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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A “ameaça vermelha”: medo e paranóia anticomunista




Surgido no século XIX, o anticomunismo consolidou-se como um poderoso discurso político no século XX e parece ainda estar vivo em nosso tempo.

Por Daniel Trevisan Samways
Na polarização política que vem ganhando força no país – e, talvez, no mundo – alguns velhos bordões anticomunistas reaparecem como que vindos direto do período da Guerra Fria. Ou da década de 1930. Ou quem sabe de antes. E com isso, importantes perguntas tornam a emergir: o anticomunismo é uma característica exclusiva dos discursos “de direita”? Continuam sendo alimentados – e propagados – mais por um imaginário aterrorizante do que por referenciais teóricos e práticas ou ameaças reais?  Que ações de exceção estes discursos legitimam?
Essas perguntas não são novas – fazem parte das investigações dos pesquisadores da área interdisciplinar que podemos chamar de “estudos sobre o anticomunismo” há bastante tempo –, mas demonstram a necessidade de compreender o fenômeno do anticomunismo em seu caráter histórico. E este é o objetivo principal desse artigo que, ao levantar algumas questões, pode também lançar algumas luzes sobre o presente.

VÍDEO

Vídeo do governo americano no pós-guerra: “como identificar um comunista”.
Antes de começarmos, no entanto, vale chamar a atenção para o fato de que muito dos discursos anticomunistas são caracterizados não só por oposição ao comunismo – doutrina político-econômica surgida no século XIX no contexto da Revolução Industrial e que visava combater a exploração da classe trabalhadora, almejando, ainda, uma sociedade sem classes –, como também a outras ideias e um “amálgama do mal” a ser combatido. Essas outras ideias variam com as circunstâncias do momento histórico e do local. É comum no Brasil, por exemplo, se associar o comunismo a pautas sociais “progressistas” por conta das circunstâncias das disputas políticas.
O que é o anticomunismo?
O anticomunismo é um fenômeno histórico que remonta ao século XIX, sendo encontrado tanto na Europa quanto na América. Está presente não apenas em discursos que pregam a perseguição de comunistas, mas também em um conjunto de ideais em defesa da propriedade privada que colocam o comunismo como uma ameaça à democracia1 – segundo alguns discursos liberais, a democracia seria possível apenas no capitalismo.
Na obra Dicionário de Política, Luciano Bonnet afirma que o anticomunismo pode ser entendido não somente como um conjunto de ideias do campo das “direitas” contrárias ao comunismo, mas sim como um fenômeno muito mais complexo e também com uma grande pluralidade. O autor aponta que existem anticomunismos de origem fascista, clerical ou reacionário, os quais podem desencadear ações de violência, pois parte de seu discurso e prática consistem na oposição ferrenha aos comunistas e à caracterização destes como fonte de todo tipo de malefícios, por exemplo, na encíclica Divinis Redemptoris, de 1937, na qual o papa Pio XI afirmava que “vós, sem dúvida, Veneráveis Irmãos, já percebestes de que perigo ameaçador falamos: é do comunismo, denominado bolchevista e ateu, que se propõe como fim peculiar revolucionar radicalmente a ordem social e subverter os próprios fundamentos da civilização cristã.”5 Hitler, por sua vez, afirmou, durante o processo eleitoral de 1933, que o marxismo era o principal inimigo do movimento nazista. “Jamais, jamais me desviarei da tarefa de esmagar o marxismo… Só pode haver um vencedor: ou o marxismo ou o povo alemão! E a Alemanha triunfará!” Bonnet afirma ainda que é possível encontrar o anticomunismo no meio liberal e até dentro do próprio espectro de “esquerda”, mais próximo aos ideais socialdemocratas, que defendem uma economia mais livre do controle estatal.
O historiador Michael J. Heale ressalta que, desde o século XIX, o anticomunismo já permeava o ideal republicano de segurança nos Estados Unidos. Mas é no século XX, sobretudo após a Revolução Russa de 1917, que o anticomunismo se tornou uma das forças políticas mais importantes e influentes no mundo, responsável por nortear uma poderosa estratégia do chamado “mundo ocidental” contra o comunismo, principalmente aquele vindo da recente União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Um relevante aspecto para entender esse destaque que as ideias anticomunistas ganharam é compreender a própria mensagem anticomunista e os canais de que ela se utiliza.
Anticomunismo e mensagens para massas
No contexto da Guerra Fria – que podemos definir, resumidamente, como o período após a Segunda Guerra mundial (1945) e a queda do Muro de Berlim (1989), e marcado pela disputa entre um bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e outro socialista, liderado pela União Soviética–, os estadunidenses tornaram-se os principais propagadores de uma cultura anticomunista, embora não tenham sido os únicos. Para isso, valeram-se da recém-criada indústria cinematográfica, das histórias em quadrinhos e da imprensa: por meio da cultura e do entretenimento, os meios de comunicação de massas permitiram às ideias anticomunistas um alcance muito mais amplo que no passado.
O cinema, as artes e a literatura retrataram os comunistas como seres maléficos, sem alma ou coração, incapazes de amar e atuando apenas por meio de “orientações de Moscovo”.
Porém, para a construção do imaginário anticomunista, a forma como o comunismo era representado é tão (ou mais) importante quanto os canais que faziam circular as informações. O cinema, as artes e a literatura retrataram os comunistas como seres maléficos, sem alma ou coração, incapazes de amar e atuando apenas por meio de “orientações de Moscou”. Assim, a figura do “inimigo” do mundo ocidental e seus “valores”, entre eles a democracia, ganhou no período um rosto e uma personalidade. Vale destacar a ironia histórica: os argumentos anticomunistas viriam a alimentar o rompimento com a democracia em diversos regimes ocidentais capitalistas.
É importante ressaltar que muitas pessoas acreditavam, de fato, que os comunistas, tal como se via nos filmes, eram capazes das piores atrocidades. Aquilo que pode ser visto hoje como uma paranoia, uma distorção do real, era visto como uma verdade por milhões de pessoas que acreditavam – e ainda acreditam – no poder e na falta de escrúpulos dos comunistas.
Paranoia: caça às bruxas e os mitos de complô
Uma das grandes preocupações dos governos ocidentais era a capacidade de disfarce dos comunistas. Eles poderiam estar em todos os lugares, nas igrejas, na televisão, nas escolas e universidades, no campo ou infiltrados nos governos. Alguns cineastas ironizaram esse discurso, caso do diretor Stanley Kubrick, que no filme Dr. Strangelove (1964) representou o exagero e até mesmo a irracionalidade do discurso anticomunista. No filme, o general Jack Ripper acreditava que os russos haviam contaminado a água dos Estados Unidos e ordena um ataque. Por mais que o enredo retratasse uma ameaça real – a possibilidade de uma guerra nuclear entre URSS e EUA e a destruição do mundo – por outro, abordava com grande ironia a paranoia anticomunista.

Capa de um “comic book” de 1947, nos Estados Unidos, joga com um futuro onde o país é dominado por comunistas. Imagem: Wikipedia.

Porém, o anticomunismo não pode ser visto como uma manifestação política irracional.  Se os filmes retratavam o caráter maligno e ardiloso dos comunistas, na vida real o governo estadunidense também acreditava nisso. Não fortuitamente, foi criado, em 1938, o “Comitê de Atividades Antiamericanas”, que além de investigar funcionários públicos, foi para Hollywood a procura de atores e diretores supostamente comunistas.
Fazendo um paralelo com a análise do historiador Raoul Girardet, em Mitos e mitologias política¸ é possível afirmar que o “mito do complô” (que é bastante antigo na História) foi reforçado durante a Guerra Fria, agora através dos “soldados de Moscovo”. Segundo Girardet, para que um complô tenha êxito é necessário conectá-lo a elementos negativos, que nos remetam a pesadelos, animais perigosos e peçonhentos, com garras e presas, das quais é impossível escapar, ou um monstro que nos devora e nos despedaça.
No caso do complô anticomunista, o monstro em questão vestia vermelho e defendia o fim da propriedade privada. Essas questões nos levam a pensar em que medida os sentimentos podem adentrar o espaço do político e mobilizar ações bastante práticas no cotidiano social – afinal de contas,  o temor anticomunista gerou táticas de guerra, produção de manuais de combate e tortura, além do treinamento de agentes (nem sempre) secretos, com o apoio de parte da sociedade civil.

O anticomunismo: um passado ainda presente
A principal preocupação desse artigo foi lançar algumas luzes sobre o presente. Assistimos, recentemente, a prisão de jornalistas e manifestantes, ataque a espaços de arte e cultura, com livros sendo utilizados como prova de comportamentos criminosos, museus e obras de arte censuradas, invasão de universidades, prisão de reitores e professores, além da utilização cada vez mais intensa dos aparatos de violência estatal. Em que medida o ideário anticomunista justifica atos de violência?
A articulação de forças para conter o comunismo não mobilizou apenas corações e mentes, mas se refletiu na prisão, tortura e morte de comunistas, e na criação de um conjunto de leis para criminalizar essa doutrina e prender seus seguidores. Se o anticomunismo é um conjunto de ideias contra o comunismo, também se refletiu em ações, muitas delas de grande violência e que difundiram o terror e o medo. A perseguição de comunistas foi uma realidade não apenas em regimes ditatoriais, mas também nas democracias.
Não é possível afirmar que todos os agentes eram sádicos ou paranoicos, ou que toda a sociedade foi dominada pelo temor anticomunista e pela tolerância à violência, mas é impossível negar sua existência dentro da estrutura repressiva ou em diferentes lares de famílias ditas “de bem” espalhadas pelo Brasil.
Voltando nossa atenção para o presente – e ampliando nossa crítica para o jogo de forças a que estamos submetidos, vale a pena nos perguntarmos: quem será o novo inimigo do Estado? Que rosto ele terá? Poderia o imaginário anticomunista continuar justificando atos de violência no Brasil, mesmo em período democrático? Recorrer à História talvez nos ajude a responder estas e outras questões.

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