Tozé Brito conta a experiência dos Gemini e das Doce, Eládio Clímaco lembra José Cid. Antes da primeira seminal, que acontece esta noite, lembramos outros.
Nos primeiros festivais da canção, organizados pela RTP desde 1964, os compositores enviavam as suas canções em papel de pauta, como recorda o maestro Jorge Costa Pinto que fez parte do júri em 1966: "Havia um pianista que tocava as canções para o júri escolher as que iam ao festival." Entre os intérpretes, nomes como Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, António Calvário ou Artur Garcia, cantores populares que já tinham vencido concursos na rádio e que rapidamente se tornaram o rosto do nacional-cançonetismo, termo que, a traços largos, definia a música ligeira.
Os festivais "eram uma coisa espetacular", conta Tozé Brito. "O país parava, não se via ninguém na rua, as pessoas juntavam-se para ver o festival, faziam-se apostas." Mas, chegados à Eurovisão, os resultados não eram grande coisa, reconheceram os participantes na conferência "Eurovisão: Perspetivas das Ciências Sociais, Humanidades e Artes", promovida pelo Instituto de Etnomusicologia da FCSH, Universidade Nova Lisboa. No debate, ontem à tarde, apesar de o tema serem as memórias de outros festivais, muito se falou da vitória de Salvador Sobral e do que terá sido decisivo para que, finalmente, em 2017, Portugal conseguisse ganhar a Eurovisão.
Tozé Brito já participou no Festival da Canção como intérprete, como compositor, como editor e agora como jurado. E apesar desta experiência continua sem saber qual o segredo para fazer uma canção vencedora na Eurovisão. Em 1978, com os Gemini a cantar Dai Li Dou, foi a Paris. "O que eu queria era que aqueles três minutos passassem depressa e sem nenhum acidente de percurso", recorda. "Outros intérpretes terão ido à Eurovisão com outras expectativas, mas eu não. Para nós o importante não era a Eurovisão, era o festival em Portugal. E nem era preciso ganhar, ser selecionado já era ótimo. Estar entre as oito ou doze canções do festival, mesmo que se ficasse em último lugar, era sinal de trabalho para o ano inteiro."
Na Eurovisão, Tozé Brito sempre sentiu que havia demasiados fatores externos a imiscuírem-se na votação. No ano de Dai Li Dou, por exemplo, venceu a canção israelita A-Ba-Ni-Bi: "E eram muito parecidas. Se nós fôssemos israelitas poderíamos ter ganho porque nesse ano houve fatores políticos muito importantes."
Com as Doce, para quem compôs muitas canções, o caso foi diferente. As Doce concorreram ao festival em 1981 com Ali-Ba-Báe ficaram em quarto lugar. "As Doce tinham uma componente sensual muito forte, fazia parte do projeto. E nós sabíamos que havia uma linha que não podia ser ultrapassada. Elas ultrapassaram-na e foram penalizadas. No ano seguinte, com oBem Bom, foram completamente vestidas, só se viam as mãos e o rosto. E ganharam. Depois, na Eurovisão, talvez devessem ter arriscado mais na sua apresentação", diz. Mas houve mais coisas que não correram bem. Foram as primeiras a atuar e além de todo o nervosismo o som estava péssimo e a orquestração também não ajudou, lembra Tozé Brito. "O que nós queríamos era fazer um malhão, e até estava lá o bombo mas que se perdeu no barulho de fundo da orquestra". Se as coisas tivessem sido diferentes, "não digo que daria para ganhar, mas poderíamos ter tido uma classificação melhor".
"Havia um padrão Festival da Canção, que era, supostamente, o certo para levar à Eurovisão. E sempre houve compositores que se preocuparam com isso. Mas também havia outros que não o faziam. Queriam canções boas, para consumo interno", diz Tozé Brito. Temas como No Teu Poema, de José Luís Tinoco (cantada por Carlos do Carmo em 1976) ou Cavalo à Solta (de Fernando Tordo e Ary dos Santos, em 1971), por exemplo. "Sempre houve coisas diferentes no Festival. Podemos falar de canção ligeira mas antes, como agora, esse termos já abarcava muita coisa diferente", explica o investigador musical João Carlos Calixto.
A esse propósito, Eládio Clímaco recorda o ano de 1980, quando José Cid levou a Haia Um Grande, Grande Amor , uma dita "canção festivaleira" e "estava toda a gente convencida que era desta que íamos ganhar". Mas não aconteceu. "Nesse ano ganhou Johnny Logan, um cantor com a sua guitarra." Risos na sala. As semelhanças com o que aconteceu no ano passado são enormes.
"Salvador ganhou pela diferença", diz o maestro. "Todas as músicas eram iguais e depois havia aquela que era completamente diferente." Mas não foi só isso. Em 2017, depois de uma paragem, houve a reformulação do Festival da Canção, um novo pensamento. A ideia de que, mais do que pensar na Eurovisão, se deveria procurar que o festival voltasse a ser relevante para os músicos e para a sociedade, como explica Nuno Galopim, conselheiro da RTP para festivais. Foi assim que surgiu a canção de Luísa Sobral com aquela interpretação de Salvador Sobral - a simplicidade, a diferença em relação ao resto. O mais importante é sempre a canção, disseram todos os que estavam no debate. Houve ainda uma aposta clara da RTP na promoção - e que envolveu a RDP: "A canção do Salvador passava em todos os canais, várias vezes ao dia, nunca tinha visto isto em 30 anos de rádio", conta a locutora da RDP Salomé Andrade.
Houve isto tudo. A chamada "tempestade perfeita". E, no entanto, como disse Tozé Brito, "poderíamos ter isto tudo e ainda assim Salvador não ganhar". Nunca se sabe. Se alguma lição os concorrentes que vão hoje participar na primeira semifinal do Festival da Canção podem tirar disto tudo é esta: o segredo da vitória é que não há segredo.
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