É conhecida como a Cantina das Freiras, ainda que ali, no Palacete O"Neill, nunca tenham existido freiras. Hoje é a pátria de Teresa, que nesta esplanada escondida no Chiado conseguiu resolver um sonho de 50 anos.
Todas as tardes, quando as portas fecham ao público e todos os funcionários saem do Palacete O"Neill, Teresa Nangenjo dirige-se à enorme sala de jantar e vai sentar-se sozinha com um livro no terraço virado para o Tejo. "Às vezes leio um capítulo inteiro, outras vezes fico aqui em silêncio a ver o rio e a cidade. Vou-me deixando ficar até ao pôr do Sol. Se o tempo estiver quente, sou capaz de passar aqui uma noite inteira. Nessas alturas, dou por mim a pensar em todas as mulheres que se sentaram neste mesmo lugar antes de mim e que encontraram aqui as respostas de que precisavam, como eu encontrei."
Aquele lugar fica num dos espaços mais disputados do centro de Lisboa, no Chiado. Mas é, ainda, e talvez milagrosamento, um refeitório. Conhecido como a Cantina das Freiras, apesar de nunca ter albergado qualquer ordem religiosa, nesta sala e terraço são servidos em média cem almoços diários, a preços acessíveis. A sala de refeições tem 80 lugares sentados, mas a maioria das pessoas prefere esperar, às vezes de tabuleiro na mão, por uma das 24 cadeiras do terraço. Apesar disso, o número um da Travessa do Ferragial permanece um dos lugares mais escondidos do Chiado, e um dos seus tesouros - tem uma das melhores vistas da cidade. E a partir das cinco da tarde, que é a hora a que termina o dia de trabalho, aquele passa a ser o reino exclusivo de Teresa.
O edifício alberga, desde 1942, a sede da Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina (ACISJF), que então se chamava Obra de Proteção às Raparigas. "E desde essa altura que é chamado de Cantina das Freiras. Até ao 25 de Abril só aqui entravam mulheres e é daí que vem a confusão", explica Maria da Conceição Afonceca, diretora da instituição. "Nos primeiros anos nem sequer eram servidos almoços. Havia apenas estas mesas e havia um fogão a gás onde as mulheres que trabalhavam nos Armazéns do Chiado, no Grandella, nos escritórios do centro, podiam aquecer as suas refeições."
O nome oficial era o Réchaud do Ferragial, mas o francesismo nunca pegou. "As empregadas de escritório tinham hora e meia de almoço, as do comércio duas horas inteirinhas. Era tempo mais do que suficiente para o almoço, então começou a haver aqui aulas de costura, cozinha, datilografia, inglês e francês. Algumas professoras eram freiras, as mulheres com maior acesso à educação naquele tempo." Desde os primeiros tempos, o espaço serviu também de abrigo para raparigas que, à sua sorte, tinham abandonado a província com o objetivo de vir servir nas casas das famílias da capital. Eram aqui acolhidas, treinadas, muitas delas alfabetizadas.
"Com o passar das décadas, com o fim da ditadura, com a melhoria das condições de vida e dos direitos femininos, as necessidades mudaram. Passámos a acolher estudantes, nalgumas delegações mulheres vítimas de violência doméstica e aqui em Lisboa criámos este refeitório que auxilia famílias em risco e ajuda a financiar o trabalho noutros pontos do país."
O palacete do Chiado há muito que deixou de dar aulas às meninas, há muito que deixou de lhes dar quarto no terceiro piso. A única exceção é uma angolana do Huíla. Teresa Nangenjo é a última e é a única habitante do Palacete O"Neill, a última rapariga em apuros que ainda habita estas paredes. Tem 63 anos. Vive aqui, ela e só ela, há 20.
A interrupção do sonho
No dia em que completou 13 anos, Teresa Nangenjo recebeu uma notícia que haveria de marcá-la para sempre. A sua melhor amiga tinha acabado de morrer com diagnóstico de lepra. "Foi nessa altura que tomei a minha decisão. Fosse de que maneira fosse, eu tinha de me tornar médica para curar os leprosos de Angola."
Nasceu na Caconda, município a 280 quilómetros da antiga Sá da Bandeira, hoje Lubango, capital do Huíla, sul do país. Zona pobre e devastada pela guerra civil. "Apesar de ser hoje uma doença tratável e curável, ainda há focos mortais de lepra em África, nomeadamente em Angola. Acontece em populações mais isoladas, que não têm acesso aos cuidados de saúde."
Era para essas entranhas do continente que ela queria ir. E foi por isso que em 1974, aos 18 anos, se mudou para Luanda. "Entrei na Faculdade de Medicina mas, ao fim de um ano de estudos, o departamento foi fechado. O esforço financeiro depois da independência estava a ser canalizado para a guerra, não para as universidades."
Ficou na capital e arranjou emprego no aeroporto, era hospedeira de terra da TAAG. "Gostava do meu trabalho, mas nunca desisti do sonho de me tornar médica. E, em 1983, apareceu finalmente a oportunidade por que esperava. Teria de abandonar um trabalho de que gostava, teria de mudar de país, mas não tive a mínima hesitação."
Teresa vem de uma família católica, é sobrinha de bispo e tia de padre. Nesse ano, a então República Federal da Alemanha tinha concedido dez bolsas a cidadãos angolanos para virem estudar para a Europa e a Pastoral Universitária de Luanda ficou encarregue de selecionar alguns dos candidatos. Havia uma vaga para Medicina em Lisboa. "Quando me contactaram a perguntar se queria ir eu nem deixei a pessoa do outro lado da linha acabar a frase. Quando vou?"
Chegou em outubro de 1983 à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Com o dinheiro da bolsa alugou um quarto na Avenida Almirante Reis e todos os dias rumava ao Hospital de Santa Maria, para aulas teóricas e práticas. "Durante dois anos, correu tudo muito bem. Mas depois fui diagnosticada com diabetes e tive uma crise que quase me tirou a vida."
Aulas interrompidas, internamentos vários, os cinco anos seguintes foram de batalha para salvar a pele. "A bolsa durava no máximo sete anos, mas em 1990, quando cheguei ao limite, ainda nem sequer tinha acabado o terceiro ano."
As contas, essas, tinham de ser pagas. A doença estava debelada, mas sem bolsa nunca conseguiria ter teto nem comida na mesa. Nesse outubro de 1990, Teresa Nangenjo empregou-se num lar de terceira idade, a tomar conta de doentes acamados. Já não voltou a inscrever-se na faculdade. O sonho da medicina parecia estar para sempre perdido.
Está um grupo de alemães na fila para o almoço. Maria de Deus Cabrita espera que se decidam - bacalhau à Gomes de Sá ou croquetes com arroz e salada? "De há dois anos para cá isto mudou muito", diz a cozinheira da Cantina das Freiras, que aqui trabalha há 46 anos. "Primeiro tínhamos as meninas trabalhadoras, depois as meninas que estavam longe das famílias, a seguir vinham os estudantes de Belas-Artes e agora 70% são turistas."
Um tempo novo
O boom lisboeta do turismo explodiu aqui com particular força. Não há edifício à volta do Palacete O"Neill que não tenha sido tomado pelo alojamento local ou pela hotelaria. O filho da cozinheira, David, entrou para o staff do self-service há seis meses - é preciso gente que se desenrasque a inglês. Sinais dos tempos. "As nossas instalações também sofrem grande assédio imobiliário", conta a diretora da instituição. "Mas, quando recebemos este edifício, ficámos obrigados por contrato a dar-lhe este uso. É a nossa safa."
No dia 25 de abril de 1974 também havia bacalhau à Gomes de Sá para o almoço e, verdade seja dita, os empregados da cozinha só se aperceberam de que havia uma revolução ali ao lado quando largaram o turno. "Também foi uma revolução cá dentro, porque a partir dessa altura começaram a poder vir aqui almoçar os cavalheiros", conta Maria de Deus. A segunda reviravolta foi o incêndio do Chiado, há 30 anos. "Deixámos de ver todos os dias os mesmos rostos", explica. Foi quando o centro da cidade se tornou menos aldeia e mais urbe.
Em 1942, o Palacete O"Neill foi doado em testamento por Luiz O"Neill, tio de Maria João Avillez e Maria José Nogueira Pinto, à ACISJF - que foi fundada em Portugal em 1914. "Eram anos de guerra", diz Maria da Conceição Afonceca, "de grande vulnerabilidade feminina." A associação tinha uma série de casas-abrigo espalhadas pelo país e um posto avançado nas principais estações de comboio e autocarros, para recolher as meninas que chegavam da província com uma mão à frente e outra atrás. Funcionaram até ao final do século passado. Neste milénio, muitas fecharam, outras converteram-se em abrigos para vítimas de violência doméstica e adolescentes em risco, ou lares de terceira idade para mulheres.
O edifício do Chiado tornou-se exclusivamente cantina e, além de receber o público, presta apoio alimentar a famílias em dificuldades. Os quartos que um dia receberam raparigas em apuros estão todos vazios, exceto um. Em 1998, a Pastoral Universitária falou a Maria da Conceição Afonceca do caso da Teresinha, que tinha vindo para Lisboa ser médica. "Eu estava a trabalhar, mas desloquei um ombro e tive de ser operada. Não podia mexer-me, perdi o emprego, não tinha como pagar o quarto", conta a angolana.
Veio viver para o Chiado. Nos últimos 20 anos, curou-se, encontrou novo trabalho e conseguiu voltar a inscrever-se na universidade, onde fez as cadeiras que lhe faltavam e as da especialidade que sempre quis - infetologia, para tratar da lepra. No dia 20 de julho deste ano, Teresa Nangenjo passou o último exame que lhe faltava. Em setembro, arranca o estágio em Santa Maria. Tem 63 anos e agora é que é. "No próximo ano vou mudar-me para Angola e fazer o que sempre sonhei", conta-nos na esplanada onde se salvou, um sorriso rasgado com a perspetiva da partida. Já tem contactos estabelecidos, vai direitinha ao Huíla investigar a doença nas comunidades isoladas. A vida de uma rapariga em apuros está prestes a começar - no Chiado.
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