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domingo, 4 de maio de 2014

VIDA E MORTE DO PARQUE MAYER - Parque Mayer: história dos 80 anos da Broadway portuguesa*

As escadas rolantes do Capitólio


Texto de
João Bénard da Costa


Cinema Capitólio no Parque Mayer. 1990. Michel Waldmann.


«Foi aí pelos finais dos aos 80. Luís de Pina ainda era vivo. Ele é que me desafiou a descermos dois quarteirões da Avenida para espreitar o Capitólio. Este ainda estava activo, embora especializado em filmes pornográficos. Quem nos visse (director e subdirector da Cinemateca, que à época éramos) entrar pelo velho edifício de Cristino, já a desconjuntar-se, pensaria que aos programas da Barata Salgueiro preferíamos uns pornos indigentes, desses de "abrir porta - fechar porta", para não falar de outras aberturas e de outros fechamentos.
Mas não eram coxas quentes o que buscávamos. Entráramos ali para estudar um pouco aquele espaço (o que restava dos foyers e dos camarotes) e, metendo conversa com um velho porteiro, conseguimos mesmo que ele nos deixasse descer à cave, que abriu e iluminou para nós. Era um espaço imenso e vazio, à excepção de uns trastes que alguém deitara para ali, com preguiça de os transportar até ao caixote de lixo mais próximo.
Foi nessa cave que a ideia que trazíamos começou a tomar corpo. Aquele vasto espaço já a cheirar a ruína, mas ainda com vagos vestígios do esplendor de outras eras, devidamente restaurado, podia prestar-se magnificamente à ideia de um Museu do Cinema, de que já se falava nos corredores da Cinemateca. Das traseiras do prédio da Barata Salgueiro, que dão para a Rua do Salitre, até ao Parque Mayer era um pulo e a Cinemateca podia assim ter um prolongamento quase natural e convenientemente urbano.




Poucos anos antes, nuestros hermanos da Filmoteca Española, com quem estreitávamos relações por esses tempos, tinham recuperado um belo cinema dos anos 20, na Calle Santa Isabel, em pleno centro de Madrid: o Doré, que fechara portas, depois de ter sido cinema de primeira e cinema de segunda, e ia ser demolido. Foram a tempo. Fizeram um restauro impecável e transformaram-no numa das mais belas salas de cinemateca do mundo. Confesso que fiquei roído de inveja a primeira vez que lá fui e comecei a pensar no que ainda se podia fazer (já lá vão 20 anos) de salas equivalentes, da mesma época ou um bocadinho posteriores, ainda existentes em Lisboa.
Portugal sempre deitou o passado borda fora, talvez a mais visível herança que os navegantes nos deixaram. Inventaram-se e inventam-se muitas desculpas: o terramoto de 1755, as invasões francesas, o espólio que o futuro D. João VI levou para o Brasil, num feito que está na moda apresentar como profético e até visionário e que continuo a pensar ter tido mais trementes motivações. Todos têm as costas largas, como as têm as pilhagens posteriores aos conventos e igrejas, os anéis que se venderam para salvar os dedos, etc., etc. Conservar não está no nosso feitio, mesmo nos mais conservadores. Pense-se, por exemplo, nos cinemas de Lisboa.


Parque Mayer com o Cinema Capitólio. 1945. 


Quando eu andava de calções, havia o São Luiz (que já tinha sido Theatro D. Amélia e Teatro República, até se fixar no título do visconde que era proprietário dele), havia o Tivoli, que nunca tinha sido nada antes, pois nascera para cinema em 1925; havia o Éden de Cassiano, grande novidade dos anos 30; havia o Politeama (que antes dos primeiros acordos, sempre malfadados, se chamava Polytheama) e também trocara vocação teatral por vocação cinematográfica; havia o Ginásio, ao pé do Trindade, outro convertido ao cinema e que, nos anos de que me ocupo, cheirava a nazi que tresandava; havia o Condes, o primeiro "grande cinema moderno" de Lisboa, inaugurado em 1917. Por ordem descendente eram as salas do tout Lisbonne quando o tout Lisbonne ia ao cinema. Depois havia o cinema de reprises, ou seja os que repunham os filmes das salas nobres para gente mais pobre, normalmente em programa duplo, quase sempre cinemas de bairro. Havia ainda algumas salas de estreia menos conceituadas como o Odéon, o Palácio (explorados pelo mesmo proprietário, tinham quase sempre a mesma programação), o Olympia, onde ia o maralhal ver as séries do Capitão Tormenta ou os primitivos super-homens, ou, último em data, o Capitólio, ilha cinematográfica entre os teatros do Parque Mayer, inaugurado em 1931.


Parque Mayer, bilheteira do cinema Capitólio 1961.



Conheceu duas plantas (Cristino da Silva) a primeira polivalente, a segunda já em exclusividade cinematográfica. Foi esta que eu conheci e, se as minhas fontes me não falham, assumiu plenamente essa vocação em 1946. Ano, aliás, em que no Capitólio se estreou uma das máximas obras-primas da história do cinema: Man Hunt de Fritz Lang.
Depois, já eu não andava de calções, inauguraram-se as grandes salas com milhares de lugares: o S. Jorge, o Monumental, o Império, em catadupa dos primeiros anos 50. Era o scope, era o VistaVision, eram os 70mm, com apoteose no super-écran do super-Monumental.

Entrada do Parque Mayer. 1961. 



Que reste-t"-il de nos amours? O Tivoli, Odéon e o Capitólio, há muito encerradas, a apodrecerem aos poucos ou aos muitos.
O Capitólio do "meu tempo" tinha duas novidades decorativas que deram brado: uma escada rolante, a primeira escada rolante que existiu em Portugal, e que, embora só rolasse a altura de um lance de escadas, era o gáudio dos indezes e o terror das sogras de meia-idade, que, ao chegarem lá acima ou cá abaixo, caíam nos braços da família, bradando em vernáculo "we made it"; uma esplanada no terraço para as noites de Verão, onde os monstros da lagoa negra evoluíam com o céu como limite. Havia quem levasse cobertores ou para não ter frio ou para conhecer melhores calores.

Interior do Parque Mayer, Barraca de petiscos e 
divertimentos, ant 1932. 2ª foto, Pavilhão de tiro ao alvo 194? 


Depois, o terraço fechou, a escada levou sumiço, com o 25 de Abril vieram as gargantas fundas, até que, nos anos 90, aquilo fechou de vez. Foi nessa altura (segunda metade deles) que a Cinemateca esteve mais perto de se abeirar do Capitólio. Em 1997 (era ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho, era presidente da câmara João Soares) a Cinemateca, termo de que aliás o inventor dele (Henri Langlois) não gostava, assumiu, até na letra da lei, a sua vocação de Museu do Cinema, como ainda hoje se continua a chamar. Como museus do cinema, Langlois sempre as concebera e quem ainda conheceu o espaço mágico que ele construiu e programou no Palais Chaillot, em Paris, (hoje, infelizmente, ido com o vento) percebe donde ele queria partir e onde ele queria chegar. Um espaço expositivo que traçasse a história da grande arte das luzes e das sombras, desde o século XVI (ou antes) até hoje e ao que depois de hoje vier. E todos os caminhos iam dar a Roma, sendo Roma a grande sala de cinema onde se expõem os filmes.


Panorâmica do Parque Mayer, tirada do nº 5 da rua do Salitre. Sem data. 



Aprovada a concepção teórica, em Portugal 97 como já disse, faltava cumprir a finalidade última dela: ou seja, transformar o Museu virtual que a Cinemateca hoje já é (após a remodelação dos seus edifícios em 2003 e a conversão do antigo Salão Foz na Cinemateca Júnior, faz hoje precisamente um ano) num Museu do Cinema "real", se é que a realidade se casa com sombras e luzes, como há quem diga que sim e como há quem diga que não.
E assim ressurgiu, nas tais boas intenções de que o inferno está cheio, a ideia de estabelecer um percurso coerente, geminando a moradia da Barata Salgueiro ao Capitólio. Manuel Maria Carrilho chegou a anunciar publicamente que assim ia acontecer, em 1999, quando o destino do Parque Mayer passou para as bocas do mundo.

Parque Mayer, entrada lateral do teatro Variedades e entrada do Pavilhão Português. 1961. 

Depois veio Pedro Santana Lopes (para a Câmara) e, no auge da polémica, chegou a bradar um dia, num debate televisivo, que o seu vasto projecto culminava com a transformação do Capitólio em Museu de Cinema, sob a minha orientação, calando com esse argumento ad hominem um atónito Eduardo Prado Coelho. Ainda me convidou para um jantar com Frank Gehry (era o tempo dele) mas sinceramente não fiquei com a impressão que a ideia do museu fosse a que mais entusiasmava o arquitecto, que obviamente não morria de amores pelo que restava do Capitólio e se propunha até - se bem o entendi -demoli-lo e construir-lhe um replicante com outra orientação. Depois, tudo teve o destino que se sabe: Santana Lopes, o projecto Gehry, a própria recuperação do Parque Mayer.

Parque Mayer, interior. Sem data. 

Leio agora - e foi essa leitura que me despertou para um memorialismo menos desinteressado do que é costume - que está constituído um júri, ou coisa que o valha, presidido por Nuno Teotónio Pereira, para apreciar novas ideias e novas finalidades para um Capitólio a que se quer voltar a dar a traça primitiva de Cristino (Deus os ouça, que eu só acredito quando vir).
Cinema? Com o que por aí vai de aflições, ("oh meu amor, antes fosses ceguinha!"), não auguro um futuro muito brilhante. Basta olhar, quase ao lado, para a visão melancólica do cabisbaixo S. Jorge, a abrir em dias pares e a fechar em dias ímpares, ao sabor de eventos que por lá ficam a boiar.

Parque Mayer, interior. Sem data. 

Teatro? Se o que se diz é que nem os teatros vizinhos vão subsistir, de tal modo morreu o género que lhes dava vida, também não me parece sorte desejável. Além do que, seria uma curiosa ironia da história, ver o edifício que no Parque Mayer foi cinema insular, transformar-se no teatro insular dele. Museu do Teatro? Ao que sei, o que existe está bem e recomenda-se e também seria historicamente contra-natura naquele espaço povoado por tantos fantasmas cinéfilos.
Porque não - por uma vez - considerar o que um museu do cinema (pense-se, por exemplo, no que o museu de Turim trouxe à cidade no espaço recuperado da Mole Antonelliana) podia significar num lugar com tal história e tão confinado à Cinemateca.
Sou suspeito? Claríssimo, mas não sou suspeito do costume. Do que se trata seria mesmo de uma enorme inovação nos nossos costumes, quer na recuperação da memória quer na projecção dela para o futuro. As escadas já rolaram uma vez, quando ainda nenhumas outras rolavam em Lisboa. Porque não fazê-las rolar de novo, no fecho de uma abóbada?



Teatro Maria Vitória no Parque Mayer 1943. É o único que continua a funcionar.
citizengrave.blogspot.pt

Parque Mayer: história dos 80 anos da Broadway portuguesa*




Criado no início dos «loucos anos 20» com a ambição de ser um pólo teatral, o Parque Mayer impôs-se como centro do teatro de revista e feira popular moderna, sobreviveu à censura de Salazar e Caetano, à rádio e ao cinema, ao futebol, à partidarite da revolução, à televisão e às telenovelas. É um «sempre-em-pé», embora tenha atravessado várias crises. Fixou-se no imaginário nacional como a «catedral da revista», uma Broadway à portuguesa. A suposta decadência não evitou a gula disfarçada de propostas de remodelação urbanística, em crescendo desde finais dos anos 60. Uma boa ocasião para revisitar este palco maior, os seus fazedores, os seus espectáculos, o seu público, as propostas de remodelação.
Origens
Em 1920, por ocasião duma partilha familiar, o Palácio Mayer foi comprado por Artur Brandão, juntamente com os seus anexos e parque. Este, por sua vez, vendeu-o a Luís Galhardo, tendo-se então constituído a sociedade Avenida Parque Lda. (28/V e 30/XI/1921). Galhardo, figura consagrada do meio teatral, estava interessado em criar um novo local de espectáculos. Àquele associou-se um conjunto de homens de negócios. Para tal constituiu-se a Sociedade Avenida Parque (11/II/1922 e 19/VII/1924), com 10 sócios, destacando-se Elias Azacot, Carlos Borges, Hipácio de Brion e Alberto Pinto Gouveia. Este último iniciaria em 1928 uma liderança familiar (embora partilhada), que prosseguiria com o seu filho Campos Figueira, o seu neto homónimo e o seu bisneto Artur Gouveia (actual responsável da sociedade sucessora, a Avenida Parque, SA).
Este espaço já detinha uma aura lúdica e boémia, pois alojara o Club Mayer, um clube nocturno de recreio e jogo, durante 1918-1920. No entanto, a nova sociedade concentrou-se no Parque Mayer, tendo vendido o palacete, que se tornou no Consulado Geral de Espanha, em 1930.
O Parque Mayer foi inaugurado em 15/VI/1922, substituindo e incorporando a função lúdica da Feira de Agosto (criada em 1908, na Rotunda), uma das últimas «feiras típicas» da capital, com petiscos, comércio e diversões. Inicialmente apresentou-se em instalações precárias de madeira («barracas»), mas situava-se numa zona mais central e frequentada [1]. Nos primeiros anos o recinto designou-se por Avenida Parque, mas o nome antigo acabaria por impor-se correntemente. Com o tempo transformar-se-ia num moderno e popular recinto de diversões ao ar livre, pretendendo emular o que se fazia em Paris (Luna-Park, Magic-City), Madrid (Retiro), Barcelona (Grande Parque), Sevilha, etc. (cf. O Notícias Ilustrado, 5/VIII/1928 e 13/IV/1930, respectivamente p. 19 e 10/11). Mais tarde esta componente seria ampliada e aperfeiçoada pela Feira Popular de Lisboa (1943). Entre as diversões que passaram no Parque Mayer destacam-se as «barracas de tiros», os bailes (de fim-de-semana, ou do Carnaval), os circos Royal, El Dorado e Luftman, as «barracas» do «Pôrto em Lisboa» (miniatura animada da Ribeira) ou de «fenómenos» como a «mulher transparente» e a «mulher-sereia» e as pulgas amestradas, o labirinto e a roleta diabólica, a laranjinha, as «variedades», o jogo do quino, o jogo clandestino (para os mais aventureiros), os carrosséis e os fantoches, o Pavilhão Infantil, os «carrinhos de choque», a patinagem, os combates de boxe, a luta greco-romana e a luta livre [2].

Capacidade de atracção
O Avenida Parque conseguiu impor-se não só como espaço de diversão mas também de convívio– este derivado da profusão de estabelecimentos para todos os gostos que o marcariam desde o início, desde cafés, retiros, tasquinhas, casas de pasto e de fados, restaurantes, bares, dancings,cabarets, etc.. Tal combinação concederia a este espaço uma redobrada capacidade de atracção. Além disso, demonstrou um grande dinamismo inicial, ao diversificar e renovar o tipo de espectáculos oferecidos. Por lá passou o jazz, com astroupes e as jazz-bands. Por lá ecoou a música ligeira, por iniciativa dos seus restaurantes e/ou cabarets e/ou dancings. Por lá se cantou o fado, no retiro de e com Armandinho e Georgino de Sousa, acompanhando à guitarra e viola (respectivamente) o «fabuloso» Alfredo Marceneiro e revelando Maria Emília Alta, além de Joaquim Campos e Júlio Proença (ambos no Colete Encarnado) e Mariema (no Dominó). Nele granjeou grande popularidade a actuação regular da fadista Hermínia Silva na revista (tendo cantado ainda na Esplanada Egípcia e no Valente das Farturas). Também Amália Rodrigues aí conheceu o maestro Frederico Valério, na revista «Essa é que é essa» (Teatro Maria Vitória, 1942), o qual lhe escreveria o «Fado do ciúme» e «Sabe-se lá», marcando-lhe assim a carreira. Por lá se vibrou com noites de samba, no restaurante-bar Dominó (de Maria Luísa Barbosa e do músico brasileiro Nestor Campos), onde Nicolau Breyner cantou «Como é bom amar em Itapoan» e Raul Solnado contou anedotas. Lá foram inventadas as «marchas populares», uma década após a sua abertura, segundo uma ideia de Leitão de Barros para animar o recinto e que tiveram um êxito fulgurante, tendo sido repetidas uma quinzena depois [3]. Lá foi recriado o antigo carnaval luso, com «danças de luta» e «cegadas» (cf.O Notícias Ilustrado, 19/III/1933, p. 9). Por fim, e acima de tudo, por lá passou e continua a passar o teatro, a grande singularidade do Parque Mayer relativamente às «feiras populares» convencionais.

Os teatros
Assim, uma quinzena após a abertura ao público do Parque Mayer, foi inaugurado o Teatro Maria Vitória, com a revista «Lua nova». Consumido por um incêndio em 10/V/1986, seria reconstruído, tendo reaberto com uma nova revista a 2/II/1990. Seguiu-se-lhe o Teatro Variedades, estreado com a revista «Pó de arroz», em 8/VII/1926. Este fora idealizado por Galhardo já em 1922 e começou a ser construído em 1924, com risco de Urbano de Castro, sob o antigo lago dos Jardins Mayer. Pouco depois, foi a vez do Capitólio, inaugurado em 31/VII/1931, da autoria do arquitecto Luís Cristino da Silva, o mesmo que desenharia o pórtico de entrada. Este recinto modernista, sucessor da Esplanada Egípcia e inicialmente utilizado como salão de música e «variedades», exibiu cinema e teatro, à maneira dos coevos «cine-teatros». Foi classificado como «imóvel de interesse público» pelo decreto-lei n.º 8/83 (de 24/I/1983). Em 1937 surgiu o Teatro Recreio, com a revista «Faça sol». Esta casa de espectáculos, criada por Giuseppe Bastos e vizinha do restaurante Gato Preto, foi extinta em 1940, para dar lugar a um rinque de boxe. O Teatro ABC foi o último recinto a ser franqueado, em 1955, com a revista «Haja saúde». No seu terreno precedera-o uma série de restaurantes-bares e/ou casas de espectáculo: Alhambra, Galo de Ouro, Baía e Casablanca. Encerrou em 1995. Pontualmente, serviram de palco teatral o Pavilhão Variedades (revista «Amor perfeito», em 1924) e a Esplanada Egípcia (por exemplo com a revista «Off-side», em 1929) [4].

A «catedral da revista»
Para se tornar o centro da «revista à portuguesa» o Parque Mayer teve que concentrar-se quase exclusivamente neste género teatral. Não obstante, também nele se exibiram operetas, comédias e cinema. Acolheu ainda a Companhia Amélia Rey Colaço, após o incêndio no Teatro Nacional D. Maria II. Além de ter sobrevivido ao cinema que inundava a baixa lisboeta nos anos 30-70, conseguiu mesmo absorvê-lo, tendo o Capitólio imperado no circuito dos filmes pornográficos no pós-revolução (aí pôde ser visto o célebreGarganta funda, por exemplo). Como recorda Negrão, também o saudoso Pavilhão Português exibira muitas fitas velhas, “a preços baratos, em noites cálidas de Verão” (cf.op. cit., p. 12).
O título de «catedral da revista» foi uma conquista progressiva. Na década inicial, o Parque Mayer abarcou menos de 1/5 das revistas produzidas no país (contabilizando a partir de 1922). Nas décadas seguintes foi paulatinamente consolidando a sua influência até atingir uma supremacia absoluta: 41% nos anos 30, quase 50% nos anos 40, cerca de 62% nos anos 50 e cerca de 85% nos anos 60. Esta ascensão foi conseguida sobretudo à custa da redução gradual do número total de revistas produzidas, inversão essa registada durante o período da II Guerra Mundial (107, 156, 79, 71 e 66 peças, respectivamente anos 20 a 60). Depois da revolução o Parque Mayer perdeu o gás: 61% das revistas nos anos 70, cerca de 36% nos anos 80 e cerca de 29% nos anos 90. Nos últimos anos, desde 1994, ensaiou uma tímida recuperação. Por exemplo, na década actual cabem-lhe mais de metade das revistas (embora estejamos perante números baixos: 4 em 7). O Parque Mayer foi responsável por 304 das 651 revistas produzidas entre 1922 e 2002, ou seja quase metade do total (cerca de 47%)[5]. Daí que o seu contributo para a revista, e para o teatro em geral, seja relevante.
A menor quantidade de revistas em palco desde 1994/95 (abaixo da meia dúzia) não significa apenas uma redução da oferta, mas também que, na actualidade, cada espectáculo tem que estar mais tempo em cartaz. Estamos longe dos tempos em que as peças surgiam em catadupa, como nos anos 40 no Maria Vitória ou nos anos 60 no ABC (com 29 e 25 revistas, respectivamente). Estamos ainda mais distantes da época em que uma peça durou apenas uma semana no Maria Vitória (anos 30), como relata Negrão (op. cit., p. 76). O mesmo autor afiança ainda que a partir dos anos 70 cada revista passou a ter uma carreira mínima de 3 meses (cf. ibidem).




* Este texto, da autoria do Dr. Daniel Melo, (historiador, investigador associado sénior do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; daniel.melo@ics.ul.pt), foi originalmente publicado na revista História, Lisboa, História – Publicações e Conteúdos Multimédia, ano XXV, III série, n.º 54, Março de 2003, p. 44-50. Não foi actualizado desde essa data, dai se manter a referência aos 80 anos no título (na realidade, o Parque Mayer tem actualmente 84 anos).
[1] Para este historial cf. Norberto Araújo, Peregrinações em Lisboa, Lisboa, Parceria António Maria Pereira , [1939], vol. XIV, p. 33-39, e Mário Costa, Feiras e divertimentos populares de Lisboa, Lisboa, [Oficinas Gráficas da CML], 1950, p. 237-241.
[2] Cf. Albano Zink Negrão, O Parque Mayer, sem local de edição, [Tip. Anuário Comercial de Portugal], depósito legal 1972; Diário de Lisboa, 13/VI/1922, p. 2; Carlos Queirós, “Uma noite no Parque Mayer”, Ilustração, 15/IX/1931, p. 33-35;Diário de Notícias, 11/III/1943, p. 4; Luiz Pacheco, “Esse fantástico Parque Mayer”, Diário Popular?, [198?].
[3] A este propósito veja-se Daniel Melo , Salazarismo e cultura popular (1933-1958), Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2001.
[4] Veja-se Araújo, op. cit., p. 36; José Manuel Fernandes , “Dar cabo do Capitólio”, Expresso, 11/I/2003, p. 32-Actual; Negrão, op. cit., p. 12, 45/46 e 95; Pedro Bandeira et. al., Off-side, Lisboa, Imprensa Belesa, 1929; Luís Francisco Rebello, História do teatro de revista em Portugal, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1985, vol. II, p. 295.
[5] Fontes: Rebello, op. cit., p. 295-314; Negrão, op. cit., p. 45/46; Lauro António, José Viana, Oeiras, Câmara Municipal de Oeiras, 1997; Maria Santos, “A catedral da revista”, O Independente, 30/IV/1998, p. 9-10 (sup.º «Lisboa Tejo e Tudo»; SPA, Revistas desde 1984, sem data, 9 fs., policopiado.

Motivos do Êxito
Para o êxito do Parque Mayer contribuiu decisivamente a qualidade dos seus agentes, entre actores, autores, músicos, coreógrafos, cenógrafos, guarda-roupas e empresários. O seu teatro de revista conseguiu cativar ao mesmo tempo alguns dos mais brilhantes e mais populares actores do teatro luso: Nascimento Fernandes, Palmira Bastos, Adelina Abranches, Maria Matos , Alves da Cunha, Silvestre Alegrim, Teresa Gomes, Luísa Satanela, Amarante, Vasco Santana, Maria Lalande, Armando Machado, João Perry (pai), Carlos Leal, Villaret, António Silva, Costinha, Henrique Santana, Beatriz Costa, Mirita Casimiro, Hermínia Silva, Laura Alves, Irene Isidro, Humberto Madeira , Ribeirinho, Eugénio Salvador, José Viana, Raul Solnado, Ivone Silva, Camilo de Oliveira, Nicolau Breyner, etc.. A esta galeria já poderíamos juntar os ‘novíssimos’ Marina Mota, Carlos Cunha , Fernando Mendes, Rosa do Canto, Maria João Abreu, João Raposo , etc., os quais conseguiram relançar a «revista à portuguesa» e a comédia dentro e fora de portas.
Entre os autores dos textos ficaram célebres algumas parelhas, o modo de criação dominante na revista: nos anos 30 predominaram as de José Galhardo/ Alberto Barbosa/ Vasco Santana e de Almeida Amaral/ Lino Ferreira/ Fernando Santos; nos anos 40/50 consagrou-se a de Nélson de Barros/ Aníbal Nazaré/Ascesão Barbosa; nos anos 60 irrompeu a de Paulo da Fonseca/ César de Oliveira/ Rogério Bracinha, ligada à afirmação do ABC e co-responsável pela flexibilização da estrutura clássica do género, eliminando a figura do compére clássico, autonomizando as sequências e tornando o texto mais ágil. Outros autores são de mencionar, ligados a estas ou a outras parcerias, pois a fluidez é a regra: Félix Bermudes, Xavier de Magalhães, Silva Tavares, Eugénio Salvador, Henrique Santana, Augusto Fraga, José Viana, Francisco Nicholson, Gonçalves Preto, Mário Alberto, Ary dos Santos, Mário Raínho, etc..
A vitalidade da revista deveu muito ao contributo de talentosos compositores como Raul Ferrão, Frederico de Freitas, Raul Portela e Frederico Valério, etc., de coreógrafos como Satanela, Rosa Mateus, Francis, Piero Bernardon e Eugénio Salvador, além duma extensa galeria de cançonetistas.
Relativamente aos cenógrafos pontificaram nomes como José Barbosa, Maria Adelaide Lima Cruz, António Amorim, Armando Barros, Pinto de Campos, Velez Lima e Mário Alberto, este último ainda em actividade (veja-se o texto anexo “Mário Alberto, a alma do Parque Mayer”). A este propósito refira-se que foi o teatro de revista que tomou a dianteira na renovação modernista da cenografia (iniciada com J. Barbosa na peça «Água-pé», 1927). Ainda quanto aos adereços, granjeou fama a Casa Paiva, cujo responsável homónimo se fez enquanto gerente do guarda-roupa do empresário Luís Galhardo, desde o início no Parque Mayer e actualmente com mais de 30 mil fatos para alugar (muito requisitado para festas de Carnaval e Natal).




Finalmente, é de destacar o papel de empresários dinâmicos como Vasco Morgado (Capitólio e Variedades), o italiano Piero Bernardon (Variedades), Eugénio Salvador (um dos responsáveis pela revitalização do género), José Miguel e Carlos Santos (ambos no ABC, tendo o primeiro suportado o risco inicial e lançado talentos como Ivone Silva), Giuseppe Bastos (Maria Vitória e Capitólio) e Helder Freire Costa (à frente do Maria Vitória desde 1975). Também Humberto Madeira , Solnado e Carlos Coelho exploraram o Capitólio em 1960/61.

Público citadino, burguês e popular

Mas o Parque Mayer foi também os seus públicos, pequeno-burguês, popular, culto, lisboeta, boémio, turístico, etc.. Os principais estudiosos inclinam-se para que o público dos espectáculos fosse essencialmente burguês citadino, sobretudo pequeno-burguês [1]. Um inquérito sociológico de 1987/88 ao ABC de certo modo confirma-o, ao revelar uma predominância deste estrato bem como das classes médias e uma fraca presença do operariado, embora avançando uma composição interclassista [2]. A maioria tem o curso geral liceal, ou seja, uma habilitação superior à media nacional. O mesmo estudo indica também uma parcela relevante de espectadores idosos, apesar da sua grande dispersão etária. Para mais de metade deste público, a ida à revista faz parte dum programa que incluirá ainda mais diversão (fados, Casino Estoril, «variedades») ou convívio (marisqueira). Cerca dum terço vai em grupo e 1/5 vem de longe, o que confirma a ideia corrente das excursões de fim-de-semana ao Parque Mayer. Mas os seus frequentadores extravasam o teatro (ainda hoje há restaurantes abertos). O público em geral contribuíu, sobretudo no passado, para lhe conferir um ambiente mais popular, juntando o pessoal da noite, do bas-fond, as gentes remediadas e as abastadas na busca de diversão e convívio, os artistas e trabalhadores dos espectáculos, os intelectuais e jornalistas, etc.. Num passado ainda recente, o Parque Mayer era passagem obrigatória para qualquer português vindo da província e à procura de diversão. Tudo isto ajudou a consolidar uma áurea simultaneamente boémia e turística (mais informação sobre o teatro de revista no texto anexo “A revista como crónica da vida portuguesa”).
As 11 propostas para o Parque Mayer
A primeira proposta de remodelação do Parque Mayer surgiu por volta de 1940 e preconizava o prolongamento do Jardim Botânico à entrada da Avenida da Liberdade. Essa posição, defendida por estudiosos como Gustavo Matos Sequeira e Olavo d’Eça Leal, recuperava a ideia que um movimento de opinião pública avançara em 1900 para contestar a construção do Palácio Mayer. Tal proposta– que ia ao encontro do sonho dum «pulmão de Lisboa», do escritor Fialho de Almeida– visava dotar o Jardim Botânico de mais área e maior usufruto pelos cidadãos, pois ficaria com duas entradas, uma no centro e outra com acesso à Faculdade de Ciências de Lisboa. Do Parque Mayer apenas seria preservado o Capitólio. Após a II Guerra Mundial esta ideia seria novamente recuperada, desta feita pela Faculdade de Ciências, para aí poder instalar um Museu de História Natural do Império, pois libertaria espaço das suas sobrelotadas instalações para salas de aula (cf. Diário Popular, 26/IV/1947, p. 1 e 4). Esta extensão seria salvaguardada por legislação publicada em 1962 (cf. Diário Popular, 30/XII/1971, p. 1 e 9). Esta proposta tem sido recuperada e defendida por vários peritos nos últimos anos, e a expectativa é grande quanto à sua inclusão no projecto definitivo de recuperação do Parque Mayer que está em curso.
A partir de finais dos anos 60, sucedem-se as propostas, todas visando ‘salvar’ o Parque Mayer através de intervenções imobiliárias. A primeira deste grupo surge com os projectos de 1969/70 do arquitecto Carlos Ramos (autor do Hotel Madeira Hilton) centrados na edificação de hotéis (patrocínio da Sociedade Avenida Parque, dos proprietários dos teatros e da companhia Hilton). Ao esboço inicial para um hotel Hilton sucederia um «anteprojecto» já com 2 hotéis (e quase 800 quartos), com os teatros transferidos para o subsolo, ligação subterrânea a S. Bento e à Praça Martim Moniz, entre outras maravilhas. Este projecto megalómano recebeu parecer favorável da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e apenas foi travado pelo parecer negativo da Junta Nacional da Educação, em 1971, por pressão do Jardim Botânico, ambos dependentes do Ministério da Educação Nacional (cf. Tempo, 22/III/1990, p. 20/21).




Pouco depois seria a vez do projecto da CML e do arquitecto Vieira de Almeida para a Avenida da Liberdade e zonas adjacentes (1972/73). Este «estudo» pretendia organizar a evolução urbanística e limitar a volumetria das novas edificações, como prevenção dos apetites especulativos (cf. ibidem).
No seu último mandato, Krus Abecasis criaria um grupo de trabalho para o estudo conjunto da remodelação do Parque Mayer, incluíndo representantes da CML, do Instituto Português do Património Cultural, do Jardim Botânico e da Sociedade Avenida Parque (1985-89). Porém, este grupo de trabalho nunca seria convocado pelo presidente da edilidade (cf. ibidem).
A proprietária do Parque Mayer, agora Avenida Parque SA, voltaria a terreiro, por volta de 1992, com um projecto do arquitecto Arsénio Cordeiro. Este projecto previa habitação, escritórios (2 mil m2), galerias comerciais, restaurantes, 8 salas de cinema (ou 6, mais 2 salas de teatro), a demolição do Variedades e a preservação dos recintos do Maria Vitória, do Capitólio e do ABC. A proposta encalhou, alegadamente por desentendimentos com os artistas e os proprietários dos teatros. Aqueles, representados pelo Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, pretendiam a “recuperação cultural do recinto, em detrimento dos planos de rentabilização imobiliária” (cf. Público, 13/XII/1995, p. 59).
Paralelamente, por essa altura era divulgado o Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade e Zona Envolvente, da CML e dos arquitectos Fernandes de Sá e Francisco Barata. O plano, que contemplava 26 propostas, salvaguardava o Café dos Artistas, o Capitólio e o pórtico de entrada, acrescentando restaurantes, um museu-biblioteca do teatro de revista, uma casa da música, um anfiteatro ao ar livre, escritórios e 1 hotel (cf. A Capital, 15/I/1993, p. 12).
No sentido de conciliar as partes, foi elaborada uma proposta conjunta da CML e da Avenida Parque SA em 1993, prevendo só 15% da área total para escritórios e a mesma salvaguarda de recintos prevista no Plano da CML. Como novidade face a este Plano, surgem os ateliers para artistas, as discotecas e as lojas. Mais uma vez, alguns artistas estavam desagradados, pois queriam manter o Variedades (cf. O Independente, 12/III/1993, p. 43).




Por volta de 1998, o ex-embaixador norte-americano Frank Carlucci apresenta uma proposta de misto de lazer, comércio e habitação, que a Avenida Parque SA recusa. Esta encontrava-se então associada ao Hotel Lisboa Plaza, e tinha interesse em ligar-se ao Casino Estoril, propriedade da STDM- Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, do empresário Stanley Ho (cf. Expresso, 6/VI/1998, p. 6-Cartaz).
No ano seguinte, o presidente da CML João Soares convida o arquitecto Norman Foster para um novo projecto de remodelação do espaço, impondo este nome à Bragaparques, nova proprietária do Parque Mayer. Foster apresentará 4 projectos, contemplando os 2 primeiros um edifício-torre de 20 andares (para escritórios e habitação), prevendo-se ainda um museu, teatros, cinemas, cafés e ginásios. As opções 2 e 3 detinham 79 e 54 mil m2, respectivamente (cf. Expresso, 28/XII/2002, p. 8-Cartaz).
inalmente, temos a encomenda do presidente da CML Santana Lopes ao arquitecto Frank Gerhy para um eventual derradeiro projecto, o qual determinará a hipótese de integração dum casino (a gerir pela STDM), estando ainda previstas a salvaguarda do Capitólio e da oferta teatral. O projecto será apresentado em 2005 e a reabilitação concluída dentro de 5 anos (cf. Público, 21/I/2003, p. 1 e 45).
* Este texto, da autoria do Dr. Daniel Melo, (historiador, investigador associado sénior do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; daniel.melo@ics.ul.pt), foi originalmente publicado na revista História, Lisboa, História – Publicações e Conteúdos Multimédia, ano XXV, III série, n.º 54, Março de 2003, p. 44-50. Não foi actualizado desde essa data
[1] Cf. Vítor Pavão dos Santos, A revista à portuguesa, Lisboa, O Jornal, 1978; Arnaldo Saraiva, Literatura marginal izada, Porto, Eds. Árvore, 1980, p. 37-62; Rebello, op. cit..
[2] Cf. Paulo Filipe Monteiro, “Os públicos dos teatros de Lisboa: primeiras hipóteses”, Análise Social, vol. XXIX, n.º 129, 1994 (5.º), p. 1229-1244.
Mário Alberto, a Alma do Parque Mayer*
Artista polifacetado– figurante, bailarino, maquetista, pintor, caricaturista, figurinista, cenógrafo premiado, co-autor de revistas e tudo–, Mário Alberto conhece o Parque Mayer desde que iniciou a sua carreira nas artes. Nascido no Lubango (Angola) em 1925, veio de Coimbra para a capital aos 17 anos, em plena II Guerra Mundial. A impressão que então lhe causou o Parque Mayer, leva-o a entrar no mundo do teatro, como figurante, embora só mais tarde nele ingresse profissionalmente. Começou a trabalhar para a «catedral da revista» com cartazes para o Capitólio, depois foi ajudante do cenógrafo Pinto de Campos, e desde 1970 que é um dos seus cenógrafos mais relevantes, além de co-autor de várias revistas do ABC (por exemplo «É o fim da macacada», «P’rò menino e p’rà menina», «Tudo a nu»). Montou um atelier no Parque Mayer em 1970, e aí fixou residência 2 anos depois, até hoje. Boémio inveterado, participou em inúmeras tertúlias nos seus restaurantes, tendo animado um grupo de convívio que incluía Pinto de Campos, Luiz Pacheco e os irmãos Lima (Manuel e Velez), entre outros. Por tudo isto, é hoje a alma do Parque Mayer.
Ultimamente tem-se dedicado sobretudo à pintura, a sua paixão íntima. Beatriz Costa deu-lhe um grande apoio nos anos 50, ao conceder-lhe uma bolsa de estudo para uma estadia em Paris. Aí frequentou a Academia La Grand Chaumiére (com os professores Yves Brayer e Henry Goetz) e privou com os pintores Vieira da Silva e Arpad Szenes. No ano passado comemorou os 60 anos de carreira artística com um livro antológico, o IVAngelho II Mário Alberto [1].
Considera-se comunista, embora seja da ‘variante’ anarquista, por ser demasiado irreverente, daí lhe advindo a convicção de que «isto só lá vai à bomba» (frase que faz circular em postais iconoclastas anti-católicos). Com o horizonte de demolição a pairar ameaçadoramente sob o seu cantinho, é caso para dizer: e não é que vai mesmo?
A revista como crónica da vida portuguesa*
A «revista à portuguesa» foi o género teatral com mais crítica social e política no país, embora tenha sido muito vigiada durante a ditadura. A vida política nacional está ilustrada nas peças que passaram no Parque Mayer: «Ás de espadas» (Maria Vitória, 1926) anuncia a ditadura militar; «Alto lá com o charuto!» (Variedades, 1945), com o título aludindo a Churchill, apresenta a Harmonia (Mirita Casimiro) tentando conciliar a Filarmónica Democrática (Vasco Santana, leia-se MUD- Movimento de Unidade Democrática, frente anti-salazarista do pós-II Guerra Mundial) e a União Musical (Carlos Baptista, leia-se UN, o partido único do salazarismo); «Ena, já fala» (ABC, 1969) refere-se à abertura marcelista dos primeiros tempos; «Uma no cravo, outra na ditadura» (ABC, 1974) exorciza a ditadura e seus títeres (Salazar, Caetano, a censura e a Igreja), mas também a revolução e alguns dos seus excessos; «Direita, volver!» (1978, ABC) remete para a viragem política à direita. Ainda durante a ditadura a alusão ao ditador era feita por interposta persona, designadamente por Santo António. Certos títulos de revistas denunciavam o seu apego ao poder: «Sempre em pé» (Variedades, 1938), «O melhor do mundo» (Variedades, 1948), «E viva o velho!» (Maria Vitória, 1965).
Mas a revista foi essencialmente uma crítica de costumes, muito assente em estereótipos sociais, como os saloios (no duplo sentido) de visita à capital, os encontros de sopeiras e magalas, de bêbados e galdérias, de fadistas e rufias, etc.. Para além dos trocadilhos de base sexual e das referências machistas, os temas recorrentes foram as obras camarárias, o cinema nacional, os transportes colectivos, o futebol, a carestia de vida, o fado, as touradas, as sogras, os modismos, os programas da RTP, etc. (cf. Santos, op. cit., e Rebello, op. cit.).
Estas facetas imprimiam actualidade às peças e, simultaneamente, permitiam o riso, a sátira, a crítica, e, em menor grau, o conhecimento.





* Estes dois textos, da autoria do Dr. Daniel Melo, (historiador, investigador associado sénior do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; daniel.melo@ics.ul.pt), foram originalmente publicados na revistaHistória, Lisboa, História – Publicações e Conteúdos Multimédia, ano XXV, III série, n.º 54, Março de 2003, p. 44-50. Não foram actualizados desde essa data
[1] “É um artista português”, assim se intitula a recensão crítica que dediquei a este livro de 2002, organizado por Viriato Teles, António Macêdo e Avelino Carmo. Esta recensão saiu na revista História, ano XXV, III série, n.º 56, Maio de 2003, p. 72-75.

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1 comentário:

José Gonçalves Cravinho disse...

Eu,um simples trabalhador e Lisboa desde 1946 até emigrar para a Holanda onde resido desde 1964,digo que fui uma ou duas vezes ao Teatro no Parque Mayer.Gostei de ler este apontamento histórico ácerca do Parque Mayer e a propósito do nome Mayer,só depois aqui na Holanda é que concluí que este nome é alemão ou holandês e que significa Ceifeiro e aqui na Holanda há muita gente com este apelido.