A história costuma ser organizada nos livros e, consequentemente, em nossa memória e imaginário coletivo como uma série de eventos isolados e consecutivos, limpos, legíveis e claros – mas naturalmente que os fatos, enquanto acontecem, não se dão assim. A experiência real dos eventos históricos é muito mais confusa, amorfa, amontoada, emocional e complexa do que a organizada falação de um parágrafo.
Lembrar os eventos de maio de 1968 hoje é admitir e até admirar, pela própria natureza do que aconteceu em Paris há exatos 50 anos, esse aspecto caótico, anárquico, sobreposto e confuso da verdadeira face de qualquer época. A confusão de acontecimentos, direções, conquistas e derrotas, discursos e caminhos – todos, no entanto, direcionados a mudar a sociedade – é a herança mais importante das manifestações de maio de 1968 em Paris.
As revoltas estudantis e operárias que tomaram conta da capital francesa ao longo de algumas semanas no emblemático quinto mês do igualmente icônico ano de 1968 se deram como uma ferida que se abre de forma inclemente na face de sua época, para que todos a vejam antes das interpretações reducionistas, das simplificações parciais, das manipulações tendenciosas – ou, como bem disse o filósofo francês Edgar Morin, maio de 1968 mostrou que “o subterrâneo da sociedade é um campo minado”. Nem a esquerda nem a direita deram conta do significado e dos efeitos das revoltas, que completam cinco décadas como um símbolo da esperança de que um movimento popular possa de fato transformar a realidade – mesmo que de forma difusa e complexa.
Definir, portanto, o que foi maio de 1968, para além dos fatos, não é tarefa simples – da mesma forma que sofremos hoje ao tentarmos compreender e contornar os eventos das jornadas de junho de 2013 no Brasil. Assim como as manifestações que iniciaram naquele junho de cinco anos atrás começaram como um movimento contrário ao aumento de preço no transporte público e se tornaram uma onda de movimentos muito maiores, mais amplos, complexos e paradoxais, os eventos de Maio de 1968 em Paris partiram de demandas estudantis, exigindo reformas no sistema educacional francês. Embalados pelo espírito político da época e pelos protestos e enfrentamentos que tomavam conta de grande parte dos países do ocidente de então, maio de 68 se tornou algo mais simbólico, amplo e atemporal do que somente um debate sobre educação.
As demandas iniciais, partindo de estudantes amotinados no fim de abril na Universidade de Nanterre, no subúrbio de Paris, (e liderados por um jovem e ruivo estudante de sociologia chamado Daniel Cohn-Bendit, então com 23 anos) eram pontuais: por uma reforma administrativa na universidade, contra o conservadorismo vigente nas relações entre estudantes e com a administração, incluindo o direito de estudantes de sexos diferentes dormirem juntos.
Cohn-Bendit sentia, no entanto, que aquela revolta específica poderia se ampliar, e incendiar o país – e ele tinha razão. O que aconteceu no mês por vir iria paralisar a França e quase derrubar o governo, reunindo estudantes, intelectuais, artistas, feministas, operários e muito mais em uma mesma tomada.
A expansão do movimento se deu de forma veloz e urgente, feito faísca em pólvora, até alcançar uma greve geral de trabalhadores que balançaria o país e o governo de Gaulle, envolvendo cerca de 9 milhões de pessoas em paralisação. Enquanto as demandas estudantis eram um tanto filosóficas e simbólicas, as pautas operárias eram concretas e tangíveis, como a redução das jornadas de trabalho e aumento salarial. O que unia todos os grupos era mesmo a oportunidade de se tornarem agentes de suas próprias histórias.
As revoltas levaram Charles de Gaulle a convocar novas eleições para o mês de junho, e o presidente viria a vencer esse pleito, mas sua imagem jamais se recuperaria dos eventos – de Gaulle passou a ser visto como um político velho, centralizador, excessivamente autoritário e conservador, e o general, uma das figuras mais importantes de toda história moderna da França, renunciaria à presidência no ano seguinte, em abril de 1969.
Ainda assim, é hoje mais eficaz compreender a herança de maio de 1968 como uma revolução social e comportamental, mais do que uma revolução politica. Daniel Cohn-Bendit se tornaria figura símbolo dos fatos, através principalmente da icônica foto em que aparece sorrindo para um policial – que seria, para ele, a definição imagética de que a luta ali não era só política, mas também de vida, pela diversão, pela libertação, por aquilo que os fazia sorrir, do sexo às artes.
Acima, a icônica foto de Cohn-Bendit; abaixo, o mesmo momento sob outro ângulo
Após esse primeiro momento, a universidade de Nanterre acabou fechada nos dias seguintes, e diversos estudantes foram expulsos – o que levou a novas manifestações na capital, em especial na universidade de Sorbonne, que após uma grande manifestação no início de maio, acabou invadida pela polícia e também fechada. Passados alguns dias de um frágil acordo, que levou as universidades a serem reabertas, novas manifestações aconteceram, agora já com forte enfrentamento entre a polícia e os estudantes. A partir de então, o campo minado do subterrâneo da sociedade, citado por Morin, enfim explodiu.
Cenas de enfrentamento no Quartier Latin, nos arredores da Sorbonne, entre estudantes e policiais
A noite do dia 10 para o dia 11 de maio ficou conhecida como “Noite das barricadas”, quando carros foram virados e queimados, e os paralelepípedos foram transformados em armas contra a polícia. Centenas de estudantes foram presos e hospitalizados, assim como foram uma boa dezena de policiais. No dia 13 de maio, mais de um milhão de pessoas marcharam pelas ruas de Paris.
As greves, que haviam começado dias antes, não retrocederam; os estudantes ocuparam Sorbonne e a declararam uma universidade autônoma e popular – o que inspirou os operários a fazerem o mesmo, e o ocuparem suas fábricas. Até o dia 16 do mês, cerca de 50 fábricas estariam paralisadas e ocupadas, com 200 mil operários em greve no dia 17.
No dia seguinte, os números chegariam a mais de 2 milhões de trabalhadores – na semana seguinte, os números explodiriam: quase 10 milhões de trabalhadores em greve, ou dois terços da força de trabalho francesa, se juntariam aos estudantes em paralização. Um detalhe importante é que tais greves aconteceram contrariando as recomendações dos sindicatos – eram uma demanda dos próprios operários, que ao fim conquistariam aumentos salariais de até 35%.
Enquanto a classe operária francesa se juntava à luta, as multidões tomavam as ruas diariamente e cada vez mais, apoiados pelo Partido Comunista francês, com seus imaginários incendiados pela “Ofensiva de Tet” e o início da lenta derrota americana no Vietnã, enfrentando a polícia com pedras, coquetéis molotov, barricadas, mas também com slogans, cantos e pichações.
Do célebre “É proibido proibir” imortalizado em canção por Caetano Veloso por aqui, os sonhos, concretos ou simbólicos, tornaram-se pichações pelos muros da capital francesa, que perfeitamente significavam a amplitude das demandas que tomaram as ruas de Paris: “Abaixo a sociedade de consumo”, “A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, “A barricada fecha a rua, mas abre a via”, “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de você”, “Debaixo do calçamento, a praia”, “A imaginação toma o poder”, “Sejam realistas, exijam o impossível”, “A poesia está na rua”, “Abraça o teu amor sem largar tua arma” e muito mais.
O presidente de Gaulle chegou a deixar o país e esteve perto de uma renuncia, assim como a possibilidade de uma revolução real e uma tomada de poder pelos comunistas parecia cada vez mais tangível. O general, no entanto, retornou a Paris e decidiu por convocar novas eleições, com as quais os comunistas concordaram – e assim a possibilidade de uma revolução política concreta foi deixada de lado.
A vitória do partido do presidente nas eleições foi massiva, mas não se tratou de uma vitória pessoal para de Gaulle, que viria a renunciar no ano seguinte. Os eventos de maio de 1968, no entanto, foram um ponto histórico incontornável na história da França e do ocidente até hoje – para lados diversos. Alguns os veem como a possibilidade de libertação e transformação conquistada pelo povo, nas ruas – outros, como a ameaça real da anarquia derrubando as conquistas democráticas e as bases republicanas.
A verdade é que ninguém até hoje deu conta de realmente explicar os eventos em sua totalidade – e talvez essa seja parte fundamental de seu sentido: não é possível defini-lo em um só gesto, adjetivo ou mesmo orientação política e comportamental.
Se as conquistas políticas foram tímidas diante da dimensão do movimento, as conquistas simbólicas e comportamentais foram e permanecem imensas: ali pode se dizer que também se plantaram sementes da força do feminismo, da ecologia, dos direitos homossexuais, de tudo que sublinhava o entendimento de que a revolução e as melhorias não deveriam se dar somente no escopo da política institucional, mas também na libertação da vida das pessoas – também no aspecto simbólico e comportamental.
A relação entre pessoas, com o estado, a política, o trabalho, a arte, a escola, tudo foi posto em abalo e revisão – e é por isso que a força daquele mês nas ruas de Paris permanece. Tratam-se, afinal, de demandas um tanto incontornáveis, que ainda carecem de olhares, mudanças, abalos. O próprio sonho de que a vida pode e deve ser diferente, e que essa mudança há de ser conquistada pelas mãos das pessoas, é o combustível que ainda se acende quando pensamos em maio de 1968 – um momento em que os discursos deixaram o aspecto frio e técnico da racionalidade e se transformaram em gestos, em luta, em ação. De certa forma tais revoltas empurraram a França na direção do futuro, e modernizaram as relações sociais, culturais e comportamentais que passaram a pautar o país.
Em meio à confusão de sentidos, desejos e acontecimentos que marcaram aquele momento, o filósofo francês Jean-Paul Sartre entrevistou Daniel Cohn-Bendit no próprio mês de maio – e dessa entrevista talvez seja possível retirar a definição mais efetiva e bela do que foi maio de 1968. “Existe algo que surgiu de vocês que assombra, que transforma, que renega tudo o que fez de nossa sociedade o que ela é”, diz Sartre. “Trata-se do que eu chamaria de expansão do campo do possível. Não renunciem a isso”. O entendimento de que o que era considerado possível, após a tomada das ruas, havia se expandido, e de que os sonhos, anseios, desejos e lutas poderiam almejar mais e melhores transformações foi, segundo Sartre, a grande conquista do movimento – e é, ainda hoje, seu maior legado.
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