,5 pontos percentuais na Zona Euro, entre 1981 e 2007, o que teve óbvias consequências negativas em termos de crescimento. Outro estudo indica-nos que esta contenção salarial não tem qualquer relação, surpresa, surpresa, com a competitividade assente na transformação estrutural e na modernização tecnológica.
O resto são as realidades macroeconómicas e de economia política com que os economistas do cortejo fúnebre da economia portuguesa, nacionais e estrangeiros, evitam confrontar-se: quebra dos rendimentos do trabalho e maior vulnerabilidade a estratégias comerciais agressivas dos sítios do costume (já lá iremos...), redução da procura interna, desaceleração da procura externa, porque afinal de contas a tal luta de classes tem escala europeia e tem no euro o seu melhor aliado, aumento das famílias insolventes e todos os paradoxos da depressão, incluindo o que resulta da ausência de contrapoderes laborais fortes, o pior que pode acontecer para o dinamismo de uma economia porque passam a existir alternativas medíocres à realização de investimentos genuinamente inovadores.
Investimento é coisa que as empresas não efectuam neste contexto, mesmo aquelas que continuam a apresentar lucros bastante significativos, como as empresas do PSI-20. Quem controla a generalidade das empresas diz nos inquéritos que o principal obstáculo é a perspectiva de falta de procura e logo a seguir, se bem que a larga distancia, o acesso ao crédito. Basta lembrar que enquanto o capitalismo financeiro se entretém com ofertas públicas de aquisição, transferências de direitos de propriedade com a cumplicidade de um banco público longe da sua missão, as pequenas e médias empresas têm o financiamento mais caro da zona euro.
Estruturalmente, e já antes da crise, vários economistas tinham assinalado o divórcio no capitalismo maduro entre os lucros das grandes empresas financeirizadas, em crescimento, e o investimento produtivo, decrescente, um dos efeitos da hegemonia da finança que trata as empresas como vacas leiteiras para extrair dividendos ao ritmo mais rápido que for possível. Todos estes paradoxos só se vão acentuar no futuro. Que outra coisa se poderá esperar a continuarmos assim? A crise de um modelo assente na descoordenação está a servir para reforçar esse mesmo modelo, graças à coordenação das fracções dominantes do capital.
A luta dos trabalhadores, a sua coordenação, pode introduzir racionalidade através da reforma igualitária das políticas e das instituições, que acabam por beneficiar os investimentos produtivos e inovadores. Para isso, é importante estar a par do que se passa: o relatório anual da Organização Internacional do Trabalho sobre o mundo do trabalho, um oásis de bom senso económico, coordenado pelo economista Raymond Torres, é um bom ponto de partida, já que expõe de forma robusta a lógica perversa da “armadilha da austeridade” e a inanidade de políticas de liberalização destruidoras de emprego e inimigas do trabalho digno.
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