Mais cinco pingos agridoces
1. Independentemente de eventuais efeitos perversos na sua imagem, localizados em particular entre elites sempre horrorizadas com a “turba”, a política de preços do Pingo Doce, friso a palavra política, para além da mensagem ideológica óbvia no 1º de Maio, coerente com outros investimentos ideológicos fundacionais de Alexandre Soares dos Santos, sinaliza uma estratégia comercial que me parece destinada a ter sucesso dadas as circunstâncias cada vez mais difíceis de tantos trabalhadores, reformados ou desempregados com cada vez menos possibilidades. Eles sabem o país que estão a criar e o seu conhecimento deve ser levado a sério. A grande empresa é aliás um repositório de conhecimento.
2. Estamos perante a resposta comercial, que não é para quem quer, mas sim para quem pode empresarialmente, a uma economia sem pressão salarial para a qual esta política de compressão de preços por sua vez contribui à sua escala. É claro que os trabalhadores nunca recuperam pelo lado do preço aquilo que perdem pelo lado do salário directo e indirecto, mas cada um, isoladamente, não tem capacidade para fazer essa conta colectiva. Para isso precisamos de mecanismos de coordenação – de um Estado capaz, entre outras coisas, de resistir à chantagem fiscal do capital a sindicatos fortes, outras tantas formas de combater uma economia que erode a identidade do cidadão mobilizado, do trabalhador organizado, para cultivar a do consumidor atomizado. Este é sempre mais vulnerável às estratégias dessa concentração de poder que é a grande empresa, que tudo procura saber sobre os naturais “enviesamentos cognitivos” das pessoas, de que aliás se aproveita e que procura cultivar.
3. De qualquer forma, as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas. Esta hipótese não é trivial porque coloca o enfoque nas duas dimensões centrais da actividade política: o que as pessoas podem ser e fazer nas suas vidas, as tais capacidades, e as circunstâncias, já que as pessoas são, em parte, seu produto. Trabalhar em ambas as dimensões, desenvolver e humanizar, exige conhecimento e simpatia prévios, capacidade de se colocar no lugar do outro. Também assim se pode evitar o espectáculo, política e intelectualmente lamentável, dos que apoucaram quem foi ao Pingo Doce no 1º de Maio.
4. Se é verdade que a maioria dos trabalhadores consome tudo o que ganha, isto não significa que o consumo seja a única motivação para trabalhar, ao contrário do que afirmou um antigo historiador do movimento operário chamado Manuel Villaverde Cabral, um dos que deve ter esquecido o muito que leu e escreveu para ser capaz de estar com quem tem poder.
5. A referência às “leis da concorrência” como principio regulador é risível perante a realidade da grande empresa e do seu poder, inclusive na fixação de preços. O controlo não se faz pela ficção do mercado e das suas regras, mas sim pela realidade do controlo político democrático das actividades autoritárias e dos custos sociais da grande empresa capitalista.
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