AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - 47ª PARTE - Um rei escondido atrás de um régulo - Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra Colonial

Um rei escondido atrás de um régulo



Por ironia de destino, vivi um pouco a era colonial até à altura da minha adolescência quando a Frelimo trouxe-nos a independência nacional. Na minha curta convivência com o sistema colonial e tendo nascido na zona rural nas bandas do distrito de Morrumbene, na província de Inhambane, pude acompanhar o facto de os régulos serem o prolongamento da governação colonial.

O régulo de salário não recebia avultados valores não, mas sim se beneficiava das taxas que cobrava das populações, dos trabalhos que as populações lhe prestavam nas suas machambas, dos tributos que recebia quando com os seus madodas resolviam conflitos entre as comunidades, dos tributos que os mineiros lhe davam cada vez que regressassem das minas, etc.
Presenciei jovens a fugirem das suas origens quando atingissem a idade para pagarem o imposto de reconstrução o chamado na minha zona de “KHUPO”. A caça ao homem era ferrenha para a cobrança dos impostos, casos havia em que as esposas escondiam os seus maridos para não serem localizados pelos indunas ou capatazes.

Pelo menos no meu distrito, era comum o régulo ter mais que uma esposa e obviamente muitos filhos e a sua casa normalmente ocupava uma vasta área, pois viviam folgadamente com as cobranças que faziam às populações.
Deixo aqui um episódio para elucidar uma das actuações dos régulos:
Os meus pais, possuíam uma área de cajueiros e nós tínhamos que trabalhar na apanha da castanha de caju. Nos nossos cajueiros, os indunas andavam a controlar se alguém colhia o fruto na árvore, pois a norma era deixar o fruto cair por si. Caso fosse surpreendido pelos indunas a colher o fruto na sua árvore, era levado ao régulo para trabalhar na sua machamba como castigo.
Também havia hora para a apanha de caju, se também fosse surpreendido a apanhar o caju antes da hora, a punição era a mesma referida no parágrafo anterior.
Bom, tudo o que acima narrei era apenas para ilustrar o meu “background” sobre o regulado, mas o propósito deste artigo, é de contar o que ouvi com o veterano da luta de libertação nacional, Marcelino dos Santos, quando no passado dia 5 de Abril deu palestra no Instituto Superior Politécnico de Gaza, no Chókwè, que a dado passo perguntou a audiência se sabia qual era o significado de RÉGULO?
Como não soubéssemos, ele explicou:
“Eu também não percebia qual era o significado dessa palavra, até que um dia fui ao dicionário português, sabem o que encontrei?”
Continuando disse:
“Encontrei que régulo, significava pequeno rei, isto porque os portugueses não queriam chamar de rei ao preto!”
Resultado: acabamos vendo o quão o colono era mau pois mesmo àqueles que o serviam cegamente não tinham o “direito” de usufruir do nome verdadeiro.
  • ANTÓNIO FRANCISCO SEFANE
macua.blogs.com

1


Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra Colonial


Margarida Calafate Ribeiro
Nesta secção apresentamos dois depoimentos de mulheres que viveram no cenário da Guerra Colonial de formas distintas. O primeiro depoimento, de Elsa Adler Gomes da Costa, refere a experiência de uma mulher portuguesa que, como muitas outras, acompanhou o marido em missão militar em África na Guerra Colonial; o segundo é da enfermeira-páraquedista Maria Ivone Reis, que integrou o primeiro grupo de Enfermeiras Páraquedistas da Força Aérea Portuguesa.
Esta recolha foi feita por Margarida Calafate Ribeiro no âmbito do trabalho de investigação que está a levar a cabo no Centro de Estudos Sociais sobre “As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial”. Apesar de este trabalho ter como grupo de estudo as mulheres que acompanharam os maridos em missão militar em África, assinalando assim esta presença feminina portuguesa, bem como o seu impacto privado e público, não poderíamos deixar de contemplar o grupo de mulheres portuguesas composto pelas enfermeiras pára-quedistas que, pelo seu trabalho, registaram uma experiência única na relação da mulher com a guerra.
Desta forma, pretendemos oferecer aos nossos leitores testemunhos de duas faces do envolvimento da mulher portuguesa em África durante os anos da Guerra Colonial, ora registando a sua presença, manifesta no acompanhamento familiar, ora a sua participação activa como membro das Forças Armadas Portuguesas no trabalho de recolha, evacuação e acompanhamento de feridos em combate.
Agradecemos a Elsa Adler Gomes da Costa e a Maria Ivone Reis a disponibilidade e generosidade com que colaboraram connosco.

Depoimento de Elsa Adler Gomes da Costa

2Comecei a ouvir falar na guerra quando estava ainda no liceu, teria quinze anos. Em casa dizia-se pouco – o meu Pai lia regularmente o Spiegel, às vezes o Match – mas era nítido que África seria para os negros. “L’Afrique pour les noirs”, era o slogan e seria essa a realidade do futuro mais tarde ou mais cedo. Chamar-lhe Portugal não iria adiantar nada, o que estávamos era a meter toda a gente numa grande complicação. Hoje fala-se muito de identidade, mas não creio que na altura ela existisse sequer em relação à Europa. Daquilo que em casa chamávamos a Europa, que viveu duas guerras e onde o meu Pai tinha crescido, nunca ouvi falar a outros portugueses. Creio que esta inocente ignorância nos ajudou a ir para a “nossa” guerra com grande simplicidade.
3A primeira referência à nossa ida como mulheres de, ouvi-a na Faculdade a uma colega que já vinha do liceu. Foi já para o fim do curso, a propósito do que iríamos fazer depois ou do nosso desencanto em ir ensinar. “Depois, ora, vamos todas para as Angolas”, disse ela. Aquilo caiu em mim como uma bomba. Nessa altura toda a gente tinha namoro. Não namorados nem amores (que também se tinham), mas fazia parte da vida “ter namoro”. Pelos vistos eram uma porta aberta de conhecimentos, os namoros.
4Uma outra amiga falou-me um dia dos que eventualmente pensavam em não ir. “Creio que, se ele tivesse uma mínima certeza de que eu ia com ele, iria para França e fugiria à tropa para não ir para a guerra”. Pagar o preço da expulsão, da distância de muitos anos fora, de uma certa excomunhão. E percebi que também esses existiam e teriam as suas razões. Só mais tarde percebi, embora não nitidamente, que haveria sempre uma mistura de razões – concepções políticas, convicções pessoais, medo, capacidade económica, influências várias, ligações profundas a outro país ou a partidos políticos na clandestinidade, motivações profissionais.
5Lembro-me também de uma outra conversa entre raparigas, na viagem de curso, e da referência ao “que eu sei que se portou como um valente, mas que se recusa obstinadamente a falar disso”. Era típico. E muito irritante. Mesmo coisa de “meninos bem”, portugueses. O arvorarem-se esse direito de superiormente se afastarem. Como se aquilo não os transcendesse e não dissesse respeito a todos nós. Os meus protestos de “não têm esse direito” esbarraram com a indignação do costume. Ainda hoje me sinto irritada. Era assim que se dispunham a mais tarde ir mandar nos outros.
6Mas isto eram conversas esporádicas, entre nós, que tínhamos eventualmente namorados em risco de serem mobilizados para África. De resto, não se falava da guerra. Por trás do liceu – andei no Maria Amália, na Rua Rodrigo da Fonseca – ao lado do prédio da Mocidade Portuguesa Feminina, era o Centro de Reabilitação dos (Mutilados) Militares. Mesmo vendo-os fisicamente passar, ninguém falava dissoÀ maneira portuguesa nós e todos, não falávamos da guerra, quanto mais de legitimidade. Quando muito dos mortos e da falta que à família fariam, dos estropiados, dos casamentos destruídos, das crianças sem pais. Mas era assim como se tivessem morrido num desastre de automóvel ou de inevitável doença contagiosa. Dizer simplesmente “que era por causa da guerra”, era visto por muita gente como provocação pouco educada ou mesmo como coisa escandalosa, assim como as amantes e os filhos ilegítimos das histórias velhas de família.
7Em casa eu era rapariga e filha única e também não se falava muito nisso. O meu pai já tinha estado na Primeira Guerra e o meu tio mais velho morreu nessa guerra. Falou-me uma vez dos que vinham estropiados, dos que vinham e às vezes se recusavam até a contactar a família, de pudor e de sofrimento. Quando lhe disse: “eu vou-me embora para África”, ou “talvez vá para o mês que vem”, ele disse, com muita doçura: ”Ó filha, tu não vês que não podes ir!”. Ele sabia muito bem o que estava a dizer sob todos os pontos de vista, e eu disse: “ Pai, vai ver que eu vou e vai correr tudo bem. Eu posso ir e eu quero ir”. Nunca mais dissemos nada. Ele nunca mais disse nada. Não sei o que passou, deve ter sido horrível.
8Conheci o meu marido através de uma grande amiga minha, que hoje é neurologista, um génio da nossa praça. Tínhamos sido colegas de liceu e quando fui para a Faculdade dávamo-nos muito. Acabei por entrar no grupo dela e depois conheci o meu marido, que é mais velho do que nós dois anos. Fomos amigos durante muito tempo, só começámos namoro dois anos antes de casar. Não tínhamos pressa nenhuma, mas a tropa e a ideia da guerra faziam uma enorme pressão sobre os casamentos. Se as pessoas não se casavam antes, perdiam, não só a possibilidade de viver juntas durante os próximos três ou quatro anos – que era um tempo imenso – como não sabiam exactamente o que é que ia acontecer ao outro. Isto não gerava propriamente um grande pânico, mas decerto uma grande insegurança. Esta dose de insegurança, de incerteza de um namoro, pesava muito – adiou uns e apressou outros casamentos. Para mim não foi exactamente isso, dois anos de namoro chega e sobra. Depois punha-se também o problema da educação que nós tínhamos. Vivíamos numa sociedade que não nos educava para coisa nenhuma, especialmente para a vida sexual, para a vida matrimonial, para o planeamento familiar, muito menos, e aconteciam as coisas mais inauditas, as pessoas ficavam à espera de criança quase sem saber como nem porquê, outras porque eram desleixadas, outras porque não tinham cuidado, outras porque não tinham noção da quantidade de cuidados, da variedade de cuidados que era preciso ter, outras porque as circunstâncias eram de tal modo violentas, quer nos casamentos das férias, quer nas idas para África, que abalavam completamente toda e qualquer preparação e cuidados que se estivessem a ter – variadíssimas razões, umas mais indesculpáveis e mais terríveis do que as outras.
9Como é que eu fui para África, porque é que eu fui para África?
10“Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos...” Mas qual sonho? Aqui não há sonho. “Foi o vento”, dizem as anedotas. É engraçado que ontem abri asCartas, do Padre António Vieira e numa carta de 1562, escrita de Cabo Verde, ao Príncipe D. Teodósio, ele está a lamentar-se porque não sabe porque é que foi, porque até ao dia da partida não sabia se ia, nem por que é que ia, e eu pensei: “Que raio de Portugueses estes! Do Padre António Vieira ao mais anónimo soldadinho estamos todos na mesma. Não sabemos nem quando vamos, nem porque vamos, nem se vamos, nem porque não vamos!”. O Padre António Vieira não sabia se ia, porque lhe tinham dito que talvez não fosse e ele está a lamentar-se porque de facto foi. E foi porque não veio nenhuma contra‑ordem para não ir, tal como nós na altura da Guerra Colonial que estávamos aqui, até ao dia de embarcar, à espera que acontecesse um milagre, que viesse uma contra-ordem para não embarcarmos, mas como não vinha a ordem… lá íamos. Isto é uma coisa difícil de explicar ou aparentemente sem explicação, porque até nós próprios não fomos para a guerra para fazer guerra. É uma geração, que sem saber porquê, sem questionar, ia. Havia o sentido de fazer parte de um grupo e o grupo naquela altura … era suposto fazer aquilo e mais nada.

PAQUETE UIGE
11Mas esta “ida”, esta guerra, não começava quando a pessoa era chamada para ir para o mato, quando os soldados iam para os quartéis das regiões de conflito, essa guerra começava cá, cumpria-se cá e às vezes já muito mal. Talvez a nossa primeira guerra fosse interiormente contra o sistema militar. A certa altura, para mim, um militar de carreira era “meu inimigo”, não no sentido pessoal, conheci pessoas muito simpáticas, muito amáveis, muito honestas, muito boas, muito generosas, que eram militares, mas era uma espécie de doença terrível, devastadora da própria pessoa e que alterava completamente não só a humanidade dessa pessoa como a sua relação com os outros, que somos nós, os civis. Na época, havia uma distância intransponível entre um militar que estava na tropa por ter sido chamado (um miliciano) e um militar de carreira, e havia um enorme desprezo por todo e qualquer civil que pensasse, no fim da tropa, passar para o outro lado, para o campo do “inimigo” profissional – era uma guerra dentro da guerra ou talvez o contrário. Outra coisa que pairava durante esse ano era a terrível questão: ir ou não ir para África. Para ir não eram precisas razões, não era preciso pensar, tão‑só aguentar. Para não ir era preciso reflectir, escolher, decidir; e aguentar.
12O que é certo é que ainda hoje os homens dessa geração se dividem entre os que foram e os que não foram. A guerra funciona ainda hoje como um espaço à parte onde entusiasmadamente se encontram, se avaliam. É um mundo mágico e exclusivo, masculino, claro. E exasperante.
13Eu nunca tive contacto com uma pessoa que poderia querer não ir. As pessoas que não iam eram muito mal vistas, porque havia muitas dúvidas acerca das razões que as levavam a não ir e isso está ligado a outra coisa de que eu gostava de falar, que era do medo. O medo começava a insinuar-se na vida dos homens quando iam para a tropa cá, portanto, durante aquele ano, e ia fazendo a sua obra terrível. O medo é uma coisa horrível, com o seu sofrimento tão deformante, tão incontrolável, é uma coisa que não se pode evitar, que temos que deixar habitar em nós e não sabemos do seu poder devastador – ninguém sabe. Essas atitudes de fuga à guerra estavam, para qualquer mortal, directamente ligadas ao medo. Percebia-se muito bem que não havia uma única razão para ir ou para não ir, havia muitas. Garantia-se sempre uma larga margem de dúvida em relação às verdadeiras e fundamentais razões que levavam a não ir: era mais medo ou era mais coragem de não irem; era mais capacidade monetária de se irem embora ou era mais capacidade de aventura de se irem embora; era mais adolescente capacidade de rebeldia em relação à família e em relação ao país, como atitude social, ou era, de facto, a vontade amadurecida e a capacidade de escolher. Havia de facto muitas dúvidas e as dúvidas negativas eram maiores do que as dúvidas positivas e isso agudizava-se muito no regresso.
14Olhava-se para outra pessoa da nossa idade e pensava-se: ”Onde é que estiveste? O que estiveste a fazer durante estes três anos do meu inferno? Já lá foste? Porque não foste?”. Mais tarde essa situação mudou, muito mais tarde, e nos últimos dez anos há uma enorme abertura, um enorme respeito de uns pelos outros – dos que foram e dos que não foram. Neste momento, e à distância de trinta anos, olha-se para o outro com um certo respeito pela coragem que foi necessária para fazer o que fez, quer ir para África, quer ir para Paris. Olha-se com muito mais tolerância – foi uma espécie de outra guerra. É uma coisa recente, e importante, pois representa estarmos a entrar na fase madura. Mas entre aqueles que tinham ido gerava-se uma inocentíssima relação de pura fraternidade. Situações que contadas parecem ridículas. Lembro-me de estar parada para meter gasolina e o rapaz da bomba tinha umas botas da tropa. O meu marido, quando saiu para abrir o depósito, olhou para as botas e reconheceu o irmão, sabe como é? Olhou para as botas e também não é preciso dizer muito. Perguntou: “Onde é que esteve?” O outro respondeu com a mesma reserva e o mesmo sentido de fraternidade… e a conversa ficou por ali. Mas era uma coisa tão profunda, tão comovente, ao mesmo tempo, tão bonita – não parece, contada assim. Era o outro lado da medalha, era o lado positivo da desconfiança, da reserva, da raiva contra os que não tinham ido e da imensa pena dos que ainda lá estavam e dos que não sabiam para o que é que iam. Lembro-me de ir um dia de carro e à nossa frente ia um camião da tropa cheio de soldados. Não me pergunte porquê, mas nós sabíamos que eles se iam embora, daí a umas horas, daí a uns dias, e lembro-me dos acenos, dos beijos que eles nos atiravam e que nós lhes retribuíamos de carro para carro, como se fôssemos amigos, conhecidos, como se fôssemos pais e mães, irmãos – e não nos conhecíamos de lado nenhum. Isso são coisas que não se podem esquecer, por muito errada que tenha sido a nossa ida. Esta é a face humana, portuguesa, é a chamada face dos relatos de guerra que não têm importância nenhuma, senão para quem os viveu. Era deste tipo de coisas que o mundo dos militares estava definitivamente afastado, eles não entravam neste mundo, não tinham nada a ver, moviam-se no mundo deles, tão artificial, tão desumano, que eles próprios nem sabiam. Isto talvez não tenha muita importância, são pormenores, mas podem ajudar a olhar de outra maneira.
15O meu marido foi para Angola de barco, em Outubro de 1970, e eu fui dois meses depois. Essas partidas no cais eram um horror. Todos desfilavam no cais, antes de embarcarem. Ninguém tinha dormido, pelo menos na última noite, por causa da vinda para Lisboa, dos transportes e da ansiedade. No cais apinhavam-se as famílias. Os que podiam vinham de carro, famílias inteiras, às vezes, os pais, os irmãos pequenos, os primos, só na ânsia de os vislumbrar mais uma vez, de dar mais um abraço. O pior eram as recém-casadas, às vezes de dias, de semanas, às vezes já grávidas, chegavam a desmaiar de cansaço, de enjoo, de ansiedade. Daquela vez os médicos recusaram-se a desfilar, só se fosse ‘de seringa em punho’ e eu vim-me logo embora.
16Foi ao telefone com o meu marido que decidimos quando e como é que eu ia, num episódio incrível. Havia tanto barulho que eu não ouvia nada, mas eu tinha que perceber como é que era. Havia duas telefonistas, uma que estava em Portugal e outra que estava em Angola, e era através dessas telefonistas que se fazia a ligação. Felizmente uma, não sei qual, teve dó de nós, ouviu a conversa, e a de cá disse-me: “Olhe, minha senhora, eu sei que não posso fazer isto, é proibido e eu posso ser despedida, mas eu transmito, eu vou dizer o que o Senhor Doutor está dizer do lado de lá, a senhora diga que eu digo à minha colega para lhe dizer a ele”. Foi assim que percebi que podia ir descansada, que não havia problema, que no nosso caso as coisas até não eram tão dramáticas, porque o pai de uns amigos nossos tinha negócios em Angola e ele disse logo que não estivéssemos preocupados, que nos podia ajudar. Nós não tínhamos dinheiro para pagar uma viagem daqui para lá, eu nem sei como é que as pessoas aguentavam pagar as viagens para Moçambique, para Timor, que era do outro lado do mundo. Eram viagens caras e isto era tudo muito bonito quando eram duas pessoas, dois adultos, mas quando havia crianças? Eu não imagino o que fosse! Agora quando penso nas coisas, ao mesmo tempo dá-me vontade de rir, porque se programassem um grupo de pessoas, um povo para fazer estas coisas, toda a gente se riria, mas era assim que as coisas aconteciam.
17E tudo isto acontecia placidamente com os aviões a ir e a vir, depois de duas Guerras Mundiais. E eu falo de uma situação de absoluto privilégio. Primeiro privilégio fundamental da minha vida é que casei com um médico. Nestas circunstâncias é uma situação que altera tudo. Entre os milicianos todas as profissões activas ficavam sob as ordens da tropa. Só a medicina escapava. Os doentes são todos iguais e sempre iguais e os médicos, embora não fossem os únicos a não combater, podiam manter uma independência e um poder razoáveis. Mais tarde, no Longa, ao serem rendidos, um enfermeiro do meu marido dizia que “isto aqui é como na Cruz Vermelha, é para amigos e inimigos”. O pior é que ele incluía a Companhia que os vinha render nos inimigos. Mas isso é outra história.
18O segundo, e não menos importante privilégio, foi a sorte que sempre tivemos, com as situações e com as pessoas.
19Fui de avião, numa viagem paga por nós, pois a tropa numa manobra política extremamente hábil, responsabilizava-se pelo pagamento das viagens, pagamento esse que depois era descontado mensalmente nos ordenados. Os aviões iam apinhados e aos vinte quilos juntavam-se quase outros tantos de tralhas, sacos, inúteis presentes que ainda se levavam às calamitosas despedidas no aeroporto. Era um autêntico banho de família e amigos, não sei por que se usava aquele cerimonial de fundos abraços e de beijos. Dentro da sala de embarque, que era só uma, o ambiente era outro. Olhei então os que partiam para África. O que mais me chocou foi um casal com dois filhos pequenos, tinham já as caras contraídas pelo sofrimento, o olhar procurava ansiosamente os que ficavam. Quando entrei para o autocarro vi-os sentados no banco corrido de trás, os olhos pregados na família do outro lado dos vidros, ajoujados de sacos e mais sacos de que não davam já conta, calados, as lágrimas em fio pelas caras dos quatro, pareciam ter entrado no túnel de um violentíssimo sofrimento, uma espécie de antecâmara do tenebroso futuro. Seriam funcionários, emigrantes, pertenceriam a alguma grande firma? Na sua desorientação deixaram para trás a menina. Fui dos últimos passageiros a subir para o avião. Dei com ela no fundo das escadas, chorando silenciosamente, sem conseguir dar conta dos vários sacos que lhe tinham distribuído. Nem protestou quando lhe tirei uns sacos com uma mão e no outro braço a levei. Encostou-se a mim tão frágil, tão abandonada e lá fomos as duas para cima. Penso muitas vezes o que terá acontecido a esta família, àquela menina morena, magrinha e sem graça, a chorar. Estas eram assim umas amostras gratuitas do incerto futuro do império. Por mais públicas e óbvias, ninguém queria saber.
20Cheguei a Luanda de noite e dormi lá uma noite, num hotel onde a TAP me pôs. Em Luanda estava um grande amigo do meu marido e a mulher dele – que também estava sozinha com os três filhos, porque ele estava não sei onde – foi ao aeroporto buscar-me, noite cerrada. Sozinha no carro, colou-se à carrinha da TAP até ao hotel. Luanda não era sítio por onde se andasse assim, de noite. Fez-me um bocadinho de companhia e depois foi para casa sozinha às tantas da manhã. De manhã fui-me embora, completamente estonteada do calor, era tudo diferente, não percebia nada, achava as pessoas todas iguais. Antes de chegar ao meu destino, Serpa Pinto, passava‑se naquela cidade muito simpática – Nova Lisboa – e parava-se uma hora. Serpa Pinto, que não sei como se chama agora, foi o meu primeiro contacto com África. Cheguei lá com um calor sufocante, não sei, acho que era a meio do dia. Chamavam àquele sítio “as terras do fim do mundo”, ficam entre o Cuango e o Cubando e muito mais para sul, era mesmo o fim do mundo, como um vastíssimo Alentejo. A capital daquela vastidão era de desenho largo, uma rua larga, de terra batida, a todo o comprimento. Num dos topos ficava o cinema, um hotel e umas lojas (dizia-se comércio), feudo de um dos importantes da terra. Ao longo da rua casas e lojas. A meio corria um rio, ladeado por uma espécie de jardim público. A rua continuava sempre em frente, passando pelo hotel do outro rico, obviamente inimigo do primeiro, lá para o fim era o colégio, mais para norte o hospital, tudo assim estilo construção à estado-novo-anos-sessenta. Um autêntico filme de cowboys, género os maus contra os maus e nenhuns bons.
21O batalhão do meu marido cobria o Cuando Cubango, a partir do Cuito, mas como em Serpa Pinto havia um hospital o meu marido foi aí colocado, passando metade do tempo no Longa, onde estava a sua Companhia. Ia e vinha no avião dos frescos, o que era muito menos perigoso do que fazer os noventa quilómetros de estrada. Os dois pilotos (civis, creio) eram uns perfeitos ases, além disso conheciam o terreno de cor. Acreditávamos que eles aterrariam fosse onde fosse e em que circunstâncias fosse, o que tornava as viagens a parte melhor do programa. Lembrava-me de Impala, de Henrique Galvão, vendo aquilo de cima: as chanas sem fim, os bichos em correrias assustadas, às vezes, como num filme verdadeiro, as cores e os contornos recriando a cada hora do dia, a cada mês, a cada estação do ano, mundos diferentes. Esta dimensão de grandeza e de perfeição não fazia mal, pelo contrário, compensava o sentir-se perdido em espaços aparentemente sem contorno, ao invés da estreiteza das mentalidades e dos hábitos, os de cá como os de lá. Mas ao reler Impala, revejo também a presença branca em África como uma intrusão. Em toda a sua grandeza e perfeição é um mundo natural. Apenas como humildes e cerimoniosos visitantes aí deveríamos ter sido admitidos. Creio que Karen Blixen, emShadows on the grass e Out of Africa tem uma abordagem semelhante, até pela sua profundíssima e camoniana ou platónica paixão por África de poder transformar-se ‘o amador na coisa amada’. Mas isso é outra história, porque nessa terra fertilíssima onde eu estava, os soldados comiam muito mal – quase não havia fruta e os poucos e pouco frescos eram transportados de avião. Nessa imensidão de espaço dormiam e viviam lado a lado, num calor africano em sufocantes tendas de lona. A água era um bem escasso e mal distribuído. Proibidos de sequer se lavarem no rio por razões várias de segurança.
22No dia em que eu cheguei o meu marido foi-me pôr a casa, disse “esta é a nossa casa”, fechou a porta, foi-se embora e eu fiquei à espera que ele chegasse até ao fim do dia. Teve que ir ao Longa, a noventa quilómetros. Teoricamente deveria lá ficar, mas lá arranjou uma maneira de voltar outra vez. As casas, lá, mais modernas, normalmente eram geminadas para protecção das próprias pessoas, em cada metade tinham dois andares. Muito vulgarmente eram divididas por dois oficiais: um morava em baixo, outro morava em cima. Nós tivemos imensa sorte, porque o meu marido alugou a casa com outro casal. Eles viviam em baixo e eu em cima. Faziam-me companhia e eu nunca estava sozinha.
23Era muito importante a presença da mulher em África naquela altura, e sim, foi uma arma política muito forte, muito bem usada, muito habilmente e muito, não digo secreta, mas encobertamente usada, tanto quanto era possível e bom e útil que fosse. As mulheres funcionavam género “avião dos frescos”, colocadas, distribuídas e controladas segundo a lógica da utilidade. Davam muito jeito. Não deviam mover-se, nem pensar, nem agir. Tanto melhor se não quisessem olhar, quanto mais ver. Mas no dia-a-dia, naquele ambiente, naquele abandono, via-se como uma mulher, se tivesse bom feitio, era mesmo muito importante. Para um grupo grande de dez/vinte homens, ela podia ser a mãe, a irmã, a distracção amorosa, a imagem feminina, boa, a pura gota de água, a imagem também da casa perdida, do país perdido, da família perdida. Eu vivia muito bem entre os homens, nunca tive problemas de viver entre eles, eram muito amorosos comigo, mas eu era distante, cerimoniosa e estava sozinha. Naquela época os homens eram extremamente vulneráveis a uma mulher sozinha, tinham muita dificuldade em estabelecer com ela uma relação saudável. Se tivesse um marido ao lado era muito mais fácil. Não estavam habituados de outro modo, se fosse hoje seria completamente diferente.
24Depois, o batalhão do oficial que vivia connosco rodou. O casal que vivia connosco, cuja mulher era uma excelente comunicadora, foi-se embora e aí fiquei mesmo muito sozinha. Sempre fui muito independente, sempre fiz sozinha o que se faz acompanhado, mas pela primeira vez sentia-me profundamente insegura, vulnerável, tive paludismo, sentia-me muito mal, o tratamento quase “me matou” e o meu marido ia para fora durante bastante tempo. Houve um dia em que eu estava tão farta de estar em casa, daquele isolamento, que saí, fui andar a pé. Serpa Pinto era grande, uma cidade planeada para o tamanho da região, de maneira que tentei dar a volta pelo perímetro e não consegui, fiquei cansada. Mas foi aí que me apercebi de que uma população esparsa vivia na periferia, em casas paupérrimas ou mesmo cubatas. Uns tempos depois perguntei ao lavadeiro, ao miúdo que vinha buscar a roupa, “Onde é que tu moras?” E ele respondeu: “É naquele sítio onde a senhora foi passear naquele domingo”. Toda a gente na cidade ficou a saber que eu me tinha atrevido a ir a pé e andar por lá.
25Também uma vez levei um raspanete por ter ido à rua das prostitutas, no Béu, no Norte, onde estive na segunda parte da comissão do meu marido. Nestas terras ao grupo das mulheres legítimas, juntavam-se as outras. As que sempre seguiram os exércitos, em ocupação mais do que em guerra, como um bem de consumo especialmente apropriado. Mesmo no Béu (uma pequena aldeia com dez casas, cinco famílias), as necessidades dos cento e cinquenta homens criaram aquelas quatro ou cinco cubatas, um pouco à parte. Eu não sabia, disse boa tarde como de costume, elas sorriram, tinham um ar levemente diferente, menos miseráveis ou envelhecidas. Eu, mulher legítima e oficialmente bem-vinda, não devia estar naquele sítio, engano meu. Não serviu de nada protestar que queria lá saber, não iam aliás civilizadamente à consulta? Só podia andar um quilómetro para baixo e outro para cima, ou menos ainda, estava farta. Era tudo um sufoco. Numa terra imensa, rica, fecunda.
26Nós sabíamos que aquela situação era eventualmente perigosa, não sabíamos donde viria o perigo, nem porquê. E gerava-se um medo latente – era certo que no Sul não acontecia absolutamente nada de nada, muito menos situações perigosas, não era uma zona de guerra, mas esse medo que nunca se resolve como certas equações, conforme a situação interior das pessoas, a vulnerabilidade das pessoas, ia aumentando. A fragilidade física também aumentava e uma coisa ajudava a outra: a comida não era boa, as casas, o conforto, nem pensar, podia-se requisitar uma cama, não era nada mau – usada por soldados – podiam-se requisitar lençóis que mal tapavam os colchões. Mas isto criava um desconforto e a precariedade, a falta de dinheiro – os oficiais ganhavam pouco – a incapacidade de gastar pouco, até porque para gastar pouco era preciso ter capacidades domésticas, sociais, de sobrevivência, que nós não tínhamos, especialmente o nosso grupo que tinha tido sempre uma criada a fazer a cama e a cozinhar. Aqui a única coisa de que não prescindíamos era dos lavadeiros, nunca sabíamos onde nem como se lavava a roupa, a roupa vinha sempre com um cheiro especial, o cheiro das casas.
27As precauções contra eventuais perigos eram tomadas privadamente, claro: os oficiais deixavam às mulheres a pistola a que tinham direito, imagine! E uma vez cheguei a descer a escada com ela na mão, a meio da noite. Lembro-me da tensão insuportável que senti e quase desejava que acabasse por acontecer alguma coisa. Mas tudo era na nossa imaginação. De facto não tínhamos noção nenhuma do que se passava ou poderia passar, nem do que fazer.
28Lembro-me de que a dada altura, ia dormir a casa de um colega do meu marido, que era o médico do sono e que tinha lá a mulher e um filho. Tinham um quarto a mais e as pessoas eram todas muito simpáticas, mesmo que não gostassem umas das outras estavam sempre prontas a ajudar. Havia de facto um tipo de ajuda que era quase fundamental, que se tinha que dar, que não se recusava: não se deixava uma mulher a dormir sozinha em casa se ela achasse que não era capaz, e eu precisava de aliviar a tensão – era uma questão de cabeça, porque não havia nenhuma situação que fosse especialmente perigosa ou que deixasse de o ser. Era o isolamento, também, a tensão.
29Sabe, o medo é como uma alergia, uma doença incurável: uma vez desencandeado nunca mais nos livramos dele, ao contrário do que se espera é em situações normais que ele mais se infiltra. Por isso, o nosso quotidiano era habitado por um medo pequeno, fininho e vago, infiltrava-se na vida, descaradamente. Durante o dia afastava-se com a crueza da luz, a segurança dos gestos repetidos, a companhia dos outros. Mas de noite os ruídos tinham significados diferentes, as sombras cobriam de perigos desconhecidos o que nos rodeava. Este medo coexistia com uma vida totalmente despreocupada, sem quaisquer regras ou precauções especiais. Era um medo por dentro. Sem escape ou justificação, acumulava-se numa enorme tensão interior, muito cansativa. Porque durante os meus dois anos lá, nada aconteceu de especial.
30Em Serpa Pinto, se algum grupo armado tivesse querido entrar, pela calada da noite, só tinha que atravessar a rua, do outro lado era a chana sem fim, quilómetros de horizonte quase sem árvores – uma das poucas árvores ficava em frente da nossa casa – e o quartel ficava longe, num dos topos da cidade, já na periferia. Do quartel, aliás, ninguém esperava nada de especial.
31Portanto tive que viver com o meu medo todos os dias, com uma agravante: foram quatro anos, um cá, dois lá e um dividido pelas idas e vindas, porque nunca se ia exactamente ao fim de um ano, nem se vinha exactamente ao fim de dois anos, portanto, vá lá, três anos e meio de vida é muito tempo. Durante uma parte desses três anos e meio, pode ser ao princípio, pode ser ao fim, o medo aumenta muito. Há uma altura em que o medo galopa, e o medo como destrutivo que é, é destrutivo da própria capacidade de raciocínio, de avaliação, de valorização do que quer que seja. Há muitos para quem o vencer do medo se tornou uma arma. Aliás a guerra está, sobretudo para os homens, tradicionalmente ligada, e em Portugal muito, à ideia do domínio desse medo, do medo da vida, do medo do perigo, do medo da violência física e que se traduzia por “fazer do menino um homem”. As jovens raparigas das aldeias não aceitariam casar com os rapazes que não tivessem “ido às sortes”, porque ainda não eram homens, ainda não tinham feito prova que eram capazes de aguentar a parte do medo que lhes cabia. Eu penso que no subconsciente dos homens portugueses – é um subconsciente muito pouco trabalhado, muito pouco trazido para as situações concretas – isto foi fundamental.
32Ainda no outro dia a propósito disto e numa discussão com o meu marido lhe disse: “Pois é, vocês foram brincar às guerras, brincaram durante dois anos, nem perceberam que andavam a brincar às guerras e depois admiram-se com as consequências!” Eu apercebi-me de que tinha dito uma coisa que, pelo menos para mim, era importante. Penso que para uma grande percentagem de homens portugueses, de rapazes, a guerra foi um prolongar de brincar aos soldadinhos, um jogo organizado, com inimigo, armas e tudo. Não sabiam para o que é que iam, não tinham noção nenhuma! Tinham medo sim, tinham a intuição de que aquilo não era bem a brincar, mas foram praticar aquilo que tinham praticado a brincar antes, só que era a sério. Alguns assustaram-se, vieram doentes, sem braços, sem pernas, sem cabeça, muitos. Muitos, muitos.
33Os inimigos na guerra, os turras, não creio que se individualizassem tão facilmente, estariam para lá de uma certa linha no horizonte, habitariam outro mundo de cubatas isoladas numa ainda maior pobreza, e englobados e dominados por interesses, ordens e uma estrita disciplina que não era exactamente a deles. Essa tinha sido em geral violentamente rompida por nós. Tínhamos impedido os homens de caçar, arrancámos populações ao seu habitat normal, as lavras eram abandonadas, as migrações proibidas, impossíveis as trocas, o comércio espontâneo, as naturais relações entre grupos e etnias – difíceis já de si – eram espicaçadas e mal usadas pela nossa ignorância e mesquinhez. Destruída a organização social original, estes africanos, os pobres dos pobres, entravam directamente na sociedade de consumo local: os panos em que se enrolavam passavam a ser adquiridos em pronto--a-vestir aos comerciantes dos minúsculos povoados, os homens trabalhavam como costureiros, todo o dia debruçados sobre velhíssimas Singers nas varandas dos comerciantes, esses que, com os administradores, eram a medida humana do nosso império, naqueles matos; também aos comerciantes compravam peixe seco, quase podre, que misturavam na farinha (nunca percebi porque é que no interior de Angola se vendia peixe!); os mais expeditos “iam no contrato”, voltavam sempre com uma telefonia portátil que para todo o lado transportavam ao ombro, ligada, claro, sinal indispensável do seu novo estatuto.
34Na verdade, nunca percebi como é que as populações entendiam e aceitavam a nossa presença. Mas talvez as pequenas histórias expliquem parte das coisas. Um dia o meu marido veio buscar-me a casa para eu ir ao hospital. Tinha entrado uma menina muito mal e ninguém sabia o grupo sanguíneo da criança. Quando lá cheguei dei com o colega do meu marido empoleirado num banco, em cima de uma bancada, com uma placa de reagentes encostada à janela. Ele e o meu marido já tinham testado o seu próprio sangue, e como os reagentes não funcionavam (estariam fora de prazo?), tentavam por exclusão de partes. Como a criança iria certamente morrer e eu era a mais próxima de dador universal (sou O+), não se perdia muito em experimentar. Perguntei se seria preciso mais no dia seguinte, mas o meu marido garantiu que não: de manhã, quando chegasse ao quartel, diria aos soldados que eu já tinha dado sangue e os soldados encher-se-iam de brios e haveria algum dador universal. Uns tempos depois, uma tarde bateram à porta. Era uma mulher com uma criança ao colo, um sorriso embaraçado. Vinha para “mostrar menina...”.
35Ao rever as fotografias que o meu marido foi tirando naqueles dois anos, bem preciso de lembrar-me das histórias bonitas. Como a da mulher que limpava o chão para um colega do meu marido passar. Tinha levado o filho ao hospital uns dias antes. Já não me lembro dos pormenores, mas uns dias depois o João ia no corredor e surgiu uma mulher acocorada. Com um trapo, tão esfarrapado como os que vestia, limpava reverentemente o chão por onde ele ia passar. O João é um distraído, que disparate, limpezas àquela hora: “Ó mulher deixe-me passar, vá lá.” Mas ela teimava, arreganhando a cara num enlevado e reverente sorriso. Até que alguém explicou: “É para agradecer ter salvo o menino...”. Esta é a parte mais importante das minhas histórias da guerra.
36Qualquer médico tinha com as populações uma relação especial. No mato não havia outros médicos a quem pudessem recorrer senão aos militares e a fama corria depressa: quando morria alguém, os doentes desapareciam. Como em todo o lado a fome e a miséria abrem a porta a todas as patologias, mais ou menos graves – “kubabala”, era o que diziam. A sorte e o despacho do jovem médico fariam toda a diferença e a rotina dos casos crónicos de subnutrição enchia os hospitais durante a época mais propícia ao paludismo. Os doentes raramente vinham sós, como poderiam, aliás? Tinham que caminhar horas, dias, ou serem transportados pela família. Traziam a sua comida, farinha ou mesmo cereal que moíam no pilão, à porta das cubatas do hospital. As consultas eram sempre feitas com um intérprete, o enfermeiro, porque no mato não se falava português. Das aldeias menos pobres as mulheres grávidas vinham também à consulta, para “serem vistas no aparelho” e saber se tudo estava bem. Morriam bastantes crianças, não contando as perdidas durante a gravidez.
37No Norte, na segunda parte da comissão, em Maquela do Zombo, as enfermeiras do hospital eram as freiras da Missão Católica. Chegava a haver sessenta ou setenta doentes na consulta, às vezes já não havia espaço para os deitar. Porque no fundo, os verdadeiros problemas de saúde são iguais no mundo inteiro, sem pudermos excluir os que têm outras causas, ali muito presentes – a fome, a pobreza, a exclusão, a maldade, a ignorância.
38Estes eram os contactos com a população local nativa, da qual nos separava um abismo intransponível. Só a profissão exercida pelo meu marido possibilitava algum contacto normal e humano. Mas havia também os angolanos brancos, com os quais a tropa tinha uma relação difícil. Mais uma vez, devido à profissão do meu marido, tivemos alguns contactos e percebia‑se claramente que aquela gente nada esperava de Lisboa. Havia uma tensão latente entre os dois grupos, mas que, felizmente, raramente tomava expressão pública. Lembro-me que uma noite ouvimos uns apitos, uns carros, e pouco depois, uns murros na porta. Abrimos logo, e era um homem completamente desvairado. Num dos cafés da terra um soldado de um dos aquartelamentos ali à volta, já bêbedo, entrou em discussão com uma pessoa local. Furioso, foi buscar uma espingarda e o tiro atingiu mortalmente um homem que ia a passar na rua, um colono branco de lá. O homem foi a correr com o meu marido para o hospital, e o nosso amigo, que era o médico do sono, foi também a correr. Fiquei com a mulher dele, ambas preocupadíssimas, pensando no que é que aquilo poderia desencadear. E foi aí, também, que eu vi e percebi que a população civil branca não esperava nada da tropa, nem tinha nada a esperar da tropa.
39Como é que eu explico? Nas cidades que já existiam, não havia entre a população civil e a tropa nenhuma relação, qualquer que fosse a ideia de sobrevivência política do angolano branco. Não quer dizer que não houvesse excepções, e não quer dizer também que isto fosse absoluto, mas penso que na generalidade era assim. Havia também nos mais aguerridos e nos mais africanistas uma grande má vontade contra o poder militar instalado, que eles achavam que era um poder que não lhes traria nada de bom. Podia aguentar a situação durante uns anos, mas não resolvia o problema. Para eles a comunidade militar era muito vista como a soldadesca. Como em todas as tropas, jogava-se muito, perdiam-se rios de dinheiro todos os dias e bebia-se muito, coisa que aliás a própria tropa fornecia, muito habilmente, e lavava as suas mãos. Por isso, estas populações passageiras eram duplamente perigosas, desestabilizavam as relações económicas e sociais. Mas também e para dizer a verdade os africanos brancos que conheci eram pessoas muito pouco simpáticas, muito pouco interessantes. Como país parecia termos exportado para as colónias, pelo menos para Angola, aquilo que não era intrinsecamente bom, o que não quer dizer que fosse intrinsecamente mau. Também conheci muita gente boa, muito generosa, honesta, que foi de certo modo atraiçoada, comprada, vendida, “carne para canhão de troca”, e foram eles que pagaram o preço da nossa política. Na população feminina, particularmente nas mulheres e mães, havia intrinsecamente o medo de que a farda lhes violasse a filha, deixando-a de barriga e fosse embora. Pelo contrário, para algumas raparigas casadoiras, atiradas para aquelas aldeias, a tropa era a possibilidade de um casamento fora dali. Muitas queriam ansiosamente sair de África porque aquela África, das cidades do interior, era também uma aldeia, em termos humanos e em termos sociais. Habitualmente, as mulheres dos oficiais milicianos não tinham nada a ver com este mundo civil, nem com o mundo militar, e talvez por isso, o acolhimento que poderia ter sido muito agradável, foi inexistente. As casas vazias que eram alugadas às famílias dos militares ou mantinham-se vazias ou passavam de militar para militar. As formas de relação que estabelecíamos com esta população civil era, por exemplo, através da escola, com os alunos. Eu, por exemplo, em Serpa Pinto dava aulas, até ganhava mais do que o meu marido, mas não foi uma experiência gratificante. Para além de serem pouco simpáticos, os alunos eram todos muito maus, não sabiam nada de nada. Esforçados eram os negros, como por exemplo, a filha de um dos enfermeiros do hospital. Era excepcionalmente esperta e esforçava-se muito, queria aprender. Para estes a instrução, a verdadeira, fazia toda a diferença, e era tida como um bem necessário e precioso, imprescindível no futuro que os esperava, qualquer que este fosse. Teoricamente, os professores davam tudo, do 1.º ao 7.º ano. Dei inglês, francês e alemão. Eu não era grande professora, reconheço, e para me consolar da má consciência dizia para mim mesma que seria pior se não houvesse professor nenhum.
40Mas à distância as coisas são bem diferentes. Embora eu saiba que não teria sido capaz de o fazer, todos estes anos lamentei não ter nunca tentado uma escola nocturna de coisas que pudesse ensinar aos soldados do Béu, um cavalete grande com folhas brancas de papel, viria quem quisesse para ler ou escrever melhor, ler poemas, contar histórias. À melhor maneira de Sebastião da Gama seria um pouco uma escola a acontecer, onde tudo se poderia ensinar, eventualmente com a ajuda de outros oficiais, matemática, biologia, história... E quando leio Karen Blixen ou Henrique Galvão e encontro aquela África que poderia ter conhecido, só penso: que parvos, que parvos fomos, que desperdício de tempo, de energias, de tudo. É como se tudo o que se passou naqueles anos estivesse de antemão viciado, não pudesse ser vivido normalmente, como se o que estava por detrás da nossa ida nos acompanhasse até ao íntimo de nós mesmos. Mas não é o que acontece em todas as guerras, todas as ocupações, em todas as histórias dos gloriosos impérios?
41Vivíamos numa espécie de alheamento, às vezes, como naquelas aulas no liceu em que só pensávamos como sobreviver até ao toque da campainha mas parecia impossível aguentar até lá, um segundo mais e rebentávamos de certeza, o mundo pararia, o sol entornava-se, tal era a tensão ou o tédio, não sei bem qual escolher. Como sonâmbulos fomos e viemos, presos à capacidade necessária para aguentar. Pagámos com a pouca, mas preciosa capacidade de compreender, de aceitar, de pôr em prática qualquer alternativa de colaboração, de rompimento, de diálogo.
42Há uns dias só me vem à lembrança o que diz Julieta quando acorda no túmulo dos Capuletos: “I do remember well where I should be and there I am. Where is my Romeo?” Só que, de facto, aquele não era sítio para ninguém estar, ela muito menos. O que a mata não é só o desespero de ver o marido morto. Ela parece ser engolida pelo engano, pela confusão que o destino teceu. Creio que em nós havia, ao tempo, uma grande confusão. Uma coisa era o que queríamos privadamente – ir, estar perto, valia quase tudo para não perder dois anos de vida com a pessoa com quem se queria viver. Nas mulheres não tem nada a ver com dever cumprido, era aquele tão‑só o sítio certo. Outra coisa era o desdobrar de outra realidade que a nossa deslocação nos facultava: era ter de encarar de frente o insuportável espanto de perceber o engano da situação. Mas o que é que estou aqui a fazer? Era o que muitos se perguntavam, creio. Porque tal como Romeu está morto, não havia justificação possível para nada, onde estava então a glória, o prémio da certeza confirmada? Então o maior desejo era que aquilo acabasse depressa, sem danos de maior, se pudéssemos passar sem deixar rasto, às vezes até isso se aceitava, secretamente se rezava, faziam-se promessas, logo esquecidas à chegada ou passada a saída para o mato. Uma das razões porque me reporto ao Mash é, entre outras, aquela imagem antecipada do cirurgião quando no bloco lhe dizem que foi desmobilizado, e ele vê a mulher correndo para ele à saída do avião – assim viviam em mítica e antecipada realidade. Ou melhor, viviam antes um tempo intermédio, inconsistente, entre um passado e um futuro igualmente mitificados. Era um tempo de engano.
43Também para os africanos era um tempo de engano e confusão, em que a dúvida, como o medo, se ia instalando. Para que lado pender? Ouvir a propaganda proteccionista do branco português? Passar a viver à margem da tropa portuguesa? Arriscar miséria ainda maior com os clandestinos, aderindo a um dos grupos organizados? Muito falamos das nossas dúvidas existenciais, mas e as deles, dos africanos...? O que pensariam as mulheres deles quando nos viam chegar ao lado dos soldados?
44Era desta mistura de um resignado desespero e de um imenso tédio que se alimentava o célebre cacimbo. Afinal estar cacimbado era tão só estar deprimido. Mas cacimbo era também algo de muito mais vasto e indefinido – incapacidade de viver sozinho, especialmente grave em homens, desorientação, falta de carácter e de educação, oportunismo, lei do vale tudo para sair dali.
45Ao tentar contar, lembrar-me correctamente, perceber, conservar, sinto‑me sempre hesitante em isolar as pessoas, especialmente as mulheres, como visitantes ainda mais alheias, porque mais alheadas de qualquer razão de lá existir, que não fosse a sua privada teimosia em viver com o seu marido ou com o seu amor. Mais ridículo me parece, como mulher, falar da minha paralela experiência de tropa e de tropa na guerra, quando já antes de eu nascer as mulheres por lá passavam por conta própria. Mas talvez assim possa chegar ao que em mim ainda trago de tudo o que uns dos outros aprendemos e talvez assim desse enfim voz àquilo de que não se fala. Dar voz às humildes mulheres dos soldados, a trabalhar nas lojas ou sabe Deus em que mais, essas completamente isoladas, porque eram raras. Contar da aflição e da saudade das que cá ficavam acabando por casar por procuração, às vezes, não havia dinheiro nem tempo para mais viagens, iam sem saber para quê, de debaixo da asa dos pais passavam para debaixo da dos maridos, às vezes também por insistência deles. Viam-se perdidos, não aguentavam aquilo sozinhos. E falar também das mulheres dos profissionais, de certo modo casadas com o exército, teimosamente recriando um lar com filhos pequenos, no terror constante de que aquilo não durasse, enxertando à sua custa nos quartéis e na guerra uma vida paralela, familiar e doméstica, que afastasse para mais longe os mitos do país, da segurança, da família, à sua custa carregando a hipócrita intenção de uma ocupação pacífica. Como se alguma coisa pudesse ser pacífica. Em si próprias penso que tentavam anular a violência dos sucessivos desterros.
46Penso que todas, de diferentes modos, tentávamos instintivamente fazer companhia umas às outras, íamos directamente buscar a face escondida, fraterna e universal. Falávamos, conversávamos, contávamos coisas de vidas anteriores. Assim conheci a face escondida, delicada e rica de muitas mulheres vulgares e aparentemente sem interesse.
47A I. do Mavoio é um caso típico. O marido deixou-a em casa dos pais, à espera de uma criança. Mas o bebé perdeu-se, ainda a caminho. No mesmo dia em que ele matou um turra, numa operação. A coincidência deixou-o desvairado. Entretanto um colega veio de férias e foi ter com ela. “Vá-se embora, que ele não aguenta aquilo sozinho, está a dar em doido.” E ela foi. Vinha do Norte de Portugal e era simultaneamente de uma grande doçura e de um imenso despacho. Vivia no Mavoio, era a única mulher do destacamento. Os homens adoravam-na. Parecia ali posta para os ajudar a continuarem a ser pessoas verdadeiras. Sempre que podia vinha-me visitar a Maquela do Zombo. Nessa altura tínhamos uma casa de ricos, com mobílias horrorosas e loiça verdadeira, era escura e um pouco tenebrosa, mas teria sido extremamente confortável se tivéssemos sabido arranjá-la. Era uma casa à africana, colonial, a casa do médico que só existia no papel e que deveria ter sido lá colocado pela Administração. Passávamos a tarde na varanda, a conversar, com a minha filha, Rita, entre nós.
48Conheci outras mulheres, nomeadamente mulheres de militares que encaravam a vida dos maridos como as suas vidas e, portanto, “as suas comissões”. Mas a presença delas dependia também muito da idade dos filhos e das vidas escolares. O problema maior era com as mulheres dos capitães, porque atingia-as na idade em que os filhos já iam à escola primária. Habitualmente, iam às escolas locais que eram péssimas. Mas havia também a situação amorosa do casal, ouvi comentários do género: “Ai que desgraça, eu só vejo desgraças nas vidas dos que não trazem mulheres, depois arranjam uma preta. Eu cá não quero desgraças na minha vida.” “Eu prefiro ir” – ouvi isto muitas vezes dito pela mulher de um capitão de um dos sítios por onde passei – “seja lá para onde for, nem que seja para os confins do mato, eu cá me arranjo”. E, de facto, era verdade, ela com três panos indígenas e com duas camas de tropa arranjava uma casa confortável, era uma boa cozinheira, tinha criados. Era uma vida burguesa completamente organizada. Esta organização que elas faziam da vida familiar no meio da guerra, dava a tal margem de normalidade às vidas daqueles homens. Eles saíam do quartel e iam para casa (que às vezes era dentro da cerca do quartel), com a naturalidade de quem sai do escritório, com a naturalidade de quem se mete no carro. Elas humanizavam, desdramatizavam, simplificavam as coisas e essa foi uma arma muito habilmente utilizada pelo regime. A mulher do capitão que tenho em mente era uma pessoa muito bondosa, muito limitada, mas ela fez mais pela Pátria portuguesa do que quarenta generais e fez repetidamente, porque quando a conheci ela já ia na segunda comissão, coisa que ela enfrentava como a sua vida, a sua obrigação cívica. E isso errado ou não, é muito bonito. Não me consta que tivesse sido condecorada.
49A profissionalização da tropa, a normalidade da vida, que estas mulheres de certa forma asseguravam passava, como que por contágio, para as mulheres dos outros militares como eu. Mas a minha situação foi extremamente privilegiada, correu sempre tudo muito bem, nunca tivemos problemas sérios. Não foi a mesma coisa de outras mulheres. Houve mulheres que passaram muito, de facto, que viam os maridos a embebedarem-se, a jogarem a dinheiro com elas lá, a visitarem as cubatas das pretas, a zangarem-se, a romperem as ligações, a morrerem. Lembro-me do caso da irmã de uma grande amiga minha. O helicóptero em que o marido dela ia caiu. Morreram todos. Ela já tinha duas filhas, uma era bebé. Meteram‑na no avião de volta para Portugal. A família foi buscá-la ao avião, esperando que viesse desfeita e ela parecia encarar aquilo como se tudo tivesse sido antecipadamente aceite. Lembro-me ainda de um outro caso significativo. Éramos colegas desde o liceu. Ela apaixonou-se loucamente por um oficial de carreira. E de antemão aceitou viver cá sozinha durante o que se previa ir ser uma vida de comissões fora, ter os filhos e criá-los sozinha, criá‑los no amor de um pai semi-ausente; e recebê-lo a cada regresso como se fora o dia do seu noivado, arriscando que não seria exactamente a mesma pessoa a regressar. Imagino-os sempre ligados por um amor que nenhuma geografia ou nenhum modo de viver abalaria. Nunca mais nos vimos. Mas ainda hoje penso, perplexa, como se pode uma pessoa apaixonar por um oficial de carreira?
50Sabe, hoje de repente lembrei-me, talvez por ter estado a ver os slides de África, que, antes de ir, percebi muito bem que iria viver muito tempo sozinha, lá; que não deveria ser muito presente, mas discreta, paciente; que o que se esperaria de mim não era exactamente que fosse ao lado de, mas um pouco por detrás de, como um regaço, uma força de retaguarda. E só muito mais tarde entendi como fiz o meu marido correr riscos temerosos, por lá estar, não só no dia-a-dia, mas com o meu paludismo, a minha gravidez, os primeiros meses de vida da minha filha. A Rita nasceu em Portugal e logo que fez um mês fomos de novo para África. Suprema veleidade, loucura, inconsciência. Ainda me lembro que ela ia naqueles berços dos carrinhos antigos (as rodas foram despachadas) e nós pegávamos um de cada lado. Ainda me lembro na altura da multidão de amigos a despedirem-se de nós no aeroporto e nós a passarmos o berço por cima da barreira da polícia, como se aquilo fosse uma coisa divertidíssima, como se fosse uma viagem gloriosa e nós radiantes da vida, porque íamos enfim juntos, agora para o Norte de Angola, onde o meu marido tinha sido colocado. Tudo diferente, pessoas, clima, terra. Aliás um choque para todos. Depois da vastidão do Sul, aqueles homens pareciam presos naquela paisagem de floresta subtropical.
51A esta distância vejo como tudo se passava sem dramas nem exigências, com uma naturalidade e uma ligeireza que já nem entendo. Seria da idade, ou por termos as cabeças mais vazias ou mais tontas, ou porque queríamos apenas mansamente sobreviver àqueles dois anos? Seria por mais capacidade de sofrimento ou por menos de livre arbítrio?
52Lembro a visita dos pais do meu marido a Maquela do Zombo, como exemplo desta surrealidade que vivíamos como natural. O pai do meu marido também era médico, bioquímico, e houve um congresso em Moçambique, em Lourenço Marques, onde a mãe do meu marido tinha nascido e vivido. Do grupo de conferencistas vários tinham filhos em África e portanto, informalmente e em paralelo, foram organizando visitas aos filhos que estavam na guerra. Assim aqueles que estavam em Angola, como era o nosso caso, receberam as visitas dos pais e o resto das pessoas esperaram uns dias em Luanda. Os pais do meu marido chegaram a Maquela do Zombo num dia em que desabou a maior tempestade de que tenho memória naquela zona. A mãe do meu marido era como um peixe na água, estava outra vez em casa, nunca a vi tão à vontade, mas o pai do meu marido não. Acho que ele sentia a estranheza que qualquer europeu sente num continente violento como é África. Estiveram connosco dois ou três dias, já não me lembro, e com um casal amigo levámo-los a passear pela região: era uma região de minas de cobre, de floresta subtropical, com pequeninas colinas muito fundas, muito vincadas. Lá fomos, o tal casal amigo e os três filhos, os pais do meu marido e nós com a nossa filha de berço. Foi muito divertido, mas como nessa altura as coisas já não eram tão inocentes, fomos ao quartel buscar umas espingardas. Imagine, a inocência, a naturalidade com que tudo era feito. Lembro-me do ar completamente perplexo do pai do meu marido. Era na época um senhor com setenta e tal anos, e deve ter pensado: “Em que raio de mundo é que eu estou? Onde é que os meus filhos vivem? Onde é que eu vim parar?” Esta zona do Norte era uma zona pouco segura, porque era uma zona de passagem, de infiltrações, mas as coisas passavam-se assim. Isto é surreal, não há muito mais a dizer: poderia, no entanto, dizer ainda que ninguém sabia usar as espingardas, ninguém iria alguma vez usar as espingardas, só numa situação de grande tensão que se podia gerar e isso teria sido uma grande desgraça.
53Com todo este divagar estou sempre a fugir ao que de facto África teve de interessante. Coisas que aconteceram por acaso ou mesmo por engano. Como por duas vezes ouvir música verdadeiramente africana. Com eles temos ainda tudo a aprender, se pudermos prescindir, por um momento, da nossa sofisticada música ocidental. Uma tarde ouvi um som e cheguei perto da janela. Um rapaz vinha a tocar quissange pela rua, seriam assim as harpas dos anjos? Ele apenas vinha andando e tangendo com os dedos o quissange, passou debaixo da janela e acabou por desaparecer no outro topo da rua, levando com ele o som celestial. Não sei quanto tempo durou esta passagem, esta visitação, só sei que nem antes nem depois mais alguma tive uma sensação tão perfeita do poder mágico dos sons. O outro acaso surgiu no Béu, numa minúscula capela de madeira, construída à africana, onde uma vez se disse missa. De raro que era transformou-se num acontecimento, fomos todos, os brancos à frente, os negros atrás. No fim, depois de saídos todos os importantes, uma voz começou a cantar, pianíssimo, foram-se juntando as outras, um crescendo perfeito até ao fortíssimo, os corpos ondulavam com a melodia e depois começou a diminuir gradualmente até acabar numa única voz. Não sei o que cantavam, nunca sabíamos nada do que diziam. No canto do primeiro banco, que era agora o último, encostados um ao outro para não ocupar espaço, ali ficámos petrificados, o meu marido e eu. Na confusão de saber que só por puro acaso nos era dado ouvir aquela maravilha, na ânsia de não perder nem uma gota, no desejo de passar despercebidos para não perturbar, teria ficado ali eternamente presa daquele encanto. Tal como quando o tocador de quissange desapareceu ao fim da rua. Quando se calaram foi como se me tivessem fechado as portas do paraíso; como ser visitado pela visão de um mundo outro, sem dúvida real.
54Já estou a cair nas histórias, as tais histórias de África. Não era isso que eu queria. Sabe, agora, nós as mulheres, quase de repente, falamos todas mais daquele tempo, com outra seriedade e outra distância, apesar dos sustos que apanho com o que vou ouvindo. Como se as verdadeiras razões que nos levaram viessem inevitavelmente ao de cima. Ou talvez porque sentimos o tempo a fugir, o fim da vida a anunciar-se. Não teremos já muitos anos de lucidez, coisa que, aliás, nunca foi grande preocupação da nossa geração – salvo algumas excepções – mas alcançamos já a necessária distância; não estamos ainda a morrer, mas já muitas “mortes antecipadas” vão acontecendo nas famílias e nos amigos. Quando éramos pequenos, muitos adultos ensinavam-nos a pesar sempre o bem e o mal. Começamos agora a desconfiar que só existem como um princípio abstracto, mas todo poderoso; queremos em geral firmar um qualquer acordo que nos garanta uma plataforma de paz, um compromisso. E uma parte desse compromisso é com o que deixámos que nos acontecesse, com as escolhas que fizemos. Preferimos ter pena ou desejar ardentemente que certas coisas tivessem acontecido de outra maneira e, talvez por isso, procuramos eco nos outros, quase secretamente comparamos as posições interiores, as afinidades e as diferenças. Naquela altura, desde que não fugíssemos de casa, não roubássemos ou não casássemos quatro vezes de seguida, teríamos um lugar social assegurado: ali instaladas ficaríamos, com toda a correcção e para todo o sempre.
55Há quarenta anos o patriotismo, ainda que não espicaçado, era um natural sentimento de lealdade a um grupo, uma geografia, um clima, uma língua, uma cultura, a certeza de se pertencer a um e não a outro conjunto destas coisas. Era um sentimento, não se explicava, nem se justificava. A organização política do país nunca impediu esse patriotismo; uns eram mais patriotas em aceitá-la, errada que lhes parecesse, outros a combatiam para manter a lealdade à pátria. Para a maior parte das pessoas não se punha sequer a questão de não fazer tropa, quaisquer que fossem as consequências. Seria uma violência que só um medo de tamanho igual justificaria. E a isso ninguém estava disposto. Para admitir que se era cobarde, ou apenas que se tinha medo, era preciso um outro tipo de coragem que não nos tinha sido incutido.
56Somos uns parvos, fomos e viemos, “manhãs inteiras”, diria a Mafalda. Mas não aprendemos nada. Não percebemos nada.
57Tenho pena de que para as gerações mais novas só tenhamos rostos ficcionais. Penso que a minha geração tem uma dívida imensa com António Lobo Antunes, porque ele foi a única voz que se levantou em nome próprio, e porque em nome próprio em nome de todos falava e é essa a grandeza daquela fase da sua escrita. E por mau que literariamente Os Cus de Judassejam, eles constituem um documento tão fundamental para toda uma geração, tão honesto e de certo modo tão frágil que nunca ninguém, nem todos nós juntos lhe poderemos pagar, nem que lhe fizéssemos um monumento. Da Lídia Jorge eu desconfio. Desconfio da sua atitude. Ela é brilhante em A Instrumentalina, mas A Costa dos Murmúrios não aceito. Se é verdade que as escolhas femininas foram intrinsecamente privadas e pessoais – e essa foi a grande habilidade política de as usar como tais, nunca as deixando transbordar para o domínio público e colectivo – magoa‑me que uma pessoa que fez parte daquela teia, se ponha a ridicularizar aquilo que já de si era/é surrealista. O que me chocou profundamente foi o colar sobre aquela história, as histórias trágico-cómicas, mas muito mais trágicas do que cómicas, de quantas noivas ficaram por casar, etc., etc., e dos casamentos brancos, dos casamentos por correspondência, da angústia e da ansiedade das famílias de um lado e do outro, da sensação de perda, da sensação de sufoco e da falta do outro, da tragédia verdadeira para tantos.
58A nossa geração tem uma grande culpa. Quando eu me vim embora, perguntava a mim mesma: “Daqui a vinte anos quando os meus filhos me perguntarem: o que é que lá estiveste a fazer? Meu Deus, o que é que lhes vou dizer? Como é que lhes vou explicar?” Não era nada agradável, e ainda hoje não é. Quando se tem culpa numa coisa, não há desculpabilização possível, tem de se viver com ela. Por muito que se explique, explicar não é justificar. A guerra traz-se connosco a vida inteira. Depois da guerra, começa a outra guerra, ou seja, a da vida em que a primeira eternamente se transporta; a trégua, como diz Primo Levi, é o tempo de “estado de graça” entre as duas.
59Soube há muito pouco tempo, e por estar a falar deste depoimento sobre as mulheres e a Guerra Colonial, que a minha filha mais velha – que viveu os seus primeiros meses de vida em África, na guerra – farta das nossas histórias de África, a duas versões, tinha querido saber o outro lado da verdade e tinha pedido a uns amigos que fugiram para Paris para lhe contarem a sua parte dos medos, da pobreza, da solidão, da fome, das aflições. Para mim, isto foi extremamente comovente.

Depoimento de Maria Ivone Reis

60Nasci em Venda Seca, Belas, concelho de Sintra, em 1929. Éramos quatro irmãos, sendo eu a terceira. Lembro-me do nosso Pai, doente em casa; às vezes levava-me à rua a passear. Faleceu, tinha eu cinco anos. A nossa Mãe era doméstica. Após a morte do Pai, fomos para casa dos nossos avós maternos. Dois anos depois, a Mãe faleceu, tinha eu sete anos. A causa da morte de ambos foi tuberculose pulmonar.
61Os nossos avós maternos tiveram nove filhos. Viviam da agricultura e dos produtos lácteos dos animais. A minha Avó acolheu-nos, quatro netos, com carinho, mas muito exigente, sobretudo comigo, a rebelde! À noite, ao deitar, a Avó rezava connosco, e perguntava-me: “Qual foi a maldade que hoje fizeste e que amanhã não voltas a fazer?”. E essas palavras ao fim do dia acalmavam a minha rebeldia justificada ou não, eram uma reflexão. A Avó, “analfabeta”, foi a minha grande catequista, ensinando-nos a fazer o bem e “nunca” o mal. O meu Avô nunca mandou os filhos estudarem. Logo, aos netos também não. Assim, os tios após a primária, se a fizessem ou não, trabalhavam na terra.


62Na minha juventude, procurei trabalho, acompanhando crianças, desde que me facilitassem o tempo para estudar. Estive em três famílias, todas extraordinárias no acolhimento que me deram.
63A primeira família era de um diplomata americano. Tinham um filho, com dois anos. Seis meses depois de eu estar com eles, o senhor foi nomeado para outro país. Queriam que eu os acompanhasse, mas declinei o convite, pois tinha sonhos e projectos para me realizar no meu país. A segunda família era muito agradável. Eram franco‑belgas e tinham três filhos. Tratavam-me por “mademoiselle” e a senhora disponibilizou‑se para me dar aulas de francês, o que me ajudou muito a avançar no programa liceal. Passados quatro anos, conheci outra família, próxima de amigos comuns, que me desafiou para acompanhar uma criança de dois anos. Teria assim mais tempo para estudar. Assim continuei até que, em 1958, conclui o Curso de Enfermagem Geral na Escola das Franciscanas Missionárias de Maria. O terminar deste curso foi para mim a realização de um sonho que desde sempre alimentei.
64Quando era criança tinha estado num sanatório, em Francelos, perto de Espinho, porque naquela altura havia a primo-infecção e aquelas outras doenças do foro respiratório. Foi lá que conheci uma senhora, Guilhermina Suggia, que era violoncelista e era mundialmente conhecida, fazia concertos na Rússia e pelo mundo fora. Ela ia lá passar as férias, e contava muitas coisas das suas viagens, dos seus concertos e nós ficávamos todas espantadas… são coisas que para as crianças parecem sonhos. Pensei logo que queria ser pianista, mas foi no sanatório que percebi que queria mesmo era ser enfermeira. Nós, as crianças com essas patologias respiratórias, íamos à praia, descansávamos, brincávamos, mas o que eu gostava era de ajudar as enfermeiras. Sempre achei aquele trabalho bonito e fui ganhando uma inclinação mais concreta, mais objectiva de que um dia poderia vir a ser enfermeira. Agradava-me a ideia de tratar de doentes, no sentido de estar com os doentes, ajudar as pessoas em situação de carência. De maneira que quando terminei o liceu pensei logo ir para uma escola de enfermagem.
65Comecei a trabalhar em 1959, no hospital da CUF e foi aí que fui abordada por uma colega da Escola para integrar uma equipa de enfermagem na Força Aérea, mais concretamente nos Pára-quedistas, para actuar em Angola, onde a guerra tinha estoirado, em 1961. O convite seduziu-me de imediato, disse logo: “Olhe, conte comigo, mas eu amanhã confirmo”. Eu tinha que dar uma satisfação à família com quem vivia, mas a minha decisão estava tomada. Os meus amigos e a família com quem vivia acharam a ideia um pouco louca, mas houve quem dissesse: “Se ela não vai, quem é que vai?” Esse era realmente o meu argumento e quando me perguntavam passei a dizer: “Claro que vou, se eu não vou quem é que vai? Eu não tenho projectos, não tenho nada que me prenda e lá precisam de mim.” Respondiam-me que era a altura de ficar sossegada. Mas eu era desassossegada e respondia: “Mas…eu volto para cá, e depois fico quieta”.
66Quando me contactaram pensei que a minha ida como enfermeira era útil, e o importante era atenuar o sofrimento daquele que não tinha culpa nenhuma e que estava na frente de guerra. Não pensei na estratégia de guerra, o porquê da guerra. Achava que aquilo seria uma situação temporária e depois voltávamos. Na verdade, nunca tinha pensado trabalhar em África. Quando as notícias da guerra em Angola chegaram, para mim, como para muita gente, foi uma surpresa. Tínhamos uma opinião desinformada e uma população que também não estava esclarecida, muito menos sobre o que se passava em África. E aceitei o desafio, embora o vencimento fosse menor do que na CUF. Na verdade, eu nem perguntei nada, não perguntei quais eram as condições. Assim como os capelães têm um quadro próprio, os músicos têm o seu quadro próprio, assim as enfermeiras passaram a ter também um quadro próprio. Fomos o princípio de um quadro de enfermeiras graduadas militares na Força Aérea. A nossa missão específica era de, a bordo, assistir e tratar os feridos ou doentes, combatentes ou população civil, e conduzi-los para o hospital indicado.
67O pára-quedismo despertou em nós a consciência do medo, desenvolvendo, simultaneamente, a audácia de agir, com segurança, no risco e na adversidade. Na “retaguarda” da guerra, as equipas de evacuação aérea, pilotos e enfermeiras, estavam sempre prontas a responder à chamada, viesse ela das zonas de combate ou dos mais “esquecidos” aquartelamentos das tropas. Era uma vida intensa.
68Mas a nossa preparação tinha sido cuidada. Quando se reuniu o grupo de voluntárias – éramos 11, uma fracção de uma companhia – fomos convocadas para fazer testes de adaptação e de capacidade. Naquele tempo a mulher não estava ginasticada, não havia a prática de ginástica que temos hoje. Mas estes testes iniciais não eram eliminatórios. No curso que se seguiu as pessoas desenvolviam-se ou não, cumpriam as metas fixadas ou não. Começámos onze e só ficámos seis, porque as outras não aguentaram os treinos. A guerra tinha começado em Março e nós fomos convocadas em fins de Maio. Fomos para Tancos fazer os testes a 25 ou 26 de Maio, e depois fomos para lá iniciar o curso no dia 6 de Junho, que é o dia do desembarque da Normandia, o dia mais longo, o dia D, como eu digo sempre. Era um curso adaptado a nós, à nossa capacidade física, que não era igual à dos homens, tínhamos que fazer tudo numa dimensão adaptada à nossa resistência física. O primeiro salto foi a 2 de Agosto e fizemos todos os outros saltos até 8 de Agosto, data em que fomos brevetadas.
69Na Força Aérea, nos pára-quedistas, já havia mulheres, civis, na parte administrativa. A nossa relação com os pára-quedistas era muito cordial. Claro que eles tinham sido advertidos das circunstâncias em que nós íamos, porque é que íamos e portanto o estatuto que nos deram – e que lhes deram a eles – também acautelou o nível de relação que se propunha que houvesse e tudo correu muito bem. Depois, no decorrer do curso fomos tendo uma relação mais próxima, de conversa e quando se começa a conversar as coisas desenvolvem-se com outra dimensão; soubemos que faziam apostas sobre as nossas capacidades e coisas assim muito saudáveis. No fim do curso estávamos envolvidas numa afectividade muito grande, porque realmente os pára-quedistas são excepcionais, são pessoas muito abertas, muito solidárias e amigos. E isso foi muito importante para nós vivermos a nossa missão.
70A 23 de Agosto fomos duas enfermeiras para Angola, como teste. Estávamos ainda a fazer fardas em Lisboa, quando foi anunciado que ia haver uma operação especial dos pára-quedistas no norte de Angola, na Serra da Canda e eles gostavam da nossa presença.
Enfermeiras pára-quedistas Maria Arminda e Maria Ivone Reis.
Aeroporto de Luanda, Agosto, 1961. Embarque para a Serra da Canda
Fonte: Ivone Reis
71Era tudo à experiência: ver como é que nós nos dávamos, ver como é que os pára-quedistas reagiam à nossa presença. Mas não foi nada de especial porque aqueles pára-quedistas que nós fomos encontrar no avião para a Serra da Canda, tinham estado em Tancos em Junho, quando nós tínhamos ido para lá. Eles tinham embarcado para Angola em Julho. Portanto, já estavam mais ou menos próximos de nós, sabiam da nossa existência, conheciam-nos e nestas situações a relação humana é muito rica. Foi tudo muito fácil, sentia-se uma grande abertura em relação a nós. Éramos todos irmãos, no sentido em que parecia que nos conhecíamos, mesmo sem nos falarmos. Havia uma empatia muito grande.
72Em Luanda onde inicialmente aterrámos e onde ficávamos – tínhamos a messe e os alojamentos lá – vimos que as pessoas, os africanos e os europeus que estavam lá radicados tinham uma relação humana boa. Eram pessoas muito abertas a uma relação e, mesmo com a população local, não há dúvida nenhuma de que havia uma relação rica de sensibilidade e de vivência.
73É claro que a situação de guerra veio alterar as coisas em todos os sentidos. E nós, a nossa presença militar também alterava tudo, mas nunca senti fricções.
A bordo de um Nord Atlas, Angola 1961
Fonte: Ivone Reis
74Nestas primeiras viagens os contactos com o trabalho que tínhamos pela frente foram variados, aliás o ritmo e a configuração do trabalho era muito diferente de território para território.
75Na Guiné, por exemplo, como era um território pequeno até de noite, quando havia uma situação de emergência, íamos imediatamente. O dia tem 24 horas quando é preciso e o inimigo não atacava só ao nascer do sol. Nós éramos quatro e havia sempre uma todas as semanas a caminho de Lisboa, para assistir os feridos evacuados para o Hospital Militar. De maneira que entre as três que ficávamos, trabalhávamos em sistema rotativo. A Guiné, embora fosse um território violento do ponto de vista da guerra, era mais acessível por ser mais pequeno e geravam-se relações mais próximas entre as pessoas. Estávamos em cima de todos os acontecimentos de uma forma muito solidária e muito humana e tínhamos uma boa relação uns com os outros: militares, civis e africanos. Com frequência ouvia-se em Bissau rebentamentos e poderia não acontecer nada que afectasse as pessoas. Mas, muitas vezes era um rebentamento em qualquer zona da Guiné e tocava o telefone. A enfermeira que estava escalada, entrava no jipe e imediatamente partia para a pista e voávamos para o local. Em Angola ou Moçambique era muito diferente devido à vastidão dos territórios. Às vezes ir buscar um ferido era como ir daqui a Frankfurt.
76Depois há a diferença das situações, que tem a ver com a diversidade de cada pessoa, de cada situação… era consoante o grau de paciência ou de sofrimento daquele que acompanhávamos. Um dia, um jovem soldado, foi vitimado por uma mina, que lhe esfacelou um pé. Já instalado no avião que fazia a sua evacuação para o hospital militar, a enfermeira pára-quedista que o acompanhara, perguntou-lhe se tinha muitas dores. Com a cabeça ele acenou-lhe que não, mas o seu rosto continuava a espelhar todo o sofrimento que lhe ia na alma. A enfermeira tentou confortá-lo, dizendo-lhe para ter confiança na competência e dedicação dos médicos e de toda a equipa hospitalar que o iria tratar. Prontamente, ele olhou fixamente para a enfermeira e diz-lhe com contida emoção: “Senhora enfermeira, com pé ou sem pé, estou vivo! O que me preocupa é a dor da minha mãe quando souber.”
77Era frequente os jovens combatentes tocados pela adversidade esquecerem-se das próprias dores, preocupando-se antes com o sofrimento que a sua família iria sentir quando a notícia cruel lhe fosse dada. Para nós, enfermeiras, era particularmente doloroso sentirmo-nos impotentes para aliviar o seu sofrimento físico ou moral. A força moral daqueles jovens, naquela época, era tremenda e isso transmitia-nos uma grande força para enfrentar os problemas e para lhes dar resposta. Agora o que era mais grave para mim, era quando púnhamos o ferido na maca, víamos os sinais vitais, pulsação e tomávamos consciência de que a vida estava em risco. Aí o problema era chegar a tempo ao hospital. Felizmente que todos os que tive em mãos chegaram a tempo. São situações de muito sofrimento, que nos tocam muito. A memória daqueles jovens que entregaram a sua juventude, sem saber bem porquê.
78Recordo um outro caso, esse de alto risco a vários níveis.
79No quartel nós podíamos sair do avião, mas na zona de combate nós não devíamos sair do avião ou do helicóptero. Era uma circunstância de muito risco. Se houvesse ataque do inimigo o helicóptero teria de levantar voo imediatamente ficando a enfermeira em terra em grande risco, sem meios nem ambiente para tratar dos feridos. Eventualmente fizemos isso em situações muito excepcionais, bem medidas, porque podia tornar-se um altruísmo muito arriscado para a vida dos outros. Nesse aspecto é muito importante a questão do medo, porque ajuda ao raciocínio e ao controlo. O importante é perceber como controlar o medo, para termos oportunidade de perceber a razão do medo e para que possamos ultrapassá-lo. Ter a consciência do perigo é fundamental para avançar e saber agir na margem de segurança que a situação e o nosso pensamento sobre ela nos oferece.
Assistência a feridos, Guiné 1970
Fonte: Zulmira André
80Mas como dizia, o episódio que recordo foi muito no início da guerra, ainda com o Allouette II, que era um avião muito pequeno sem espaço para as macas dentro do avião. As macas iam fixas lateralmente – cá fora – de modo que nem podíamos assistir ao ferido. Depois, com o Allouette III, já tínhamos espaço para as macas cá dentro e para assistir ao ferido. Um dia fomos buscar um ferido e estávamos no quartel numa zona de guerra no Sul da Guiné, onde tinha havido um bombardeamento. Num local mais avançado em relação ao quartel estava o chamado posto avançado das tropas que era um tenda de campanha com um médico e o pessoal militar que dava apoio no campo da enfermagem. Nessa manhã houve muitos feridos. Quando o avião estava para aterrar fazia uma volta sobre o aquartelamento para avisar que ia chegar à pista. Logo a ambulância avançava, e simultaneamente seguia para a pista um jipe de apoio e segurança. Na pista mudávamos o ferido da maca de campanha para a maca do helicóptero ou do avião. Naquela altura aterrámos na pista e lembro-me de ouvir dizer que o doente estava em estado grave. Perguntei de imediato se poderia ir lá abaixo à tenda. E fui. Encontrei um ambiente de luta pela vida. O rapaz, um soldado, tinha levado um tiro no tórax, e estava um fogareiro de petróleo a ferver material agulhas e outros instrumentos. Perguntei ao médico o que é que podia fazer, informando que tínhamos o avião à espera. O rapaz tinha uma hemorragia pulmonar, estava em risco, e eles tentavam cateterizar uma veia para pôr soro. Mas havendo uma hemorragia muito grande, as veias ficam colapsadas. Foi então que o médico pediu a um dos colaboradores que fosse ao quadro eléctrico do quartel buscar daqueles tubos vermelhos da electricidade e, retirando-lhes os fios metálicos, cateterizou a veia e conseguiu colocar o soro. E foi debaixo de perigo que avançamos com aquele corpo frágil, o colocámos num UNIMOG com uma tela com a Cruz Vermelha em cima e o transferimos para o avião. Chegou ao hospital com a pulsação mínima para poder sobreviver e recuperou. Ele era da zona de Castelo Branco e sei que a mãe dele me procurou, mas eu não fiz nada, apenas o assisti a bordo. O médico e a sua equipa é que fizeram um trabalho extraordinário.
81Havia muita solidariedade e muito empenhamento de todos, nas horas difíceis e nas circunstâncias mais adversas estabelecia-se uma relação de empenhamento. Eu senti muito isso entre todos os que viviam em África na luta contra uma guerra. Ao longo de tantos anos e com tantos casos tive muita sorte. Nunca tive mortes, mas também nunca tive partos. Uma colega minha ficou muita aflita, porque um bebé nasceu a bordo e não sei o que ela fez, sei que depois daquela ansiedade acabou por conseguir entregar a criança à mãe. Para além deste trabalho dos feridos, de um lado e do outro, havia o contacto com as populações, o apoio àquelas pessoas.
82Havia a população que encontrávamos nas saídas de apoio operacional no mato e com quem estabelecíamos relações. Mais uma vez dou o exemplo da Guiné, onde as coisas eram mais imediatas, devido à dimensão do território. Era tudo muito pequenino, negros, brancos, mestiços, civis, militares vivíamos todos em conjunto. Lembro-me de uma criança que vinha com frequência ao nosso Posto de Socorro visitar-nos. Era filha de um carpinteiro da Base Aérea. Um dia ele, o pai, disse-me que gostava muito que eu pudesse levá-la para Lisboa, para lhe dar uma vida que ele não lhe poderia dar. Expliquei-lhe que a minha actividade profissional era imprevisível e por isso era impossível impor uma responsabilidade dessas à minha família.
83Tínhamos um empregado na messe que era o Cherne, um homem com porte muito nobre, muito calmo e muito sereno. Era filho de soba. Um dia ele pediu‑me dinheiro por empréstimo; penso que foram 500 escudos, e pensei esquecer. Mau juízo, injusto juízo. Passados alguns dias, o Cherne veio‑me entregar o dinheiro e eu comentei “Cherne, eu nem me lembrava já. Deixe estar, esqueça”, ao que ele respondeu de imediato: “Senhora, se diz que não aceita, eu se um dia precisar outra vez, não posso contar com a senhora”. Era de uma delicadeza, de uma nobreza edificante. Penso que eram pessoas muito dignas e que gostavam de nós. Ao longo dos anos da guerra estive na Guiné em 63, depois em 65 e finalmente em 69, e de cada vez que lá voltava, encontrava uma outra Ivone, porque eles davam aos filhos os nomes das pessoas de quem gostavam. Entre eles e nós havia uma relação simpática e gratificante.
84Socorríamos também os feridos do lado adversário. Deontologicamente, homem/mulher, ferido/doente é, e deve ser sempre tratado como humano que é. Quando “o” tinha diante de mim como ferido, não fazia julgamentos, não se faz qualquer julgamento sobre uma pessoa que sofre. O humano fala sempre mais alto e penso que nós portugueses, por aquilo que me foi dado observar, temos uma sensibilidade muito humana. Mas chegavam-nos alguns papéis dos movimentos de libertação. Tenho ainda hoje um livro do Amílcar Cabral de iniciação primária dos combatentes, escrito em português, onde se ensina e se veicula a doutrina política da independência. A guerra para o bem ou para o mal ajudou ao desenvolvimento e à precoce autonomia. Eu tinha dúvidas em relação à descolonização, não que achasse que as coisas estavam bem. Mas Salazar deixou de governar em 1968. De 1968 a 1974 vão seis anos, ninguém mudou nada e só Salazar é que tem culpa? Todos nós fomos culpados, eu também porque não era capaz de dar gritos pela Paz. O que se passava é que enquanto havia um homem inocente a combater, que era o soldado, nós deveríamos estar numa retaguarda de apoio. No entanto, eu perguntava com frequência desde os primeiros dias: “Quando é que isto acaba, não há direito que isto aconteça…” É complicado, porque eu achava que nem que fosse por um minuto a guerra não deveria existir. Mas as circunstâncias levaram-nos a viver uma série de situações. Não estava ao nosso alcance descobrir a razão da guerra!
85Falávamos da guerra, daquilo que se passava de forma muito objectiva e das coisas engraçadas, fazíamos umas partidas, festas. Lembro-me da Companhia CCE274, aquartelada em Falacunda, na Guiné, em 1963. Tinha sido uma Companhia muito sacrificada e um dia em que eu e uma colega fomos em missão prestar assistência e evacuar feridos na sequência do rebentamento de uma mina, um militar desabafou: “Que pena, estas senhoras só vêm cá em dia de azar”. Respondemos prontamente: “Fechem a guerra e convidem-nos”. O convite veio no último domingo de Maio, para a festa do Senhor Santo Cristo. A Companhia CCE 274 era constituída por açorianos e os festejos iniciaram-se com uma missa celebrada pelo capelão-militar, seguida de almoço e batuque, em que os soldados, passados pela chaminé, ficaram negros e “transformaram-se” em negros. E as duas enfermeiras foram de Fafás. A guerra tinha estes aspectos humanos, agradáveis, solidários, ainda que na sombra daqueles festejos estivessem os mortos na picada e a eles prestámos homenagem.
86Tínhamos uma vida mentalmente saudável, mas com o coração sempre “atento”, um pouco sentido, porque as circunstâncias eram complicadas. Quando acompanhávamos um ferido perguntávamo-nos: “Como é que esta mãe amanhã vai saber deste filho? Ou a mulher?”. Estávamos sempre numa vivência de sofrimento. Todas as semanas, vinham feridos para Lisboa e uma de nós acompanhava-os, embarcando de regresso logo que possível. Eventualmente também vinham alguns feridos na TAP, dependia das circunstâncias. Morreu no ano passado um homem que tive ocasião de acompanhar numa destas viagens. Era oficial de Artilharia. Conheci-o na Beira, vindo de Nampula e recordo que quando chegou o avião o médico estava a tratar de um doente idoso, um colono branco. Quando o avião entrou em linha de voo, perguntei ao médico o que tinha aquele doente e se precisaria do meu auxílio. O médico disse-me que ele era cego dos dois olhos, e que não tinha uma perna. Fiquei apreensiva. Fui ter com ele, apresentei-me e disse-lhe que poderia contar comigo ao longo da viagem. Muito serenamente, com os olhos vendados, pôs as mãos dele nas minhas e disse-me: “Tive um azar muito grande, mas tive sorte”. Lembro-me que pensei onde estaria a sorte daquele homem. Perguntei-lhe se tinha dores. Disse-me que não e continuou: “Tive sorte por que os meus rapazes ficaram todos ilesos”. Lembro-me de estremecer perante a nobreza daquele homem. Ele era alferes do quadro, tinha um pelotão à sua responsabilidade e naquele estado dizia-me que tinha tido sorte, porque os seus rapazes estavam todos bem. Admiro profundamente esses homens que tanto sofreram. Muito pouca gente lhes dá o valor e tudo o que eles merecem, porque são homens extraordinários. Tenho a maior simpatia, admiração e respeito por esses homens e sempre que me chamam, nomeadamente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, vou sempre. Admiro extraordinariamente aqueles homens que não se queixam, que são cegos, deficientes em geral, por causa da guerra.
87Tive viagens difíceis para Portugal porque acompanhava-me sempre a preocupação de como é que a família daquele combatente iria reagir, a quem o deixaria entregue. Eram viagens muito longas e nesse aspecto era muito importante o apoio dado pela senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Os aviões militares não tinham um serviço de bordo, e portanto a Cruz Vermelha providenciava lanches; por exemplo o percurso de Nampula para Lourenço Marques, com paragem na Beira, eram muitas horas, eram os Dakota e os DC4 que os faziam. Eram aviões muito lentos. O DC6, o avião mais rápido da altura, demorava de Moçambique a Lisboa, cerca de 28 horas, mais do que um dia; de Luanda eram 20 horas e da Guiné eram 8 ou 10.
88No acompanhamento dos feridos a Cruz Vermelha dava muito apoio ao visitar os doentes nos hospitais militares ou afins. O Movimento Nacional Feminino estava mais vocacionado para a relação entre os combatentes e as famílias. Se, por exemplo, um soldado tinha deixado os seus haveres em qualquer sítio, tinha sido ferido e depois vinha para o hospital e daí para Portugal, o Movimento Nacional Feminino através de cartas ou por contactos através dos seus núcleos fazia o possível para que as coisas fossem entregues ao soldado ou às famílias. Eu tenho cartas de militares, que me pediam que falasse com pessoas por eles indicadas, familiares ou que tratasse de pequenos assuntos, o que contribuía para o bem-estar daqueles jovens. Nessa medida, a Cruz Vermelha e o Movimento Nacional Feminino foram instituições solidárias e humanas, importantes para suavizar o vazio e o desconforto da viagem de um combatente, particularmente daqueles que sofriam fisicamente e para quem o desconforto psíquico e moral se tornava ainda mais difícil de suportar.
89Aliás, a mulher portuguesa é uma mulher solidária. Por exemplo, aquelas que acompanharam os seus maridos tiveram também um importante papel.
90Lembro-me de uma amiga para quem eu trazia notícias quando vinha a Lisboa. Falava-lhe do marido e ela comovida e grávida, imaginava o pior, o que poderia acontecer, porque ao longe há fantasmas que se criam e que aumentam o sofrimento humano. Dizia-lhe sempre que depois de o bebé nascer, ela deveria ir. Dizia-lhe que na Guiné, as crianças eram lindas, andavam tranquilas na rua e tinham olhos bonitos. Falava-lhe da importância da retaguarda de apoio que as mulheres que lá estavam constituíam. Os próprios homens só quando elas lá estavam é que muitas vezes se percebiam que era fácil e saudável estarem todos juntos. Claro que não era possível que a mulher estivesse numa zona de combate e de risco, mas seria melhor que o marido viesse quando possível, do que verem-se de seis em seis meses ou de ano a ano. Para a dimensão familiar foi muito importante a presença das mulheres e para o equilíbrio dos combatentes também. Elas deram um contributo fundamental. Para mim, por exemplo, a dimensão espiritual, a minha prática e vivência de fé, deu-me (e dá‑me) força para na honestidade da minha intenção desafiar as coisas difíceis, para ir até ao fim, com toda a entrega, porque não se pode desistir, não se pode vacilar quando está em jogo a vida humana, e na guerra a vida humana é muito frágil.
91Por isso, vivi o 25 de Abril toda contente, a bater palmas, porque finalmente acabava a guerra. Mas ao fim de uma semana fiquei triste deixei de perceber o que estava a acontecer. Eu tinha regressado após tantos anos de África e estava na Força Aérea, a trabalhar no Hospital. Fui saneada a 17 de Abril de 1975 e isso surpreendeu-me. O hospital, no qual tanto me empenhara, ia abrir em Janeiro de 1976. Nunca me disseram a razão do meu saneamento e para que efectivamente eu saísse tinha de assinar uma rescisão de contrato com a Força Aérea. Andei um ano e meio naquela situação, falei com o General Costa Gomes, mas nunca me disseram a causa e eu nunca assinei nada. Após a eleição do General Eanes fui reintegrada na vida activa hospitalar até à minha reforma.
92Através da Associação da Força Aérea, que promove encontros e outro tipo de eventos, mantenho um convívio frequente com algumas das pessoas que estiveram em África na mesma altura que nós, enfermeiras. Sempre disse que não queria voltar a África.
93Contudo, há uns tempos, na minha paróquia, onde sou catequista e nos dedicamos em equipa a preparar pessoas adultas para o baptismo, na década de 80, apareceu um rapaz da Guiné, de 19 ou 20 anos. Andava nas obras e estudava. O pai era muçulmano, mas ele queria ser baptizado. Cultivámos uma certa relação afectiva, de amizade e, por vezes, encontrávamo-nos em grupo. Finalmente o rapaz baptizou-se e continuou a conviver connosco. Um dia, disse que gostava de ser padre. E há dois anos foi ordenado sacerdote. No ano passado, quando fez um ano de ser ordenado, convidou-nos a acompanhá-lo à Guiné. Vivi um terrível dilema, não queria mesmo ir, expliquei-lhe as minhas razões, mas acabei por ceder e sofri muito. Lembrei-me das casas cor‑de‑rosa velho ou caiadas de branco naquele verde luxuriante de Bissau e olhava para aquilo tudo degradado, aquela pobreza extrema, aquelas crianças na rua, ao abandono. Não há explicação, não há justificação possível para mim. Fiquei muito chocada. Não quero voltar a Angola nem a Moçambique.
94Costumo dizer que estas guerras para mim, e talvez para muita gente, foram duas edições de um mesmo livro em que há as duas partes bem distintas nos seus prós e contras. Se não houvesse mortos e feridos no passado era tudo muito bom. Mas não os posso esquecer, nem quero, tenho muito respeito pelos ex-combatentes. Para mim, aqueles anos foram de uma realização muito completa e guardo saudade, mas a saudade não é saudosismo, é sim a memória de tudo o que foi saudável.

rccs.revues.org

Sem comentários: