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sábado, 3 de fevereiro de 2018

Como ver claro no meio de tanto nevoeiro e fogo-de-artifício?


(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 03/02/2018)

Resultado da sua pesquisa para miguel sousa tavares
Sigamos a cronologia dos últimos dias alucinantes do Ministério Público, numa atitude de desconfiança crítica que é a minha desde sempre e não a dos comentadores-justiceiros e dos jornalistas-altifalantes ao seu serviço.
1 Na sexta-feira da semana passada, ficámos a saber que, numa reunião ordinária do Conselho Superior do Ministério Público, os seis representantes do MP apareceram com uma insólita e descabida proposta de louvor à actuação da PGR, Joana Marques Vidal. Não tendo essa actuação sido posta em causa por ninguém, tal proposta só pode ser entendida como uma pressão a favor da sua recondução, daqui a nove meses — decisão que cabe ao poder político e não ao lobby corporativo do MP. Porque não somos hipócritas, todos entendemos que a questão só surgiu porque a ministra da Justiça, todavia também ela magistrada do MP, em resposta a uma banal pergunta, respondeu que a sua interpretação jurídica era a de que o mandato de seis anos da PGR não era renovável — uma interpretação tão legítima quanto a oposta e a única, aliás, que garante a independência do mandato face ao poder político da hora. Foi quanto bastou para que uma estúpida leitura das palavras da ministra por parte de uma apressada oposição e de alguns sectores politicamente engajados do MP concluíssem que se pretendia sanear a PGR porque ela seria “inconveniente”. Assim se retirando ao actual Governo o poder que a lei lhe confere de nomear o PGR, passando-o, “de facto”, ao próprio MP. Eis como eles entendem a sua tão estimada independência política.
2 No domingo, um comunicado da PGR confirmava o que o “Observador” já tinha previsto e o “Correio da Manhã” anunciado de véspera: que o MP realizara buscas no Ministério das Finanças, nomeadamente no gabinete e no computador do chefe de gabinete do ministro. Em causa estaria um crime de “favorecimento”: o ministro teria aceitado mandar isentar de IMI um prédio do filho do presidente do Benfica a troco de dois bilhetes para um jogo de futebol na tribuna do Estádio da Luz. O cérebro do MP que pariu este inquérito poderia até ser tão abstruso que não lhe ocorresse que um ministro das Finanças, que até tinha dois lugares cativos no Estádio, não os pudesse utilizar por razões de segurança evidentes, que a PSP podia testemunhar por já o ter tentado em ocasião anterior; podia ter-se detido perante o ridículo de um suposto caso de suborno de um ministro em troca de dois bilhetes para o futebol; podia ao menos ter reflectido um segundo sobre o teor do comunicado que o próprio ministro havia feito quinze dias antes explicando que o seu Ministério não tinha competência alguma na matéria. Podia ter ido ler a lei e obter, num instante, a resposta a duas perguntas muito simples: ao caso aplicava-se a isenção de IMI? Resposta: sim, aplicava-se. Quem é que tinha de decidir isso, as Finanças ou a Câmara Municipal? Resposta: a Câmara Municipal. E o caso morria aí, de morte natural. Mas não. O “Correio da Manhã” queria sangue. E o “Correio da Manhã” é a opinião pública e o amigo íntimo do MP. Assim, a mando do “Correio da Manhã”, fez-se a busca, devassou-se o computador e os e-mails do chefe de gabinete de Mário Centeno — hoje em dia, uma banalidade que esconde uma violência e uma devassa da vida alheia que só quem nunca sofreu é que não consegue imaginar. Mas, pior ainda: o caso saltou para as páginas da imprensa internacional: inglesa, alemã, europeia, americana. E, como os jornalistas são preguiçosos e as redes sociais os substituem com muito mais eficácia, em breve ficou apenas a headline: “O português Mário Centeno, acabado de ser eleito presidente do Eurogrupo, já é suspeito de corrupção”. E o alemão que preside ao Parlamento Europeu apressou-se, sôfrego, a pedir a comparência de Centeno para ser enxovalhado em Estrasburgo. Portugal inteiro passou ao banco dos réus. Mas ao senhor magistrado do MP que, por absoluta incompetência ou por inadmissível má-fé, fez este lindo serviço ao país, nada lhe vai acontecer: ele é irresponsável, por estatuto. Não responde perante ninguém, como se fosse um juiz e não aquilo que devia ser: um agente da política de justiça definida por um Governo eleito pelos portugueses.
E é por isso que eu, mesmo sabendo que corro o risco de, sem razão alguma ou por simples represália, amanhã poder ver o MP entrar-me pela casa adentro, arrombar-me gavetas e levar-me o computador para vasculhar toda a minha vida, protegido pela lei e apoiado pelo “Correio da Manhã”, reafirmo aquilo que a experiência me ensinou a defender: sou assumidamente contra a independência e autonomia funcional do MP, contra a sua irresponsabilidade e inamovibilidade.
Defendo que estejam integrados numa cadeia hierárquica em que cada um responda perante o seu superior e que, no final da cadeia, o PGR responda politicamente perante o Governo, a Assembleia ou o PR. Para que os bons magistrados se possam distinguir e ser premiados e os maus castigados e, sobretudo, para que os cidadãos tenham alguma forma de defesa contra a irresponsabilidade instalada por lei.
3 Três dias depois, na quarta-feira, rebenta a ‘Operação Lex’, com todo o fogo-de-artifício que a PGR adora anunciar: buscas em 33 lugares diferentes, 200 elementos da Justiça envolvidos, entre polícias da PJ, magistrados judiciais e do MP, 12 arguidos, etc. Por junto, dois juízes-desembargadores e um funcionário judicial suspeitos de corrupção passiva por alegadamente venderem sentenças ou influências sobre sentenças de colegas, e sete suspeitos de corrupção activa, entre os quais, e de novo, o presidente do Benfica, e de novo por suposto crime de evasão fiscal — o que convém à tese de que “isto está tudo ligado” (ligado ao caso Mário Centeno” e ligado à conversa dos jornalistas-altifalantes de que o MP não hesita perante os poderosos, até os do futebol).
Pois seja. Na tese benévola, em que eu muito gostaria de acreditar, a ‘Operação Lex’ foi desencadeada agora porque estar-se-ia a dias de a juíza Fátima Galante iniciar o seu processo de promoção a conselheira do STJ. Na tese malévola, que infelizmente é a minha, há anos que pendem suspeitas sobre a juíza e o seu ainda marido oficial, Rui Rangel, seguramente dois dos mais desprestigiados juízes a nível de tribunais superiores. Saber por que razão anos de suspeitas e de investigação culminaram exactamente agora, dois dias depois da grande barraca do assalto ao computador do Ministério das Finanças e no timing exacto para desviar as atenções dessa injustificável operação, dá que pensar se o objectivo principal agora não foi exactamente esse. Esperemos pelas cenas dos próximos capítulos.
4 Claro que é salutar que o MP se vire também para dentro e para os seus. É um notável progresso e Orlando Figueira é o melhor exemplo — porém, inescapável, sem enorme escândalo. Aliás, não sendo isso prova alguma, basta olhar para a cara do senhor e atentar nas suas patéticas explicações em tribunal. Rui Rangel também pode revelar-se outro bom exemplo. Mas falta perceber por que razão tendo ele arquivado pessoalmente um processo de milhões de Álvaro Sobrinho, não foi logo suspeito então e é agora suspeito de ter tentado influenciar um juiz de um tribunal administrativo e fiscal para dar sentença favorável num processo de reclamação de 1600 euros em que Luís Filipe Vieira pede a devolução de um imposto pago, e que ainda está para decisão. O nevoeiro está muito longe de dissipado.

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)

estatuadesal.com

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