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domingo, 3 de março de 2013




"A minha dor é uma arma"
Por Paulo Moura Texto
A multidão não gritou palavras de ordem com unanimidade, mas estava como se estivesse em casa. Como se a rua se tivesse tornado num local de prova de vida, de reconquista do país
Um homem vestido de presidiário, com as mãos acorrentadas, em cima de uma paragem de autocarro.

Outro, vestido como a morte e exibindo um papel que diz: "Vim pelos que perderam a esperança e se suicidaram".

Uma mulher segura um cartão: "Sai da minha vida". Outra um cartaz: "A minha dor é uma arma. José Gomes Ferreira".

Uma manifestação é uma manifestação, é sempre igual, e é por isso que as diferenças se notam. Desta vez há muitas pessoas sozinhas. Algumas trazem palavras de ordem originais, formas de expressão únicas, pensadas, frases e imagens que traduzem uma situação ou um sentimento, uma encruzilhada, um beco sem saída, uma angústia, uma sabedoria. Coisas pessoais.

"Há coisas que são transversais a todas as pessoas, que são comuns", diz Maria João, de 43 anos, artista plástica. "Coisas como o sofrimento". É ela que traz a frase de José Gomes Ferreira. Acredita que a manifestação pode ser um local para discutir os assuntos, para partilhar casos. Dá um certo conforto ver que não estamos sozinhos no sofrimento. "É bom que se saiba. Que mostremos uns aos outros a dor. Há os que estão ao nosso lado e estão a sofrer mais, mas temos de pensar: "A seguir podemos ser nós"", diz Maria João A-minha-dor-é-uma-arma.

Além dos solitários, há os grupos. Pessoas que se reúnem antes de vir, como se procurassem nisso alguma força. Como se discutissem antes os motivos, alguma espécie de plataforma comum que justifique o acto. O João, a Albana, o Carlos e outros cinco amigos do Cacém vieram juntos porque é juntos que têm passado muito tempo a discutir os problemas do país. "Jantamos em casa de um de nós e ficamos até altas horas a falar sobre o futuro, a tentar encontrar soluções", diz Albana, de 29 anos, desempregada. Estudou Psicologia e nunca teve um emprego na sua área, nem um contrato de trabalho. Os amigos estão na mesma situação, ou pouco melhor. "Somos precários", explicam. "Conheço muitas pessoas da nossa idade que já baixaram os braços", diz João, de 31 anos, também desempregado. "Nós ainda mantemos a esperança. Vimos a manifestações, tentamos organizar grupos, fazemos planos. Sentimos que temos de estar juntos. E que temos de sobreviver, ainda que o nosso país não tenha nada para nos dar. Se não pudermos ficar, vamos emigrar".

Estão sempre a debater uns com os outros, mesmo na manifestação. Vão falando enquanto marcham pela Rua do Ouro em direcção ao Terreiro do Paço, em Lisboa, depois, já ao fim do dia, sentam-se no chão e continuam a falar. Mas outros grupos juntaram-se-lhes. Algumas frases são gritadas mais alto: "Eu sei que não adianta nada vir aqui, nas onde é que eu haveria de estar?" Ou: "Mesmo que agora derrubássemos o Governo, já seria demasiado tarde. O país vai levar décadas a recuperar. Nunca haverá lugar para nós". Ou ainda: "Esta é a manifestação do século, pá!".

Por toda a área do Terreiro do Paço há ajuntamentos, sentados em roda, ou a circular em fila. Fazem lembrar uma enorme festa, onde se vem para conviver, fazer amigos. Daniela Sá chegou com um clube muito particular. Abordam as pessoas, chamando-lhes a atenção para as suas ideias. "Não adianta mudar o Governo, ou falar destas políticas", dizem. "É preciso uma mudança total na organização da sociedade. Enquanto isso não acontecer, não haverá soluções". Pertencem ao movimento Zeitgeist e vieram à manifestação para recrutar descontentes. E para conversar, discutir ideias.

Jacinto Rodrigues, de 68 anos, funcionário público, veio só com a mulher, Cristina, de 66 anos, mas já encontraram amigos. Decidem ficar juntos, para cantar a Grândola, Vila Morena. "Eu venho a todas as manifestações desde que este Governo tomou posse", diz Jacinto. "Venho porque quero mostrar que estou na oposição. Não sou da mesma laia desses senhores, do Governo e dos bancos. Pertenço a outro país. Porque existe outro país, que está vivo. Temos de mostrar isso. Estar aqui para fazer prova de vida".

As palavras de ordem, no entanto, não são gritadas com muito entusiasmo. Nem com grande unanimidade. Algumas são algo estafadas, como: "Se isto não é o povo, onde é que está o povo?". Maria Clara, de 52 anos, professora de Arte no Ensino Superior, queixa-se. "As pessoas já nem sabem cantar". Está no mesmo grupo de Maria João A-minha-dor-é-uma arma.

"As pessoas cantam baixinho, sem entusiasmo", diz Maria Clara. "Já não sabem. Perderam o hábito. As pessoas já não sabem bater palmas".

Outro elemento do grupo, Carla Alexandra, de 43 anos, agrónoma funcionária pública, pensa que isso se deve à falta de convicção que têm nas suas ideias. "Eu não pertenço a nenhum partido. As pessoas já não se identificam com os partidos, por isso, sabem o que não querem, mas não sabem o que defendem. Estão muito dispersas, muitos desunidas".

Na opinião de Carla, a abstenção eleitoral devia ser tida em conta. "À percentagem de pessoas que se abstêm deveria corresponder a mesma percentagem de lugares vazios na Assembleia da República".

Nuno Esteves da Silva, de 43 anos, outro dos elementos do grupo, não concorda. Prefere falar de actos simbólicos, e da sua eficácia. É preciso ter mais criatividade nas manifestações, dizem todos. Usar mais os poetas, inventar novas formas. Talvez seguir o exemplo de algumas festas tradicionais do Carnaval, em que se faz crítica social e política, através da caricatura e do sarcasmo.

Há no grupo quem concorde com esta ideia, quem não concorde. Discutem. A seguir põem-se a inventar palavras de ordem originais para a próxima manifestação. "Temos de ser piolhosos do acontecimento. Gilles Deleuze", sugere Nuno. Ou: "Vamos fazer mais um esforço para sermos bons republicanos. Marquês de Sade". Depois desatam a conceber planos para assassinar membros do Governo. "Seria útil matar algum deles", dizem. "Ou pelo menos fazer-lhe mal, para que tenham medo". Falam dos governantes como se já não fossem humanos. Parece ser essa a fase em que estamos: acabou o diálogo, já não há entendimento possível com os que detêm o poder. Eles perderam o respeito do povo. O melhor é ignorá-los. Ou eliminá-los.

"É preciso agir simbolicamente", diz Maria João. Trazer um cartaz é uma forma de o fazer. "Sair para a rua já é uma acção. É sempre uma acção. É melhor do que ficar em casa a fazer likes no Facebook. Há que substituir o Facebook pela rua".

Sempre que vêm a manifestações, e este grupo vem a todas, conhecem pessoas. Contam coisas, discutem ideias. "É preciso mostrar que estamos vivos", dizem. Estão desapontados por os manifestantes não saberem cantar nem bater palmas. Mas não têm a certeza se isso é mau ou bom. Encolhem os ombros. É assim, a realidade agora é esta, dizem. Estamos todos aqui, embora não tenhamos as mesmas ideias, embora não saibamos o que queremos, embora não tenhamos soluções.

Não se sente, na multidão, a força do entusiasmo, mas também não se percebe indiferença. As pessoas estão na manifestação com naturalidade, como se estivessem em casa. De certa forma, a falta de veemência gera uma onda de vigor. Como se depois do ódio se tivesse já passado a uma fase de desprezo pelos governantes e as suas políticas. E a rua fosse um lugar não de protesto, mas de sobrevivência. De ocupação do espaço. De reconquista do país.

"As pessoas estão desconfiadas", diz Maria João. Em relação a todo o poder, a todos os que as interpelam, para lhe roubar benefícios, sem lhes pedir a opinião. "Sentimo-nos indefesos. Podem fazer-nos tudo o que quiserem, sem limites". O Governo, a troika, os bancos, mas também os jornalistas, tudo é identificado como uma mesma entidade inimiga.

De início, Maria João A-minha-dor-é-uma-arma não queria responder a nenhuma pergunta. Nem queria dizer o nome. "Desconfiança", explicava. "Tenho uma laringite, não posso falar", justificava-se. Como se tivesse já esgotado a tolerância para mais algum pedido, mais alguma interpelação. A certa altura voltou-se para o repórter com os olhos a faiscar e perguntou: "O que me quer impor?"

Eram apenas algumas perguntas sobre a manifestação, a recolha de um depoimento para a reportagem, mas ela não via as coisas assim, estava com vontade de provocar, e repetia, o olhar fixo e desafiador: "O que me quer impor?"

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