Ninguém gosta de comida requentada, ainda que muitas vezes nem se dê por isso graças às maravilhas do micro-ondas. Também na arte preferimos o original, fugimos das cópias, desprezamos reproduções e ficamos de pé atrás com restauros.
Tome-se por exemplo o salvamento dos templos de Abu Simbel na barragem de Assuão. Não há dúvida de que foi uma notável obra de engenharia (ao preço de quarenta milhões de dólares) e uma meritória preservação. Mas apesar de ter mais visitas num dia que as gravuras de Foz Côa num ano, para alguns nada é agora como dantes, pois têm pena de ver aquelas figuras colossais retiradas do tempo para uma montanha artificial, expulsas da escarpa onde viveram os melhores milénios das suas vidas.
É psicológico e relativo. Claro. E tanto assim é que eu próprio partilhando a opinião que acima enunciei vou apresentar um outro exemplo em que me contradigo em toda a linha.
Sempre que tenho a sorte de ir a Paris não deixo de visitar Notre Dame, imponente exemplo de arquitectura medieval religiosa, espécie de museu ao ar livre de estatuária medieval.
Para além do chamado friso dos Reis, a meia altura, outras dezenas de estátuas se distribuem pelos três portais da fachada principal do templo. Contudo, são meras reproduções!
Como é possível? Que aconteceu aos originais?
Tudo começou por um equívoco. Um documento ainda medieval transmitiu para a posteridade a opinião de que as estátuas correspondiam a reis de França, desde os primórdios da monarquia até àquele que reinava no tempo da construção. Esse texto foi como uma sentença de morte!
Em Agosto de 1793, estava-se à beira do que justamente se convencionou chamar o Terror – já tinha de facto começado, e continuaria pelo ano seguinte com a designação de “Grande Terror” – quando um articulista do jornal “A Revolução de Paris” apelou ao zelo das autoridades municipais para defenderem a sensibilidade dos cidadãos, ferida pela vista “de todos os emblemas e atributos aviltantes da realeza” esculpidos em edifícios públicos e casas particulares. O escrito incentivava os responsáveis a promover o desaparecimento dessas imagens repulsivas, a que chamava “monumentos góticos da servidão”. Em particular referia “todos os reis de pedra que decoram a fachada da igreja metropolitana” que aconselhava fossem decapitados, a exemplo do que se fizera no princípio desse ano com Luís XVI, rei de carne e osso.
A municipalidade não desiludiu. Passado pouco tempo foi contratado um empreiteiro cheio de zelo revolucionário e profissional que se encarregou da tarefa. Os reis foram decapitados e os seus corpos atirados para a praça onde se estilhaçaram. As estátuas de reis e santos que se encontravam mais em baixo, nos portais, foram também previamente decapitados e destruídos à marreta.
Durante algum tempo ficou aquele monte de entulho encostado a uma das paredes do templo até que, por questões de saúde pública, foi contratado outro empreiteiro para fazer desaparecer dali o que restava das estátuas de Notre Dame, fazendo dos blocos de pedra o que entendesse. Desapareceram então sem deixar rasto e o templo ficou despido das suas nobres e venerandas figuras durante muitas dezenas de anos. De facto só em meados do século XIX, já longe estava o Terror, os nichos vazios foram preenchidos com as réplicas que podemos apreciar nos dias de hoje.
Réplicas? Como é possível fazer cópias se os originais, feitos em pedaços, tinham desaparecido?
Depois da tempestade a bonança, depois do Terror vamos aos milagres.
Quis a Providência que um monge, o erudito Bernard de Montfaucon, muitos anos antes, pelos princípios do século XVIII, se tivesse lembrado de desenhar e publicar em livro todas as estátuas permitindo assim a sua posterior reprodução.
Mas não termina aqui a história, houve outro milagre, e este bem mais recente e documentado. Em 1977 um proprietário da rua Chaussée d’Antin mandou fazer obras no pátio interior da sua casa.
Qual não foi o seu espanto quando, começando-se a escavar a terra, apareceram fragmentos de corpo e cabeças de estátuas. Por comparação com os desenhos de Montfaucon pôde concluir-se que pertenciam a Notre Dame e que ali tinham ido parar … por milagre. Com o entusiasmo alguns acreditaram que os pedaços de estátuas tinham sido cuidadosamente colocados uns ao lado dos outros e as cabeças numa posição correcta em relação aos restos de torsos e pernas. Conseguiu saber-se quem era o proprietário dessa casa na época em que o espólio lá tinha ido parar e conclui-se que o Sr. Jean Baptiste Lakanal-Dupuget, apesar de ter um irmão devotado à revolução, era ele próprio mais realista que um monarca, e teria procedido como se estivesse a dar sepultura aos reis a quem o irmão, com as suas ideias incendiárias, ajudara a dar a morte. Dizem outros que apenas se limitou a reutilizar os fragmentos da maneira que mais lhe convinha quando em 1796 construiu o edifício. Seja como for ajudou a preservar, ainda que involuntariamente, aqueles mutilados testemunhos.
Grande parte dos fragmentos estão presentemente expostos no museu de Cluny, incluindo cerca de vinte cabeças. Nem todas foram recuperadas e os maus tratos sofridos impedem a sua identificação segura.
É agora altura de preguntar quem eram os reis afinal?
Como vimos até à época da sua destruição pensava-se que fossem reis de França, decisivo argumento para a sua condenação à marreta. Posteriormente contudo entendeu-se que seriam reis bíblicos. O problema é que nem os reis de França possíveis nem os de Judá juntos com David, Saul e Salomão somam os mais de trinta que ornavam a frontaria da catedral parisiense. Temos assim um terceiro milagre, o da multiplicação dos reis.
jpcnortonm.wordpress.com
Sem comentários:
Enviar um comentário