Guerra Colonial
Lázaro Cavandame
imagem de A. Cardoso Martins
1969 – Abril.3 (5afeira Santa)
No nordeste de Moçambique, é anunciado que as autoridades de Porto Amélia receberam a rendição do dirigente da FRELIMO Lázaro Cavandame, chefe de grupos macondes que têm actuado no distrito de Cabo Delgado.
Enquanto isso no interior transfronteiriço sudeste da Tanzânia, 16 lugares-tenentes de Cavandame haviam sido perseguidos pela FRELIMO e capturados, tendo outros 14 logrado atravessar o Rovuma e apresentar-se às tropas portuguesas, cujo comando em Nampula continua a ser exercido pelo general Costa Gomes (a ser em breve substituído pelo general Kaulza de Arriaga), mantendo-se o comando-chefe entregue ao general António Augusto dos Santos.
– «O quadro actual da FRELIMO, com a sua desorientação, após patente afastamento [em Jul68] dos macondes (ausência do Congresso), assassinato de [Samuel] Cancomba [em território da Tanzânia junto à fronteira com Moçambique], defecção do padre Mateus [Pinho Gwenguere], morte de Mondlane e, finalmente, apresentação de Cavandame e algumas mais, [...] alterou substancialmente a situação existente, tornando o inimigo muito mais vulnerável em Cabo Delgado e susceptível a uma acção mais decisiva. Adquiriu-se assim a ideia geral de que valeria a pena efectuar um reforço de acções – todas elas – em Cabo Delgado.»
– «Um movimento rival, o COREMO, faz concorrência à FRELIMO, cujos agentes assassinaram o seu presidente Gabriel Machaba. Com efeito, os choques têm sido tão violentos entre movimentos – ou mesmo no interior de cada movimento, entre líderes representando diversas etnias –, que houve numerosas rendições e numerosas reuniões com as autoridades portuguesas. A mais célebre foi a do chefe maconde Lázaro Cavandame, que se rendeu com os seus homens.»
– «A história da deserção do Lázaro Cavandame ainda se passou comigo. Fui a única pessoa com responsabilidade que não foi a Porto Amélia cumprimentar o Cavandame. Eu achava que aquilo tinha sido uma traição e que o Cavandame, ao desertar, só queria receber benesses, sem querer verdadeiramente colaborar connosco. Por isso eu não fui. Em 1969 a FRELIMO estava num período difícil. Tinha morrido o Eduardo Mondlane e, quer em Cabo Delgado quer no Niassa, nós tínhamos reduzido substancialmente a guerrilha. A FRELIMO estava na mó de baixo.»
Ao fim da tarde em Dar-es-Salaam o comité central da FRELIMO distribui um comunicado, no qual – após responsabilizar Cavandame pelo assassinato de «um dos comandantes militares da FRELIMO» no final do transacto –, afirma que:
– «Cavandame nunca teve nenhuma responsabilidade militar na FRELIMO, sendo a sua actividade meramente administrativa. Lázaro nunca foi chefe tribal em Moçambique. A única influência que ele tinha sobre o povo, resultava da posição que a FRELIMO lhe tinha dado. A razão da sua deserção é portanto a de escapar ao julgamento por este assassinato, do qual é acusado de ser o organizador pelos 16 elementos do seu grupo, presos à espera de julgamento.»
¹ (governador-geral Rebelo de Sousa, carta de 06Mai69 ao CCFAM general Augusto dos Santos);
² (Soustelle, op.cit pp.92);
³ (Costa Gomes, em 27Abr95 a Freire Antunes)
informação de LC123728
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jorge pimentel [mailto:pimentjorge@gmail.com]
Enviada: quinta-feira, 13 de Setembro de 2007 20:38
Cc: ultramar@terraweb.biz
Assunto: Entrevista ao chefe maconde Lázaro Kavandame na sede do governo do distrito de cabo delgado(Porto Amélia)
Não posso precisar se foi durante o ano de 1969 ou 1970 que fui destacado para servir de interprete a uma entrevista do apresentado chefe maconde Lázaro Kavandame para um jornalista sul africano não me recordo qual era o jornal em causa.
Penso que a razão principal porque fui escolhido deveu-se ao facto de eu falar inglês sem problemas e isso foi-me perguntado pelo meu chefe directo Major Sanches chefe da 1 secção (pessoal e logística).
Éramos 4 pessoas na entrevista: o Lázaro Kavandame, eu, o jornalista sul-africano e o Inspector Borges da Pide.
Comecei por perguntar ao Lázaro Kavandame qual a razão ou razoes que o levaram a apresentar-se às n/t, tendo ele respondido que Portugal dava uma vida melhor boa alimentação bom alojamento bom tratamento enfim tudo o que se podia desejar de bom...O jornalista perguntou se não teria havido outra razão ou razões da sua entrega as nossas tropas tendo ele respondido que não, inclusive foi-lhe perguntado se ele não teria sido expulso da Frelimo devido ao facto de ser um dissidente tendo ele respondido que não, que saiu porque quis e pelas razões acima apresentadas. Realmente no decurso da entrevista via-se que ele não era uma pessoa culta ,antes pelo contrário, não devia ter praticamente estudos nenhuns. Tinha alguma dificuldade em perceber as perguntas ou fazia-se desentendido, e falava um português macarrónico como era natural.
Tenho uma pessoa minha amiga que está em Nampula a dar aulas na universidade e quase todos os dias falamos pelo skype e aconteceu há poucos dias ter falado com o procurador militar Coronel Matemanga que é aluno do meu amigo e tivemos o prazer de falar em diversos assuntos relacionados com a guerra colonial entre as quais o Lázaro Kavandame. O Coronel Matemanga é um homem de 40 e poucos anos portanto como é óbvio era rapaz durante a guerra colonial mas sabe muitas coisas acerca da guerra. Ele confirmou-me que o Lázaro Kavandame queria uma posição de destaque na Frelimo posição essa que não lhe foi dada em virtude de não ter habilitações nem estudos para tal, tendo sido expulso das suas fileiras. Portanto como vêem esta é que é a verdade nua e crua!
Respondendo à 2.ª parte da sua pergunta confirmo que o Coronel Basílio Seguro era o governador do distrito e o Inspector Borges era o chefe da Pide nessa altura.
Os meus cumprimentos e agradecimentos
Jorge Pimentel
informação de Jorge Pimentel
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Artur Miguel Murupa
1970 - Dezembro.7 (2ª feira)
No nordeste de Moçambique uma patrulha militar, em operações na área de Macomia, recebe a rendição de Miguel Artur Murupa, dito "ministro dos Negócios Estrangeiros" da FRELIMO.
informação de LC123728
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Enviada: quinta-feira, 13 de Setembro de 2007 20:38
Cc: ultramar@terraweb.biz
Assunto: Entrevista ao chefe maconde Lázaro Kavandame na sede do governo do distrito de cabo delgado(Porto Amélia)
Oficiais milicianos optam pela deserção contra a guerra colonial
(extracto)
Nota de declaração de interesses. Fernando Cardeira é meu tio. Este artigo foi feito com base nos testemunhos dele, e no arquivo da PIDE da minha família (mãe, tio), que consultei. Foi publicado originalmente em Os Anos de Salazar (coord António Simões do Paço, e na revista Trabalho, dos arquivos da social democracia, na Suécia). Fi-lo em homenagem ao meu tio, e aos outros desertores, e em respeito pelos guerrilheiros dos movimentos de libertação.
Juventude, deserção, coragem, medo, fraternidade, juras de amor. A história dos sete oficiais portugueses que em 1970 desertaram do Exército colonial tem todos os ingredientes de uma boa história e é emblemática de toda uma geração de estudantes inspirados pelo Maio de 68, de oficiais milicianos horrorizados com a matança colonial, de jovens desejosos de romper as amarras do autoritarismo e dessa imensa prisão cultural e intelectual que era o Portugal de Salazar.
A deserção teve uma vasta repercussão no regime de Salazar e a nível internacional. Traidores à pátria em Portugal, heróis na Suécia, os seis oficiais fizeram da sua deserção uma luta contra a guerra colonial. Amílcar Cabral escreveu-lhes a agradecer e as suas declarações contra o colonialismo foram ouvidas pelos guerrilheiros no meio do mato da Guiné, de Angola e de Moçambique.
A mobilização veio na Ordem de Serviço n.º 105, de 5 de Maio de 1970, do Regimento de Infantaria n.º 5 das Caldas da Rainha. Nela mobilizavam-se os tenentes milicianos Vítor Pires e Vítor Bray (para Angola), Albino Costa, Constantino Lucas, Fernando Cardeira, José Marta e Silva e Fernando Mendes (para a Guiné), António Baltazar, Artur Pita e Carlos Almeida (para Moçambique), entre outros ex-alunos da Academia Militar que não viriam a desertar.
Quando a ordem de mobilização chegou, a decisão de desertar já tinha sido tomada.
Tinham entrado para a Academia Militar aos dezoito anos de idade, no ano em que rebentou a guerra, 1961, sem que tivessem consciência de que a guerra ia ser longa e difícil – pensavam que nunca chegaria a vez deles, pois o curso de Engenharia na Academia tinha uma duração de pelo menos sete anos. A escolha da Academia expressava muito mais o desejo de mobilidade social, uma oportunidade para estudar e deixar a província para trás, do que a ambição de uma carreira militar. Mas a tenacidade dos movimentos anticoloniais deixou o Estado Novo de rastos – até o fazer cair – e a guerra prolongou-se.
Um vislumbre do Maio de 68
Logo nos primeiros anos da guerra chocaram-se com o que ouviram. Fernando Cardeira lembra-se de como «entre duas cervejas, os oficiais que vinham da guerra falavam orgulhosos de prender, torturar e matar (…). Lembro-me de conhecidos ‘heróis’ de guerra condecorados pelo Salazar, como o alferes Robles e outros, a gabarem-se das atrocidades que cometiam, dos massacres que por lá faziam».
O curso de Engenharia da Academia era de sete anos, dividido por quatro na Academia e três no Instituto Superior Técnico. Dentro da Academia acabavam por ter uma grande liberdade de conversar, entre militares, e até havia uma secção cultural que podia encomendar livros como A Mãe, de Máximo Gorki. Em 1965, passaram a estudar no Técnico, sem farda, livres para assistir às RIAs (Reuniões Inter-Associativas), plenários de estudantes, sessões de canto livre, manifestações de rua. O contacto com o Técnico foi determinante para consolidar a sua oposição à guerra colonial e se aproximarem, alguns, das ideias de esquerda. Fernando Cardeira, talvez o mais politizado do grupo, lembra-se de, nesses anos, ter lido mais Marx, Engels e Lenine do que livros de engenharia.
A sorte também conta no rumo da vida. Em 1968, alguns deles participaram numa viagem de finalistas do Técnico pela Europa. A viagem passou por Paris em Abril de 1968, já as ruas estavam cheias de cartazes com a cara dos revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Daniel Cohn-Bendit e Alain Krivine iam à cabeça das manifestações, rodeadas pela polícia. Esse foi um momento fulcral da decisão. Quando chegam a Portugal, da viagem, alguns pedem dispensa da Academia Militar. Saem da Academia. A saída não era fácil – para além do choque que isso provocava nos pais e noutros familiares, o regime obrigava a pagar 34 contos para poderem ter dispensa. Uma exorbitância, para quem tinha um salário mensal de pouco mais de 2 contos. Muitos tiveram que pedir dinheiro emprestado e conseguiram, sem sair do quartel durante quase um ano, juntar para pagá-lo de volta. Ainda hoje guardam os recibos daqueles 34 contos. Era este o preço a pagar para não morrer na guerra? Era este o preço da liberdade? Era, pelo menos, a primeira factura.
Saído da Academia Militar, o grupo é integrado no Exército, já não como oficiais do quadro permanente, mas sim do quadro de complemento, como oficiais milicianos. Engenheiros ou quase, transformados em «bons» atiradores de Infantaria, andaram entre 1969 e 1970 a percorrer o País, já como instrutores porque tinham alguma formação militar: Mafra, Leiria, Caldas da Rainha, Évora. Foi aliás nas Caldas da Rainha que se reuniram pela primeira vez, em Janeiro de 1970, com o propósito de organizarem a deserção, já determinados a não fazer a guerra, desse por onde desse, e convencidos de que não escapariam à mobilização para a frente da guerra.
A salto até França
Não estavam enquadrados em nenhum partido. Tinham tomado a decisão de desertar. Não sabiam como. Passou-lhes pela cabeça, entre outras coisas, sequestrar um barco – a memória de Henrique Galvão e do sequestro do Santa Maria ainda estava fresca na cabeça de todos. Mas a ideia nunca passou disso, uma ideia. Mais realistas, pensam em como arranjar documentos e passar a fronteira.
O grupo que finalmente decide desertar era todo constituído por tenentes milicianos que tinham desistido da Academia Militar. Juntou-se a eles um aspirante miliciano que não tinha sido aluno da Academia Militar, mas também queria desertar. Tinham então 26, 27 anos. Eram quase todos casados, alguns com filhos pequenos. A decisão de desertar foi, por isso, uma decisão tomada em família, com o apoio incondicional das mulheres, que poucas semanas depois se juntaram a eles na Suécia.
A família de um dos desertores era do Gerês e um primo dele era passador e vivia em Ourense. Ele trataria de tudo. Seis decidiram ir logo a 23 de Agosto; um deles optou por ir mais tarde para não perder uma soma grande de dinheiro de ajudas de custo que tinha a receber nos Açores. Passou pouco mais tarde pela raia perto de Mourão, vila de onde era natural um familiar. Os outros três, Vítor Pires, Vítor Bray e Albino Costa desertaram em Outubro, para a Bélgica.
O grupo de seis partiu para o Gerês. Aí passaram, no dia 23 de Agosto de 1970, a fronteira em plena luz do dia, cerca das 4 da tarde. Ainda hoje guardam fotografias descontraídas na fronteira do Gerês, perto da Portela do Homem, onde os oficiais aparecem sorridentes, num belo dia de sol. Pagaram ao passador pouco mais de 1500 escudos, «preço de amigo» – naquela altura chegava a pagar-se 10 contos para passar a fronteira, com o risco de ser aldrabado. Os 1500 escudos incluíam o autocarro até Paris e uma noite dormida numa pensão de Ourense.
Na fronteira francesa tiveram pela primeira vez medo. Não tinham passaportes em ordem, uns já estavam caducados. A polícia francesa mandou sair do autocarro todos os que não tinham passaporte. À frente deles três emigrantes, muito jovens, foram falar com a polícia e voltaram satisfeitos para o autocarro. Do grupo, avançou um primeiro elemento para a entrevista com a polícia francesa. Este volta pouco depois, branco como a cal, ao autocarro e diz que «nada feito, a polícia não os deixa passar». Assustados, vão ter com os jovens emigrantes e perguntam-lhes como fizeram para passar, o que teriam dito aos polícias franceses. Os jovens emigrantes, que visivelmente já teriam feito outras viagens, aconselharam-nos a dizer pouco, fingir que não falavam francês e balbuciar, meio francês meio castelhano, a palavra «trabalhar, trabajar, travailler», apresentando um endereço como local de destino em França. Assim o fizeram e conseguiram passar sem problemas. A França abria a porta à mão-de-obra barata, mas não dava guarida a desertores da guerra colonial.
Chegados a Paris deambularam, entre amizades e conhecimentos solidários, duas semanas pelas ruas da cidade. Dormiram aqui e ali – Paris estava cheia de exilados portugueses, que se encontravam nas esplanadas do Quartier Latin. Duas semanas sem saber o que fazer, até que encontraram um camarada, exilado na Suécia, de férias em Paris, que lhes falou da hipótese de irem para a Suécia, onde entre emigrantes e desertores, já se encontravam, sobretudo no Sul, algumas centenas.
Na chegada à Suécia são recebidos calorosamente. O jornal Upsala Nya Tidning faz toda a capa da chegada dos desertores: «Seis oficiais portugueses pedem asilo político em Uppsala.» O regime dá-lhes asilo político, casa, algum dinheiro e depois oferece a todos uma bolsa de estudo para aprenderem sueco. No primeiro ano não se organizam politicamente, mas mais tarde, já em 1971, Fernando Cardeira entrará para a secção na Suécia da OCMLP – uma organização de inspiração maoísta; os outros também se organizarão politicamente em diferentes partidos. Logo pouco meses depois de chegarem à Suécia encontraram-se com Palma Inácio, que lá se deslocou de propósito para os convidar a juntarem-se à LUAR e irem para Portugal fazer a revolução. Recusaram porque, como diz Fernando Cardeira, «não éramos iluminados politicamente, mas não queríamos voltar para Portugal para participar num ‘projecto’ revolucionário que não apresentava qualquer consistência (…). A viagem de 1968 tinha-nos aberto outros horizontes, tínhamos visto os filmes que não podíamos ver em Portugal, ler os livros que não se podiam ler, coisas tão corriqueiras como ver a montra de uma sex shop».
«Só há duas posições correctas: sabotar ou desertar»
Ainda antes de chegaram à Suécia dedicaram-se a fazer da sua deserção um acto político contra a guerra. De Paris mandaram centenas de postais – plano que já tinham preparado em Portugal – para os seus ex-instruendos do Exército, ex-colegas da Universidade e da Academia Militar, amigos e familiares, contra a guerra e a denunciar o colonialismo. Em Estocolmo, logo a 17 de Setembro, fizeram uma conferência de imprensa com ampla repercussão nos media suecos. Logo em 1970, Fernando Cardeira lembra-se de ter ido a Estocolmo participar em manifestações contra a guerra do Vietname onde conheceu desertores dessa guerra. A notícia da sua deserção chegou também a jornais franceses, alemães, italianos, noruegueses e dinamarqueses. Uma entrevista foi difundida pela emissão portuguesa da BBC.
Não havia telemóveis, mas havia o sistema de transmissões da tropa e a notícia voou por todo o Portugal e colónias. O PAIGC Actualités, de Setembro de 1970, publica na capa a foto dos seis com o título «6 tenentes portugueses, 4 destinados ao nosso país, recusaram a guerra colonial». Junto à fotografia, a declaração dos tenentes: «Nós apoiamos sinceramente os homens que, de armas na mão, lutam contra o exército colonial português em África.»
Em Setembro de 1970 cada elemento do grupo grava, em Uppsala, uma mensagem pessoal, transmitida posteriormente por diferentes rádios que apoiavam os movimentos de libertação nas colónias portuguesas. Na Rádio Conakry, por exemplo: «Daqui fala o tenente miliciano Cardeira (…). Dirijo-me principalmente aos que melhor me conhecem, aos oficiais que foram meus alunos em Mafra no 3.º Turno do COM de 1969, aos furriéis milicianos que encontrei no 1.º e 2.º turnos de CSM de 1970 das Caldas da Rainha, aos soldados que me conheceram em Leiria e Évora. Falo-vos para vos dizer, mais uma vez, que é criminosa a guerra em que participam. É uma guerra contra um povo que luta pela sua independência e liberdade. É uma guerra que vai empobrecendo o nosso Portugal e que lhe sacrifica os filhos em proveito dos grandes senhores do capitalismo internacional. No Exército português só há duas posições correctas: ou sabotar ou desertar. Todos sabemos que é impossível sabotar a guerra colonial quando se está no meio do mato. Aí há que lutar pela sobrevivência (…). É com isso que contam os que vos mandam para a frente (…). Eles sabem que vocês não vão de vontade, mas têm que se defender e, portanto, defender os interesses deles. Portanto, quando sabotar não é possível, só nos resta a deserção. E que ela não vos assuste! Nós viemos sete de uma vez e fomos bem recebidos em todo o lado. E posso garantir-vos que podem desertar porque também aí serão bem recebidos pelo PAIGC que vos enviará para o país que escolherem.»
No dia 31 de Dezembro de 1970, o ministro da Defesa Nacional e do Exército, Sá Viana Rebelo, faz um ataque cerrado aos desertores, considerados traidores à pátria. Nas suas declarações, publicadas no Diário de Notícias desse dia, o ministro procura esconder que estes homens tinham servido no Exército e realça o perigo que representa a politização das universidades: «Os comandos responsáveis têm manifestado ultimamente as suas apreensões pelo estado em que chegam aos cursos de oficiais e sargentos milicianos muitos dos seus instruendos, oriundos das universidades, de liceus e de escolas técnicas (…). Em vários destes estabelecimentos não se consegue ensinar capazmente. São hoje verdadeiros centros de subversão (…). Tão nefasta é esta acção que ainda há alguns meses desertaram para a Suécia seis tenentes milicianos, antigos alunos de Engenharia da Academia Militar, que, nos termos da legislação até há pouco vigente, tiveram de frequentar os três últimos anos numa escola de engenharia civil de Lisboa e que neste estabelecimento receberam a inspiração suficiente para trair a pátria e fazer no estrangeiro uma torpe campanha contra o seu país e contra os seus camaradas do Exército, onde efectivamente nunca serviram».
Nesse ano de 1970 começa a «caça» aos desertores. O seu processo na PIDE aumenta, com cartas que incluem vasculhar toda a vida privada. Conceição, mulher de Fernando Cardeira, descobre, quando vem a Portugal em 1971, que lhe está interdita a saída do país, pela Ordem de Serviço n.º 60 de 1 de Março de 1971, emitida pela DGS. Quando chega à fronteira de Marvão é impedida de sair, humilhada em frente de outros passageiros com o acto de apreensão do seu passaporte. Obrigada a passar a noite na Guarda Fiscal, perde o bilhete de comboio para Madrid e o de avião para a Suécia, e é recambiada para Lisboa. Durante um mês, caminha quase diariamente para a Rua António Maria Cardoso para tentar saber na PIDE por que não pode sair de Portugal. Não obtendo nunca qualquer resposta, decide fugir pela fronteira de Elvas e, via Madrid, consegue regressar à Suécia.
O grupo continuou na Suécia até ao 25 de Abril de 1974. Dois deles, António Baltazar e José M. Silva, ficaram lá a viver até hoje e são cidadãos suecos. Os outros regressaram e fixaram-se em Portugal.
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Crescer em tempo de guerra
A primeira memória é de fotografias, fotografias terríveis, de corpos esventrados, decepados, mutilados. Mais tarde reproduzidas em livro, com o título «Genocídío contra Portugal», traduzido para francês e inglês, haveriam de servir à propaganda portuguesa contra os movimentos de libertação - mas, nesse primeiro momento, eram apenas a noção de um mundo a desabar, a memória de uma terra longínqua que de lugar de sonho se transformava em lugar de pesadelo, o medo imenso que aqueles que se conhecia pudessem estar entre as vítimas ou os assassinos.
E à noite, entre os ruídos familiares, infiltravam-se os dessa outra noite, africana, já não cruzada pelo som amigo dos batuques, mas por gritos e gemidos, e a dúvida «se eu estivesse lá?». Era uma pergunta sem resposta simples, as fotografias tinham feito o seu trabalho, a violência das imagens sobrepunha-se ao raciocínio, diminuíam a capacidade de pensar. Pessoas insuspeitas de simpatia pelo regime, partidárias da independência das colónias, leitoras de Fanon ou de Césaire, admitiam participar em milícias nas colónias, invocando a legitima defesa - e os primeiros homens a partir «para Angola e em força» tinham a apoiá-los a maioria de uma nação longamente adormecida sobre o verdadeiro significado do colonialismo.
Mas os homens continuaram a partir e a máquina de guerra reclamava os amigos cada vez mais próximos: um vizinho, um primo, o irmão mais velho, depois o caçula... Como esquecer o primeiro que foi, o esforço para que a despedida soasse como habitualmente, a forma como, pela primeira vez, se lhe via o rosto, dolorosamente se fixava cada um dos traços, os olhos mais fundos do que o habitual, o sorriso quase a desfazer-se em lágrimas, os maxilares cerrados? «Um homem não chora, um homem não chora, um homem não chora ... ».
Depois, à medida que o tempo ia passando, as notícias começavam a chegar: anódinas, anedóticas, nos aerogramas que se sabiam submetidos a censura, murmuradas as outras nos empregos, nas faculdades, nas tascas ou nos adros das igrejas, ao fim da missa, em que o padre não esquecera a habitual referência aos ausentes por motivo da guerra...
Era um tempo em que, ao domingo, as igrejas das aldeias se enchiam de gente, vestida nos seus melhores trajes, as crianças protestando com os sapatos que lhes magoavam os pés habituados a andar livres. À entrada, as mulheres punham os véus na cabeça, mergulhavam os dedos na bacia de água benta e, com os filhos pela mão, dirigiam-se aos lugares da frente. Os homens mantinham-se no fundo da igreja, donde mais facilmente poderiam sair antes do fim para fumar um cigarro ou trocar algumas palavras. Depois vinham as mulheres, as famílias, em grupos, voltavam para casa, e as notícias circulavam, terríveis como as fotografias dos primeiros dias: «A filha da costureira, sabes? O noivo veio paralisado da guerra... » - e seguiam-se os pormenores, com minúcia perversa. Cruzavam-se, nas vozes, a pena e a admiração, mas também a condenação já implícita se acaso àquela rapariga, tão nova e cheia de vida ocorresse não querer efectuar esse casamento, que o próprio noivo tentava anular, considerando terem-se alterado as premissas do namoro...
A guerra invadia agora todas as conversas e, à medida que mais gente se implicava nela, cresciam também as dúvidas sobre o sentido da presença portuguesa em África e as reservas face ao esforço de guerra. Jornais clandestinos faziam eco das violências praticadas pelas tropas nas colónias, milicianos chegados ao fim do seu tempo de tropa desabafavam, nas horas seguintes à chegada, a amargura pelo que tinham sido forçados a viver, as associações de estudantes faziam cada vez mais da guerra e da mobilização motivos de contestação. Silenciosamente, primeiro, depois mais afoita, a defesa da deserção ia fazendo o seu caminho, e ninguém punha perguntas quando um jovem, mais um, desaparecia dos sítios do costume, saído do país a salto. «Le désérteur», de Boris Vian, cantado por Moloudji, tornou-se uma das canções mais tocadas nas «sonoras» das universidades. A «Ronda dos Paisanos», na voz de Zeca Afonso, a «Canção com Lágrimas» ou a «Menina dos Olhos Tristes», cantadas por Adriano, moravam em todas as cabeças, em todos os corações. Impedidos os jornais de falar da guerra de África, os jovens portugueses seguiam, com atenção de peritos, a do Vietname. E as raparigas, enquanto se perguntavam se, jamais, namorados e irmãos voltariam a ser o que eram «antes», antes que a guerra os tivesse devolvido tristes, inquietos, absortos, por vezes violentos, marcados pela memória de um mundo que podiam compartilhar, aprendiam termos até então reservados aos homens, G3, «batalhão», «mina», «morteiro», graus da hierarquia militar e nomes de terras que nunca veriam, Negaje, Nambuagongo, Como, Mueda ...
Em 1968, sete anos depois do início da guerra, os estudantes gritaram pela primeira vez, na rua, o seu protesto contra ela. Disfarçaram-no ainda de contestação à presença norte-americana no Vietname, o local de concentração foi ainda a embaixada americana, mas os gritos, longamente silenciados, soltaram-se, e a manifestação tornou-se, de repente, anticolonial.
Mais tarde viria a palavra de ordem «Nem mais um só soldado para as colónias», gritada a vermelho nos muros da cidade, em acções que se inspiravam nas tácticas da guerrilha, as desses mesmos contra quem os soldados portugueses lutavam, em terras de África. Seis anos depois dessa primeira manifestação, a guerra chegava ao fim. Os homens regressavam a casa, aos pais, às namoradas, às mulheres, aos filhos entretanto nascidos. Mas não desapareciam nem as memórias nem as sequelas - que perturbam ainda, com maior ou menor gravidade, os que cresceram e viveram em fundo de guerra.
Comentário de Carlos Vinhal*, ex-Fur Mil, CART 2732 (Madeirense), Mansabá, 1970/72, na qualidade de tertuliano:
Alguns considerandos em relação ao poste 6292** de hoje, 2 de Maio de 2010
Camaradas
Este blogue está a deixar-me deprimido.
Julgava eu que nós, os portugueses, somos um povo de brandos costumes, hospitaleiros, afáveis, amantes da paz, amigos dos vizinhos, etc., e afinal somos (ou fomos) um bando de assassinos na guerra colonial. Posso excluir-me? Muito obrigado.
1. Escreveu em tempos o Alberto Nascimento, que foi só e apenas Soldado Condutor Auto, logo menos interventivo em operações de grande envergadura:
Contar com pormenor o que se passou no decorrer da operação é impossível, já que fui colocado num posto de onde só podia abarcar uma pequena parte da povoação, que ocupava uma área enorme, mas o constante matraquear das auto-metralhadoras e G3 deixavam antever um morticínio.
Quando a meio da tarde o Comando deu por terminada a operação é que fui, pelo caminho, vendo a destruição provocada pelos lança-chamas, auto-metralhadoras e G3. Samba Silate estava, na sua maior parte, destruída. Num largo da povoação estavam concentrados um grande número de prisioneiros, um dos quais, talvez movido pelo desespero e terror, intentou a fuga, tendo sido abatido. Os outros foram divididos entre Bafatá e Bambadinca, de onde poucos ou nenhuns saíram.
Posso ajudar o Nascimento com umas contas rápidas para calcular o tal morticínio.
Se 20 militares levarem cada um, uma G3 com 5 carregadores e se aproveitar uma em cada quatro munições disparadas, matar-se-ão ali num intantinho... vamos lá ver:
20 militares X 5 carregadores X 20 munições = 2000 munições X 1/4 = 500 mortos.
Estamos ainda a desprezar a metralhadora de fita (MG47), mais eficaz, o lança granadas e o lança-chamas. Isto sim, é morticínio, nem o Shelltox mataria com tal eficácia.
Nascimento, afinal quantos mortos viste quando chegaste ao local da operação?
2. Quanto ao Armandino, que em comentário, diz o seguinte:
Quando cheguei a Bissau em Outubro de 66 comentava-se que houve uma Companhia de Madeirenses que teve que ser embarcada à força, pois eles recusavam-se a embarcar para a Metrópole. Diziam que tabanca por onde eles passassem deixava de existir. O lema deles era que quanto menos pretos houvessem mais depressa acabava a guerra.
Não faço a mínima ideia que companhia era mas sei que regressou em fins de 66
Vamos lá ver Armandino.
As primeiras Companhias insulares a irem para a Guiné, tirando as Berlengas, foram:
Do BII17 – Angra do Heroísmo - Açores - a CCAÇ 1438 que chegou à Guiné no dia 18 de Agosto de 1965 e regressou a 18 de Abril de 1967. Em Outubro de 1966 estava em Quinhamel.
Do BII19 – Funchal – Madeira - a CCAÇ 1439 que chegou à Guiné a 02 de Agosto de 1965 e regressou a 18 de Abril de 1967. Em Outubro de 1966 estaria em Enxalé.
Podes precisar?
Diga-se em abono da verdade que qualquer Companhia que se prezasse não aceitaria vir embora antes de terminado o tempo normal de comissão, ainda por cima sendo madeirense e gostando de matar. É de homem.
Caro Armandino, recentemente, cerca da 1 hora da madrugada, fiz com outro amigo, o percurso entre a Sé e o Casino do Funchal (alguns quilómetros) e não fomos atacados por nenhum madeirense, nem vimos cadáveres na berma da estrada. No Funchal vive-se lindamente, anda-se de noite com mais segurança do que no Porto ou em Lisboa.
Já agora uma achega, não seria uma Companhia de algarvios, ou alentejanos, ou transmontanos, ou de militares dos arredores do Porto, gente que até apedreja os autocarros do Benfica?
É conveniente não se meterem rótulos nas embalagens de que não se conhece o conteúdo, olha o que aconteceu no Hospital de Santa Maria, de Lisboa.
Não esqueças Armandino que as Companhias madeirenses e açorianas tinham no seu Comando Oficiais e Sargentos oriundos do Continente, e um ou outro insular, que também os havia e bons.
Não podemos dizer que não cometemos proezas de que nos envergonhemos hoje, mas alimentar morticínios por estimativa, e alegar que houve uma Companhia daqui ou dali que fez isto ou aquilo segundo se ouviu dizer, é pura especulação e não é importante para a história que aqui queremos deixar.
Matar e morrer faz parte da guerra. Contemos os factos que vivemos, e mesmo assim esperemos que alguém, na mesma hora e no mesmo lugar, tenha visto o filme doutra maneira diferente da nossa.
OBS:-Negritos da minha responsabilidade
CV
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste de 20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6194: Convívios (133): Encontro comemorativo da ida da CART 2732 para a Guiné, Funchal 10 de Abril de 2010 (Inácio Silva/Carlos Vinhal)
(**) Vd. poste de 2 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6292: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (10): Samba Silate
Vd. último poste da série de 27 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6261: Controvérsias (70): Os peões das Nicas (Mário G. R. Pinto)
vídeo - 35 anos depois resgatar os corpos de soldados
mortos na Guiné
A primeira memória é de fotografias, fotografias terríveis, de corpos esventrados, decepados, mutilados. Mais tarde reproduzidas em livro, com o título «Genocídío contra Portugal», traduzido para francês e inglês, haveriam de servir à propaganda portuguesa contra os movimentos de libertação - mas, nesse primeiro momento, eram apenas a noção de um mundo a desabar, a memória de uma terra longínqua que de lugar de sonho se transformava em lugar de pesadelo, o medo imenso que aqueles que se conhecia pudessem estar entre as vítimas ou os assassinos.
E à noite, entre os ruídos familiares, infiltravam-se os dessa outra noite, africana, já não cruzada pelo som amigo dos batuques, mas por gritos e gemidos, e a dúvida «se eu estivesse lá?». Era uma pergunta sem resposta simples, as fotografias tinham feito o seu trabalho, a violência das imagens sobrepunha-se ao raciocínio, diminuíam a capacidade de pensar. Pessoas insuspeitas de simpatia pelo regime, partidárias da independência das colónias, leitoras de Fanon ou de Césaire, admitiam participar em milícias nas colónias, invocando a legitima defesa - e os primeiros homens a partir «para Angola e em força» tinham a apoiá-los a maioria de uma nação longamente adormecida sobre o verdadeiro significado do colonialismo.
Mas os homens continuaram a partir e a máquina de guerra reclamava os amigos cada vez mais próximos: um vizinho, um primo, o irmão mais velho, depois o caçula... Como esquecer o primeiro que foi, o esforço para que a despedida soasse como habitualmente, a forma como, pela primeira vez, se lhe via o rosto, dolorosamente se fixava cada um dos traços, os olhos mais fundos do que o habitual, o sorriso quase a desfazer-se em lágrimas, os maxilares cerrados? «Um homem não chora, um homem não chora, um homem não chora ... ».
Depois, à medida que o tempo ia passando, as notícias começavam a chegar: anódinas, anedóticas, nos aerogramas que se sabiam submetidos a censura, murmuradas as outras nos empregos, nas faculdades, nas tascas ou nos adros das igrejas, ao fim da missa, em que o padre não esquecera a habitual referência aos ausentes por motivo da guerra...
Era um tempo em que, ao domingo, as igrejas das aldeias se enchiam de gente, vestida nos seus melhores trajes, as crianças protestando com os sapatos que lhes magoavam os pés habituados a andar livres. À entrada, as mulheres punham os véus na cabeça, mergulhavam os dedos na bacia de água benta e, com os filhos pela mão, dirigiam-se aos lugares da frente. Os homens mantinham-se no fundo da igreja, donde mais facilmente poderiam sair antes do fim para fumar um cigarro ou trocar algumas palavras. Depois vinham as mulheres, as famílias, em grupos, voltavam para casa, e as notícias circulavam, terríveis como as fotografias dos primeiros dias: «A filha da costureira, sabes? O noivo veio paralisado da guerra... » - e seguiam-se os pormenores, com minúcia perversa. Cruzavam-se, nas vozes, a pena e a admiração, mas também a condenação já implícita se acaso àquela rapariga, tão nova e cheia de vida ocorresse não querer efectuar esse casamento, que o próprio noivo tentava anular, considerando terem-se alterado as premissas do namoro...
A guerra invadia agora todas as conversas e, à medida que mais gente se implicava nela, cresciam também as dúvidas sobre o sentido da presença portuguesa em África e as reservas face ao esforço de guerra. Jornais clandestinos faziam eco das violências praticadas pelas tropas nas colónias, milicianos chegados ao fim do seu tempo de tropa desabafavam, nas horas seguintes à chegada, a amargura pelo que tinham sido forçados a viver, as associações de estudantes faziam cada vez mais da guerra e da mobilização motivos de contestação. Silenciosamente, primeiro, depois mais afoita, a defesa da deserção ia fazendo o seu caminho, e ninguém punha perguntas quando um jovem, mais um, desaparecia dos sítios do costume, saído do país a salto. «Le désérteur», de Boris Vian, cantado por Moloudji, tornou-se uma das canções mais tocadas nas «sonoras» das universidades. A «Ronda dos Paisanos», na voz de Zeca Afonso, a «Canção com Lágrimas» ou a «Menina dos Olhos Tristes», cantadas por Adriano, moravam em todas as cabeças, em todos os corações. Impedidos os jornais de falar da guerra de África, os jovens portugueses seguiam, com atenção de peritos, a do Vietname. E as raparigas, enquanto se perguntavam se, jamais, namorados e irmãos voltariam a ser o que eram «antes», antes que a guerra os tivesse devolvido tristes, inquietos, absortos, por vezes violentos, marcados pela memória de um mundo que podiam compartilhar, aprendiam termos até então reservados aos homens, G3, «batalhão», «mina», «morteiro», graus da hierarquia militar e nomes de terras que nunca veriam, Negaje, Nambuagongo, Como, Mueda ...
Em 1968, sete anos depois do início da guerra, os estudantes gritaram pela primeira vez, na rua, o seu protesto contra ela. Disfarçaram-no ainda de contestação à presença norte-americana no Vietname, o local de concentração foi ainda a embaixada americana, mas os gritos, longamente silenciados, soltaram-se, e a manifestação tornou-se, de repente, anticolonial.
Mais tarde viria a palavra de ordem «Nem mais um só soldado para as colónias», gritada a vermelho nos muros da cidade, em acções que se inspiravam nas tácticas da guerrilha, as desses mesmos contra quem os soldados portugueses lutavam, em terras de África. Seis anos depois dessa primeira manifestação, a guerra chegava ao fim. Os homens regressavam a casa, aos pais, às namoradas, às mulheres, aos filhos entretanto nascidos. Mas não desapareciam nem as memórias nem as sequelas - que perturbam ainda, com maior ou menor gravidade, os que cresceram e viveram em fundo de guerra.
Diana Andringa
www.guerracolonial.org
Guiné 63/74 - P6297: Controvérsias (71): Contemos as nossas experiências e deixemos as especulações para quem não esteve lá (Carlos Vinhal)
Comentário de Carlos Vinhal*, ex-Fur Mil, CART 2732 (Madeirense), Mansabá, 1970/72, na qualidade de tertuliano:
Alguns considerandos em relação ao poste 6292** de hoje, 2 de Maio de 2010
Camaradas
Este blogue está a deixar-me deprimido.
Julgava eu que nós, os portugueses, somos um povo de brandos costumes, hospitaleiros, afáveis, amantes da paz, amigos dos vizinhos, etc., e afinal somos (ou fomos) um bando de assassinos na guerra colonial. Posso excluir-me? Muito obrigado.
1. Escreveu em tempos o Alberto Nascimento, que foi só e apenas Soldado Condutor Auto, logo menos interventivo em operações de grande envergadura:
Contar com pormenor o que se passou no decorrer da operação é impossível, já que fui colocado num posto de onde só podia abarcar uma pequena parte da povoação, que ocupava uma área enorme, mas o constante matraquear das auto-metralhadoras e G3 deixavam antever um morticínio.
Quando a meio da tarde o Comando deu por terminada a operação é que fui, pelo caminho, vendo a destruição provocada pelos lança-chamas, auto-metralhadoras e G3. Samba Silate estava, na sua maior parte, destruída. Num largo da povoação estavam concentrados um grande número de prisioneiros, um dos quais, talvez movido pelo desespero e terror, intentou a fuga, tendo sido abatido. Os outros foram divididos entre Bafatá e Bambadinca, de onde poucos ou nenhuns saíram.
Posso ajudar o Nascimento com umas contas rápidas para calcular o tal morticínio.
Se 20 militares levarem cada um, uma G3 com 5 carregadores e se aproveitar uma em cada quatro munições disparadas, matar-se-ão ali num intantinho... vamos lá ver:
20 militares X 5 carregadores X 20 munições = 2000 munições X 1/4 = 500 mortos.
Estamos ainda a desprezar a metralhadora de fita (MG47), mais eficaz, o lança granadas e o lança-chamas. Isto sim, é morticínio, nem o Shelltox mataria com tal eficácia.
Nascimento, afinal quantos mortos viste quando chegaste ao local da operação?
2. Quanto ao Armandino, que em comentário, diz o seguinte:
Quando cheguei a Bissau em Outubro de 66 comentava-se que houve uma Companhia de Madeirenses que teve que ser embarcada à força, pois eles recusavam-se a embarcar para a Metrópole. Diziam que tabanca por onde eles passassem deixava de existir. O lema deles era que quanto menos pretos houvessem mais depressa acabava a guerra.
Não faço a mínima ideia que companhia era mas sei que regressou em fins de 66
Vamos lá ver Armandino.
As primeiras Companhias insulares a irem para a Guiné, tirando as Berlengas, foram:
Do BII17 – Angra do Heroísmo - Açores - a CCAÇ 1438 que chegou à Guiné no dia 18 de Agosto de 1965 e regressou a 18 de Abril de 1967. Em Outubro de 1966 estava em Quinhamel.
Do BII19 – Funchal – Madeira - a CCAÇ 1439 que chegou à Guiné a 02 de Agosto de 1965 e regressou a 18 de Abril de 1967. Em Outubro de 1966 estaria em Enxalé.
Podes precisar?
Diga-se em abono da verdade que qualquer Companhia que se prezasse não aceitaria vir embora antes de terminado o tempo normal de comissão, ainda por cima sendo madeirense e gostando de matar. É de homem.
Caro Armandino, recentemente, cerca da 1 hora da madrugada, fiz com outro amigo, o percurso entre a Sé e o Casino do Funchal (alguns quilómetros) e não fomos atacados por nenhum madeirense, nem vimos cadáveres na berma da estrada. No Funchal vive-se lindamente, anda-se de noite com mais segurança do que no Porto ou em Lisboa.
Já agora uma achega, não seria uma Companhia de algarvios, ou alentejanos, ou transmontanos, ou de militares dos arredores do Porto, gente que até apedreja os autocarros do Benfica?
É conveniente não se meterem rótulos nas embalagens de que não se conhece o conteúdo, olha o que aconteceu no Hospital de Santa Maria, de Lisboa.
Não esqueças Armandino que as Companhias madeirenses e açorianas tinham no seu Comando Oficiais e Sargentos oriundos do Continente, e um ou outro insular, que também os havia e bons.
Não podemos dizer que não cometemos proezas de que nos envergonhemos hoje, mas alimentar morticínios por estimativa, e alegar que houve uma Companhia daqui ou dali que fez isto ou aquilo segundo se ouviu dizer, é pura especulação e não é importante para a história que aqui queremos deixar.
Matar e morrer faz parte da guerra. Contemos os factos que vivemos, e mesmo assim esperemos que alguém, na mesma hora e no mesmo lugar, tenha visto o filme doutra maneira diferente da nossa.
OBS:-Negritos da minha responsabilidade
CV
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste de 20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6194: Convívios (133): Encontro comemorativo da ida da CART 2732 para a Guiné, Funchal 10 de Abril de 2010 (Inácio Silva/Carlos Vinhal)
(**) Vd. poste de 2 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6292: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (10): Samba Silate
Vd. último poste da série de 27 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6261: Controvérsias (70): Os peões das Nicas (Mário G. R. Pinto)
blogueforanadaevaotres.blogspot.pt
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