30 anos em rodagem
O trampolim do Marketing
0 Expresso publicou, revista-2230, um artigo que considero de grande interesse analisar. É um trabalho importante de Ângela Silva sobre a vida do político Cavaco Silva. “30 anos em rodagem”. Não devemos desconhecê-lo.
Este trabalho de Ângela Silva mostra como se fabrica um político que, defendendo interesses contra o povo, contra o país, consegue que o povo e o país o elevem a Presidente da República e o mantenham nos píncaros da política durante 30 anos.
Este trabalho de Ângela Silva mostra como se fabrica um político que, defendendo interesses contra o povo, contra o país, consegue que o povo e o país o elevem a Presidente da República e o mantenham nos píncaros da política durante 30 anos.
O bom aluno
Isto deve levar-nos a reflectir no que falta a políticos que defendem o povo e o país para que, não consigam o suficiente para que, este povo e este país, reconheça os erros que têm cometido ao eleger quem não os defende.
Leva-me também a reflectir no poder que, as técnicas da comunicação e outras ciências como o marketing político podem ter para que prevaleça a mentira sobre a verdade.
Leva-me também a reflectir no poder que, as técnicas da comunicação e outras ciências como o marketing político podem ter para que prevaleça a mentira sobre a verdade.
A transformação da mentira
Por último fico a pensar que, sendo mais fácil convencer com a verdade do que com a mentira, o que é que nos falta para que não sejamos capazes de mostrar ao povo, tantas vezes enganado, quem, verdadeiramente, defende os interesses que os outros, mentido com habilidade, dizem defender?
Sabemos que a direita têm o controlo da Comunicação dita Social. Sabemos que a cultura “das massas” tem sido adulterada por preconceitos transmitidos ao longo de gerações. Mas também sabemos que a mentira “tem perna curta” e, mesmo com as ajudas de trampolins da Comunicação Social e Marketing, a verdade pode ter muita força se for devidamente transmitida.
Como amantes da verdade, mas também do progresso, da Técnica e da Ciência, utilizemo-las com inteligência, com assertividade e eficácia. Isso também se aprende. Num combate tão desigual não cultivemos a ignorância nem utilizemos pedras ou fisgas, para combater espingardas.
Ainda mais dois destaques do trabalho de Ângela Silva:
Como tudo começou, sempre as ajudas do PS…
… e como acaba
Via: C de …
AQUI ABAIXO TODO O ARTIGO
30 ANOS EM RODAGEM
Esta é a história de um ministro das Finanças que ficou 30 anos no poder. Não convém confundir. Cavaco Silva quis mesmo subir a pulso e doutorar-se em política. Conseguiu?
Textos Ângela Silva Fotografias Rui Ochôa
A atriz Glória de Matos lembra-se como se fosse hoje do dia em que recebeu um telefonema de uma amiga a pedir-lhe que fosse à sede nacional do PSD. Dinah Alhandra era fundadora do partido, estava acompanhada de Conceição Monteiro, ex-secretária de Sá Carneiro, e queriam pedir-lhe um favor: era preciso ajudar Cavaco Silva a falar. Estava-se em 1985, o ano em que Cavaco chegou à liderança do partido, no célebre Congresso de 19 de maio na Figueira da Foz e Glória não se lembra com rigor da data em que foi chamada à Buenos Aires. Mas sabe que foi antes desse dia. A tese segundo a qual o casal Silva se tinha deslocado à Figueira para fazer a rodagem de um Citroën BX acabadinho de comprar volta, assim, a ser beliscada. Cavaco já estava a ser preparado para a função.
O diagnóstico que a atriz que estudou técnicas de dicção em Londres fez “ao professor” não deixou margem para dúvidas. Aníbal Cavaco Silva “tinha a queixada saliente, dentes desencontrados, língua pouco trabalhada”. Ou seja, “havia um problema de dicção e de silabação, era péssimo nas consoantes, problemático nos erres”. Aos 45 anos, com o pé na porta de entrada da política pura — antes tinha sido ministro das Finanças de Sá Carneiro, mas sempre e só com aura de economista — Cavaco dispunha-se a aprender um novo “bê a bá”: como falar sem ruídos na linha e de forma a marcar e ser ouvido.
Não fez reuniões conspirativas no sótão, como Guterres. Mas fez guerrilha a Balsemão e Mota Pinto para chegar a líder na Figueira da Foz
“Na primeira vez que trabalhámos tive que lhe dar um murro na barriga”, relata Glória de Matos, para lhe ensinar a respiração baixa, aquela que permite discursos sonantes e longos, sem cansaços nem fífias, com verdadeira caixa de ar e dignos de um político que quer chegar às massas. A atriz é perentória “Foi o meu melhor aluno. Aceitou o diagnóstico e começou logo a treinar. Tinha uma certa tensão nos ombros mas fazia exercícios de relaxação, deitado num cobertor que púnhamos no chão na sede do partido. Nunca tive ninguém tão disciplinado e esforçado.”
Melhorar a forma era, também, mexer no conteúdo e houve um dia em que a professora de Cavaco se arrepiou: ele leu-lhe um discurso que ía fazer e que tinha uma frase tramada: “O progresso dos trabalhadores só se obtém com trabalho e produção.” Para quem tem problemas com os erres, pior era difícil. E Glória tentou demovê-lo.“Ó senhor professor, tire isso daí.” Mas Cavaco não tirou. Com o progresso dos trabalhadores não se brinca, e ele dispunha-se a treinar as vezes que fosse preciso. No dia do discurso ao vivo, Glória de Matos ficou a acompanhá-lo pela TV. “Correu muito bem. E quando ele acabou de dizer a tal frase, estranhei, porque ele riu-se. Uns dias depois perguntou-me: ‘Viu-me a rir na televisão? Era para si’.” Glória não duvida: “Isto é o professor Cavaco.”
“Esse professor? Quem pensa ele que é?”
Por esses dias, Mário Soares, o politicão, reagia à novidade. “Esse professor? Quem pensa ele que é, vindo não se sabe de onde?”, titulou o “Semanário” e nunca foi desmentido. A frase terá sido de Soares numa reunião com deputados do Partido Socialista, após o Congresso que fez de Cavaco líder do PSD. O soarismo ficou baralhado com a diferença e dedicou-se a explorar o contraponto entre a imagem do (seu) animal político a quem não fez falta nenhuma ser catedrático em números ou falar fluentemente inglês, e o economista que chegou com galões académicos mas que Soares dizia “não ter currículo” nenhum.
Na Wikipédia, Cavaco Silva é “um economista, professor universitário e político português”. E foi esta ordem de prioridades que há três décadas baralhou o status quo. Mas, contra todas as previsões, o economista agarrou o partido de Sá Carneiro quando ninguém esperava e ficou na política até hoje. Trinta anos em cena, um Governo minoritário, duas esmagadoras maiorias absolutas, um programa de reformas e obras que mexeu com o país, uma coabitação no vermelho com um Presidente da República chamado Soares, um intervalo medido a régua para preparar o combate seguinte, e um regresso em força para ocupar durante 10 anos o lugar cimeiro do Estado.
Para quem chegou na pele de outsider, parece demais. Mas quem com ele privou acha o resultado óbvio. “Ele escolheu como é que queria que os portugueses o vissem e gostou sempre de cultivar a imagem do antipolítico. Mas foi o político mais profissional que eu conheci”, afirma Luís Marques Mendes, que foi seu secretário de Estado, ministro e porta-voz ao longo de três Governos. Na sua opinião, a história do Congresso da Figueira não passou, aliás (como diria Passos Coelho), de “um mito urbano”.
O sÓtão de Cavaco
Quando Sá Carneiro morreu, em 1980, Cavaco afastou-se. Mas a partir de 1981, sentindo o partido órfão de um grande líder, começou logo a trabalhar nos bastidores contra os poderes vigentes. As reuniões conspirativas que António Guterres faria anos mais tarde no seu sótão para derrubar Jorge Sampaio foram, no caso de Cavaco, intervenções de fundo no Conselho Nacional do PSD e cartas abertas às bases a incitá-las à rebelião, que subscrevia com Eurico de Melo, um dirigente muito influente à época junto dos militantes e do aparelho do partido.
Numa delas, em 82, Cavaco Silva critica o Governo de Francisco Pinto Balsemão e acicata a militância: “Se existe indiferença e resignação ao nível das cúpulas, compete às bases reafirmar que o partido está vivo e que a coragem não morreu.” Em 83, espeta mais uma farpa: “Como professor de economia tenho muita dificuldade em dizer qual foi a política económica de Pinto Balsemão.” E em 85, dois meses antes da Figueira, Cavaco critica abertamente o Governo do Bloco Central. “Algumas das medidas que têm sido tomadas são claramente erradas e muitas outras que eram cruciais continuam incompreensivelmente adiadas”, afirmou numa Conferência na Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias. Todos os convites serviam para o professor passar recados.
Nos bastidores, a Nova Esperança — tendência onde Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Santana Lopes e José Miguel Júdice trabalham para o derrube do Bloco Central — puxa por Cavaco. E Eurico de Melo, Fernando Nogueira e Dias Loureiro manobram as distritais. As reuniões sucedem-se, o nome do ex-ministro das Finanças começa a correr para a liderança. Mas após a morte de Mota Pinto, a 15 dias da Figueira da Foz, é dele que se fala insistentemente. O PSD andava à procura de um líder e o trabalho de desgaste dos dois anteriores (Balsemão e Mota Pinto) que Cavaco Silva tinha feito no terreno nos últimos cinco anos, levou o PSD a olhar para ele.
Rodagem ou não, a preparação do terreno foi feita. E o partido viria a recuperar, sob a batuta de Cavaco, a chave que procurava para sair de anos de instabilidade, confusão e fratura interna. Foi esse, aliás, o caldo de cultura que ele percebeu perfeito para, com as suas características, chegar, ver e vencer.
“Napoleões e hospícios”
Na sua autobiografia, o atual Presidente da República conta outra história. Diz que avançou na Figueira devido a uma “teia” de acontecimentos que se queixa de não ter “conseguido controlar”. Fala-se de “destino”. Mas a candidatura presidencial que Cavaco Silva tinha negociado com Freitas do Amaral e que levou no bolso para o Congresso é a prova de como ia preparado ao milímetro. Ainda que visivelmente nervoso, Cavaco subiu ao palco e fez tudo certo: “Quero dizer-vos, olhos nos olhos, o que penso sobre uma questão que considero crucial: as eleições presidenciais.” A João Salgueiro, que era há meses o vencedor anunciado mas que chegou à Figueira da Foz sem surpresas na manga, restou o desabafo: “De Napoleões falsos estão cheios muito hospícios.” Eis Cavaco mergulhado na política pura.
Dias Loureiro já o apoiava nessa altura e diz, contra a corrente, que nunca teve dúvidas de que Cavaco Silva “sempre foi político”. Como ministro das Finanças de Sá Carneiro, quando ainda ninguém dava nada por ele, surpreendeu os entendidos com uma jogada que Loureiro diz “estar muito além de mera política económica”: durante 10 meses, baixou a inflação de 24 para 16,6%, revalorizou o escudo e corrigiu a carga fiscal. “Uma jogada política determinante para a AD”. Loureiro reconhece que Cavaco “não é como o Soares, um homem de salão”. Mas considera “uma treta” dizer-se que ele não era um político: “Ele sabia que tinha chegado no ciclo certo (a entrada do país na CEE, os fundos de Bruxelas, a curva económica ascendente, o caldo perfeito para fazer reformas) e deu 20 a zero na visão estratégica.”
Foi mestre a fazer política com a economia. Antes das eleições de 1991, subiu o preço da gasolina e baixou o do leite
Também teve sorte. Cavaco sabia que algumas questões que tinha para resolver exigiam outra Constituição e o líder que apanhou no PS em 89 deu-lhe jeito. Vítor Constâncio, um moderado, aceitou abrir a porta às privatizações e deixar cair Portugal como país a caminho do socialismo. E os dois primeiros Governos de Cavaco Silva ficaram marcados por uma avalancha de leis e reformas: desde acabar de vez com as bases da reforma agrária até abrir a comunicação social a privados, passando por flexibilizar as leis laborais, privatizar a gestão hospitalar, disciplinar a gestão orçamental e o acesso ao crédito, reduzir o sector empresarial do Estado.
Se hoje não se fala de outra coisa, à época Cavaco foi revolucionário. E o estoiro político e social foi enorme. Ministros em queda imparável — Leonor Beleza, Miguel Cadilhe e as manchetes de “O Independente” fizeram história —, polícias a manifestarem-se fardados, com o Governo a mandar avançar agentes contra agentes de mangueira em punho no Terreiro do Paço. E Cavaco igual a si próprio.
Escudado por uma task force que cedo criara em São Bento e que todas as quartas-feiras se reunia pela manhã para fazer análise política pura, o chefe do Governo passava horas a ouvir conselhos — Eurico de Melo, Dias Loureiro, Fernando Nogueira, Durão Barroso e Marques Mendes. E munia-se para a guerra. Considerava este pequeno grupo de reflexão exterior ao seu gabinete fundamental para definir estratégias, e somava-lhe o trabalho da equipa de assessores económicos, políticos e de comunicação, que igualmente tiveram, durante o seu consulado, uma importância invulgar.
Fernando Lima, o homem que acompanhou o atual Presidente da República durante os seus dez anos como primeiro-ministro e que teve um papel fundamental na promoção da sua imagem a partir de São Bento, confirma a tese do bom aluno de Glória de Matos. “O mais estimulante para quem trabalhava com Cavaco Silva era que se mostrava sempre confiante nas boas ideias que lhe apresentávamos para valorizar, a cada momento, a sua imagem”, relata no livro “O Meu Tempo com Cavaco Silva”, que lançou estrategicamente uns meses antes de Cavaco se lançar para Belém. Lima escolheu para título do primeiro capítulo “O Intruso”. Só que, ao contrário do que Mário Soares pensou quando olhou para Cavaco e viu isso mesmo, Fernando Lima explica como ser diferente foi, no caso do professor, condição de sucesso.
Política com números: subir a gasolina e baixar o leite
O fator diferença era a sua cabeça económica e, sobretudo, a forma como soube usar a economia para fazer política. Se havia índices económicos favoráveis, Cavaco chegava a ser o primeiro a lembrar a quem de direito: isto dava uma boa peça no telejornal. E a um mês das eleições que lhe deram a primeira maioria absoluta, chegou ao Parlamento e anunciou uma subida dos preços da gasolina... e uma baixa dos preços do leite. Do ponto de vista orçamental, a jogada era neutra. Mas se leite toda a gente bebe e gasolina só gasta quem pode, em vésperas de eleições, Cavaco fazia política, evidentemente.
Marcelo Rebelo de Sousa, o comentador que o país consagrou, tinha antecipado anos antes que o professor podia ser um caso sério. “Se vem o Cavaco fica lá 10 anos”, terá dito Marcelo a Pedro Santana Lopes, quando ainda hesitava em apoiar Cavaco Silva na Figueira. Santana conta-o na biografia de Rebelo de Sousa escrita por Vítor Matos. E Marcelo só se enganou por defeito. Foram 10 anos no Governo mais 10 em Belém, com 10 de intervalo que são os melhores para perceber como Cavaco soube gerir o tempo, qualidade essencial a um político que se preze. O método do aluno aplicado foi sempre cumprido. Cavaco ouvia os conselheiros com uma atenção máxima, fazia muitas perguntas, tirava muitas notas, exigia respostas concretas, preparava os discursos com uma enorme antecedência (às vezes uma semana antes), estudava exaustivamente os dossiês, e chegava ao ponto de decorar os improvisos. “Ele não se limitava a decorar as ideias. Decorava as frases, palavra a palavra”, confirma um ex-assessor.
As mensagens tinham que ser curtas e diretas e a linguagem muito básica, para ser bem apreendida. Se vivia em guerra quase permanente com os media, era preciso ignorar o intermediário e falar diretamente ao país. Foi o que Cavaco fez. Em 1991, num Conselho Nacional do PSD, chegou a gabar-se de ter ganho a segunda maioria absoluta “contra os jornais”. E não disse mentira nenhuma.
Na cena internacional, Cavaco Silva tem a sorte de apanhar a leva dos grandes líderes europeus com quem privou de perto — de Margaret Thatcher a Helmut Kohl, passando por Felipe González e François Mitterrand — e o seu inglês fluente somado à formação económica, com passagem pelas melhores escolas de finanças britânicas, ajudaram-no a mover-se com enorme à-vontade, quer nas negociações que antecederam Maastricht quer nos seis meses em que Portugal assumiu a presidência da Comunidade Europeia, pela primeira vez desde a adesão à CEE. Quase todas as quartas-feiras, Cavaco falava à imprensa estrangeira ou dava entrevistas em São Bento. No seu gabinete ironizavam que o primeiro-ministro tinha conseguido roubar ao futebol as “quartas-feiras europeias”.
O pior é que o queixume celebrizado por José Sócrates anos depois — “o mundo mudou” — acontece aos melhores. E em 93 já a sorte de Cavaco começava a falhar. Com a Europa e o país em plena recessão económica, os alertas tocam no Governo e o gabinete do primeiro-ministro faz o que pode para controlar danos. Cavaco tinha que adaptar o discurso e decide dar uma entrevista ao Expresso. Não se previa uma conversa fácil — as críticas ao Governo surgiam de todos os lados — e a entrevista foi vista em São Bento como “uma ocasião apropriada para aliviar a pressão”. Rui Ochôa, o fotógrafo oficial, “teve a ideia de fotografar Cavaco Silva numa cadeira de new design com um fundo neutro, como se estivesse num estúdio”, escreveu Fernando Lima. E a ideia foi “facilitada quando foi possível encontrar, numa loja de móveis da Rua do Século, a cadeira cujas características se aproximavam do que fora imaginado”.
Dias depois, “a foto que se pretendia fazia a capa da revista”. A entrevista não foi fácil mas “a foto valeu pelo ineditismo”. E o histórico assessor releva a forma como “o austero primeiro-ministro aceitara mais este desafio de imagem”. Soares sentou-se em cima de elefantes, tartarugas e até na cadeira de verga do filme erótico “Emmanuelle”, mas parece improvável conseguir sentá-lo numa cadeira comprada à medida na Rua do Século. Confirma-se: o currículo do economista cresceu.
A recessão, o “oásis” e o tabu
Como economista, Cavaco Silva sabe o que são os ciclos e percebe que o seu está a acabar. O clima de animosidade à volta do Governo e dele próprio tornava-se cada vez menos respirável, a sua família não é poupada e o primeiro-ministro sente que preparar Portugal para a moeda única o obriga a seguir critérios bem mais espartanos do que os que tinham marcado a sua entrada em cena. Quando Braga de Macedo, um ministro das Finanças sui generis, afirma em 93 que “Portugal é um oásis”, o anedotário nacional rejubila. E no livro “Portugal e Moeda Única”, que escreveu já depois de sair do Governo, Cavaco reconhece que o país foi “levado a associar austeridade, desemprego e exclusão social à moeda única”. Fernando Lima conclui: “A difícil aceitação dos sacrifícios por parte dos cidadãos transformou os últimos três anos do mandato de Cavaco Silva num caminho penoso.”
Era preciso preparar a saída e o faro político tem que entrar em cena. Alguém passa ao Expresso a notícia de que Cavaco pode não se recandidatar a líder do PSD, o próprio deixa correr o marfim. O tabu cresce e em outubro de 94 (as legislativas eram em 95), o professor confirma que não será candidato nem à liderança do partido nem a primeiro-ministro. A empreitada caberá a Fernando Nogueira, o seu nº 2 no partido e no Governo, que perde as eleições para António Guterres. E, na reta final da campanha, quando Nogueira ainda tenta fazer com Cavaco o que este fizera com Freitas do Amaral em 85 — cavalgar uma candidatura presidencial para valorizar a campanha das legislativas — o professor tira-lhe o tapete e diz que não será candidato.
Foi uma bomba na campanha de Nogueira, o ambiente gelou e a relação entre ambos nunca recuperou. Nogueira nunca mais quis falar de política. Dez dias depois de o PSD perder as legislativas, Cavaco Silva anuncia a candidatura à Presidência da República. Perdeu para Sampaio, mas marcou posição para dai a 10 anos. E fez da década que se segue um trampolim para a vitória nas presidenciais de 2006. Oficialmente, apenas tinha regressado às funções de consultor no Banco de Portugal e de professor na Universidade Nova. Mas a gestão da sua agenda durante o tempo que se segue é todo um tratado de alta política.
Dez anos a recuperar
Em 95, dá uma entrevista a “O Independente” titulada “Lá vou eu”, onde elogia Mário Soares e põe-se ombro a ombro com ele — “Na Europa, têm-me dito os meus colegas, há duas referências em Portugal. Uma é o dr. Mário Soares, o homem que lutou pela liberdade; outra sou eu, que pôs a casa em ordem.” Em 96, ao “Diário de Notícias”, vitimiza-se: “Desde o PREC que não havia uma maquinação destas contra um cidadão.” E vai à Corunha receber um doutoramento honoris causa. Em 97 apresenta um livro de Pacheco Pereira “O Nome e a Coisa”, e numa entrevista à Rádio Renascença defende a moeda única. À “Capital”, dá uma nova entrevista: “Hoje não há convicções”. E lança um livro — “Portugal e a Moeda Única”, tema que o levará a dar várias conferências, no continente, nas ilhas e até nos países lusófonos. Em 98, dá a cara ao lado da mulher no referendo sobre o aborto. E em 99 viaja com Durão Barroso para os EUA, onde dão uma conferência sobre as relações com Portugal.
Quando saiu do Governo, Cavaco passou 10 anos a preparar o salto para Belém. Apear Santana Lopes fez parte do plano
Mas o melhor estava para vir. Cavaco vira o século empenhado em refazer a sua imagem, que Mário Soares tudo tinha feito para demolir. Sob a sua batuta, Belém e o PS à época colaram as maiorias absolutas de Cavaco Silva ao “poder absoluto”, o seu estilo determinado ao “autoritarismo”, e a sua fúria reformadora a “uma década de betão”. Tudo deu jeito aos socialistas, que em 95 ganham com o slogan que o país reclamava: “os portugueses não são números, são pessoas”. Mas Cavaco confiou que era tudo uma questão de tempo.
Em meados de 2000 — já António Guterres dava sinais de enorme desgaste político e pessoal — e Cavaco Silva começa a espicaçar a esquerda. Divulga uma ata do Conselho de Estado em que tinha participado em 86, para negar a acusação que lhe era feita por Álvaro Cunhal de que teria defendido o fim do apoio à luta do povo maubere. Logo a seguir comemora, num jantar no Jardim Zoológico de Lisboa, os 15 anos da sua liderança do PSD. E em finais de 2000 chega a sua autobiografia — pano para mangas sobre ele e a sua obra.
Com a chegada de Pedro Santana Lopes ao poder após a saída de Durão para Bruxelas, Cavaco cheira o perigo de ver o seu partido envolvido no clima absolutamente incendiário que rodeou o santanismo, e decide demarcar-se com estrondo. Em novembro de 2004 publica um artigo no Expresso que haveria de ajudar Jorge Sampaio a apear Santana. Chamava-se “Os políticos e a lei de Gresham” e lembrava que a má moeda tende a expulsar a boa, pelo que era “chegado o momento de difundir um grito de alarme sobre a tendência para a degradação da qualidade dos agentes políticos”.
Precisamente nesse mês, Fernando Lima, o assessor de sempre que o acompanhou na década preparatória do salto para Belém, lança “O Meu Tempo com Cavaco Silva”. A distribuição de tarefas entre ele e o Presidente parecia perfeita. Em outubro de 2005, Cavaco anuncia no Centro Cultural de Belém a candidatura à Presidência da República, sob o tema “Eu não me resigno”. O PSD aprova por unanimidade e aclamação o apoio ao candidato, considerado “o homem certo, na hora certa”. Fernando Nogueira já estava, há muito, definitivamente afastado da política.
Em janeiro de 2006, Cavaco repete uma das suas invulgares campanhas pelo país. Não foi tão avassaladora quanto as das duas maiorias absolutas, que ficarão para a história pelo clima de idolatria em torno de um homem, quando Cavaco se deu ao luxo de eclipsar a sigla do PSD dos cartazes e distribuía pequenos cartões com a sua foto, que tirava do bolso das camisas sempre misteriosamente engomadas. A oposição comparou-o à Santa da Ladeira e Pacheco Pereira, um intelectual que aterrara no cavaquismo, vislumbrou riscos na histeria criada em redor do “homem providencial”. Mas, quase 20 anos depois, Cavaco volta a mergulhar no povão com sucesso e consegue mais de 50% dos votos, contra Mário Soares e Manuel Alegre. Objetivo cumprido: ganhou à primeira volta. O pior estava para vir.
Annus horribilis em Belém
Em Belém, a vida muda e prova disso é a forma como o Presidente da República se aproxima do fim. Mal posicionado nas sondagens, o homem que fez da firmeza imagem de marca e que falava diretamente ao povo, deixou de fazer eco. Falhou o seu grande objetivo: um acordo de regime para sustentar as mudanças que diz serem vitais para o país. E deixou-se enredar em episódios e polémicas dos quais nunca recuperou.
Nos primeiros dois anos, coabitou com a maioria absoluta de Sócrates sem problemas — o “Povo Livre”, jornal oficial do PSD, chegou a queixar-se dos seus elogios ao ímpeto reformista do Governo. Mas a partir de 2008, com a chegada de Manuela Ferreira Leite à liderança do PSD, a tensão entre Belém e o Largo do Rato aumenta. Os socialistas insinuam que a entrada em cena da amiga do Presidente da República pode perturbar a imparcialidade de Belém e em 2009 estoira o ‘caso das escutas’. Uma manchete do “Público” cai como uma bomba: a propósito de críticas do PS à alegada participação de assessores de Cavaco Silva na elaboração do programa eleitoral do PSD, saem da Presidência suspeitas de que Belém pode estar “sob vigilância”. Cavaco recusa-se a comentar, mas a oposição cavalga o tema e quando o “DN” divulga um e-mail como prova de que a fonte do “Público” seria Fernando Lima, o Presidente da República afasta o seu assessor de sempre de responsável pela assessoria para a comunicação social.
Na Presidência da República, Cavaco não brilhou como em São Bento. Falta de equipa ou falta de jeito para a política pura?
A fratura foi tão grande que nunca mais o discurso de Belém acertou o tom com o país. Para tornar o ano de 2009 verdadeiramente horribilis, Dias Loureiro, o histórico conselheiro de Cavaco, vê-se envolvido no caso BPN e forçado a abandonar o Conselho de Estado. O escândalo do banco que crescera assente em nomes do cavaquismo ainda salpica o Presidente, mas Cavaco consegue ser reeleito em 2011. Só que perde meio milhão de votos e regista o resultado mais baixo de sempre de uma eleição presidencial em democracia. A imagem de intocável tinha sido abalada e a hesitação na gestão mediática do rombo deu nas vistas. Os que o acompanharam nos anos de brasa em São Bento, dividem-se: Para uns, “faltou-lhe equipa” e “aconselhamento político”; para outros, Cavaco “não percebeu que o grande poder de um Presidente da República é o microfone” e quando se viu afastado das funções executivas e entregue à política pura, fraquejou. O cúmulo do mau uso da palavra aconteceu-lhe em 2012, quando o Governo de Passos foi aos bolsos dos pensionistas e o Presidente se queixou: “Tudo somado, o que irei receber do Fundo de Pensões do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Aposentações, quase de certeza não vai chegar para pagar as minhas despesas, porque eu também não recebo vencimento como Presidente da República.”
A fratura agrava-se. E o currículo do economista, que podia ter sobressaído na legislatura mais económica do Portugal democrático e ajudado a compensar as gafes acumuladas, nunca brilhou. É como se Gaspar, Passos, Portas e Maria Luís Albuquerque tivessem tomado conta da ocorrência. Hoje, “olha-se para Cavaco e parece que ele está desejando que isto acabe”, desabafa um amigo.
Agora, se das legislativas de outubro não sair uma maioria absoluta, Cavaco Silva tem pouco mais de três meses para se fazer ouvir e não há discurso seu que não insista na urgência de se firmarem acordos entre partidos. A dúvida é se, 30 anos depois, o economista que aprendeu a ser político volta a falhar e regressa, tímido e inseguro, às origens. Ou se, mais uma vez, conseguirá surpreender.
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