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terça-feira, 22 de maio de 2018

A EXPERIÊNCIA Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano

Muito antes que as redes TV descobrissem o filão e suposto estudo sociológico do Big Brother e restantes realities, a princípio dos 70 a ciência realizou um experimento de similares características em alto mar. A ideia: uma pequena embarcação com 11 desconhecidos devia cruzar o Atlântico. Uma viagem que buscava teorizar sobre as condutas e a violência entre um grupo de pessoas expostas a uma situação limite. Um experimento que a imprensa sensacionalista decidiu chamar de "barco do sexo" ou "barco do amor".


A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Por trás desta singular "aventura" se encontrava o antropólogo e pesquisador social Santiago Genovês e a proposta partia de sua própria experiência. Santiago saiu da Espanha junto a sua família quando adolescente (ao acabar a Guerra Civil Espanhola). Seu destino foi o México depois de uma prévia passagem pela França.

Ele se formou na Escola Nacional de Antropologia e obteve um doutorado em Cambridge, no Reino Unido, sendo pesquisador emérito da UNAM depois de sua aposentadoria. Santiago morreu em 5 de setembro do 2013 com grandes contribuições científicas, sobretudo no campo sociológico do comportamento humano.

Três viagens marcaram sua carreira. Três cenários onde ele mesmo esteve implicado. Os dois primeiros foram barcos construídos com palha de papiro, RA 1 e RA 2. Duas viagens em 1969 e 1970 respectivamente onde fez parte da tripulação dirigida por seu amigo o antropólogo e navegador norueguês Thor Heyerdahl, que queria utilizar estas expedições para corroborar suas teorias sobre as viagens épicas feitas pelos povos primitivos. Heyerdahl tinha fixado como objetivo verificar a possibilidade de travessias transatlânticas antes da viagem de Cristóvão Colombo.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Santiago e Heyerdahl no RA.
Conquanto Santiago compartilhava o interesse pelo trabalho de Heyerdahl, para o antropólogo estas viagens foram o começo de sua grande aventura. Ele acabou descobrindo durante as travessias que este tipo de viagens podia ser um perfeito laboratório do comportamento humano. E talvez, mais importante, Santiago tenha aprendido em ambas as  embarcações o que provavelmente a maioria dos marinheiros sabe desde tempos imemoriais: que não há melhor banco de provas para o estudo de nosso comportamento do que permanecer em alto mar sem possibilidade de pisar a terra.

Assim começava o Experimento Acali: 11 perfeitos estranhos deviam partir e cruzar o Atlântico desde as Ilhas Canárias até Cozumel, no México. O que podia dar errado?
Hora de partir
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Santiago tinha tudo preparado em 13 de maio de 1973. Nesse dia zarparam do Porto da Luz em Las Palmas, Grande Canária, 11 pessoas (de dez nacionalidades diferentes) procedentes de 4 continentes onde faltava unicamente a Oceania. A equipe era composta por uma mulher sueca, uma médica judia, um fotógrafo japonês, um restaurador grego, um padre angolano, uma norte-americana branca, uma afro-americana, uma mulher árabe da Argélia, um uruguaio, uma francesa e o próprio Santiago.

O barco, chamado Acali (que no idioma nahuatl significa "casa na água"), transportava cinco toneladas entre alimentos e água e foi construído pelo antropólogo com 12 metros de comprimento por 7 metros de largura. Uma pequena embarcação impulsionada unicamente por uma vela e que tinha somente uma diminuta cabine em que dormiriam e compartilhariam espaço (media 4 x 4 metros). A cabine também tinha pequenos armários para guardar roupa. Por diante, toda uma travessia sem possibilidade de parar em terra para cruzar o Oceano Atlântico com destino ao México.

De modo que podemos imaginar essa primeira cena do Porto da Luz. As primeiras apresentações, talvez as primeiras impressões negativas (ou positivas) ou talvez os primeiros sintomas de conexão entre eles sobre uma embarcação que poderia se tornar um verdadeiro cortiço.

Santiago sabia desde o princípio que não existiria uma coexistência harmoniosa, ao menos assim ficou refletido em seu livro e essa foi a razão da escolha dos voluntários da viagem. Em outras palavras, o homem decidiu em função do que ele pensou que seria uma mistura explosiva. Por essa razão a primeira coisa que fez foi nomear deliberadamente às mulheres as duas funções mais importantes a bordo: o capitão (a mulher sueca) e o médico a bordo (a doutora judia). Da mesma forma, também teve cuidado de garantir o maior número possível de participantes casados (se tinham filhos ainda melhor) junto a uma grande variedade de raças e religiões que fossem representadas.

Esse 13 de maio e pouco antes de zarpar, o antropólogo informou os arranjos para dormir na cabine, que estavam divididas em duas linhas de liteiras de forma que tanto homens como mulheres estivessem misturados.
O começo da aventura no barco do sexo
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
A cabine do Acali.
A viagem durou ao todo 101 dias, tempo suficiente para que Santiago preenchesse mais de mil páginas com as observações da vida a bordo. Não só isso, durante o mesmo os participantes responderam 46 questionários dos quais obteve um total de 8.079 respostas sobre temas tão diversos como as próprias relações a bordo, o comportamento sexual de cada um, a religião, violência ou questões sobre a moralidade de cada um.

O antropólogo narrou como foi o início titubeante do grupo, um começo onde as pessoas estavam um tanto reticentes e onde todo mundo se manteve em alerta. Em qualquer caso e o mais provável, era um sinal de que ninguém queria baixar suas defesas e revelar qualquer possível debilidade.

A primeira inibição logo esquecida foi a renúncia da tripulação a usar o banheiro ao ar livre. Sim, Santiago construíu uma pequena plataforma anexada ao barco, onde todos deviam fazer suas necessidades à vista do restante dos colegas. Nos primeiros dias discutiram muito sobre a necessidade dessa privacidade, que duas semanas mais tarde desapareceu. Depois de 14 dias era possível ver como dois membros da equipe conversavam tranquilamente enquanto um deles (homem ou mulher) realizava sua imperiosa necessidade de dar uma bela "cagada" sem nenhum pudor.

Logo chegou o primeiro atrito a bordo em função do sistema criado para a rotação de trabalhos. Ao que parece, Ingrid, a sueca e capitã do barco, era muito autoritária, segundo o grupo, em ocasiões com um tom violento que deixava muitos membros do Acali à flor da pele. Rachida, a argelina, também entrou em conflito com o restante dos colegas já que evitava a maioria de seus deveres. Por esta razão foi apelidada como "a turista".

Em geral foi uma fase em que quase todos se irritavam também com Zanotti, a francesa, que era acusada de passar o dia inteiro emperequetando-se, razão pela qual começava a realizar suas tarefas uma hora mais tarde. Por sua vez o padre, segundo o grupo, era o membro do qual viviam tentando fugir. Um homem descrito por seu penetrante fedor constante e insuportável. Neste caso Santiago contou que acabou obrigando o homem a tomar banho três vezes ao dia.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Os membros da tripulação do Acali.
Depois deste primeiro período o antropólogo perguntou-se pela quantidade de sexo que estava acontecendo no barco. Ele acabou se guiando pelo que tinha visto, não muito. Segundo contaria mais tarde sobre o processo de fases pelas quais passaram os membros:

- "Alguns deles se encontravam nas primeiras semanas com frequentes episódios de enjoos e vômitos o tempo todo. Por isso suponho que não era muito atrativo a ideia de fazer sexo."

Segundo contaria anos depois, o uruguaio e membro do grupo José Maria Montero:

- "Exceto Santiago, eu, e a sueca, nenhum dos participantes tinha experiência com o mar nem tinha navegado antes. De maneira que primeiro tiveram que padecer uma adaptação física ao meio marinho. Quatro ou cinco ficaram nauseados durante várias semanas."

Se tivesse que apostar nesse momento pela chegada do cupido, Santiago apostava pelo fotógrafo japonês Yamaki e a americana Mary. Ambos tinham se mostrado muito próximos desde o começo e com uma grande conexão, ademais uma das noites parece que tinha surgido a "faísca do amor" entre ambos no interior da pequena cabine.

Curioso, porque o primeiro que teve certeza da aproximação foi sobre ele mesmo. Santiago logo ficou muito íntimo de Zanotti. E um mês depois registraria em seu diário o seguinte:

- "Começávamos a ter um sentido liberal e saudável da relação, mas em última instância, era um lugar vazio de camaradagem o que estávamos desenvolvendo a bordo."

Os questionários iam acompanhando os dias. Assim, quando chegou o quinto teste causou um grande reboliço. O mesmo incluía perguntas tais como: "O que mais te incomoda sobre a vida a bordo?, "De quem você mais gosta e quem menos?", "Gostaria de mudar a ordem das liteiras?", "Se sim, quem gostarias que dormisse ao seu lado?", "Se não tivesse inibições, com quem acha que poderia dormir?"

Nem é preciso dizer que, ante estas perguntas, a tripulação ficou desejosa por saber o que o restante tinha respondido. Ocorreu que depois de revelar os resultados fizeram um novo arranjo para dormir nas liteiras. Outra vez todos juntos, mas sob uma disposição diferente.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
O Banheiro do Acali.
Chegado o 13 de julho, aconteceu um acidente. Uma das pás do timão do Acali se desprendeu. Estavam em alto mar, de modo que as probabilidades de encontrar tubarões eram altas. Santiago não duvidou e saltou para inspecionar os danos e foi justo nesse momento e a partir da perspectiva oferecida pela situação, que o antropólogo observou que todos tinham assumido seu papel e sabiam perfeitamente o que fazer. Como ele mesmo escreveria, não há nada como sentir a ameaça do perigo para que surja o espírito de equipe em uma tripulação. Finalmente e depois de uma árdua luta conseguiram arrumar o timão.

Várias semanas após o incidente Ingrid propôs um primeiro jogo que "saltava" as regras "não escritas" que tinham tido até então. Adivinham qual? O chamado "jogo da verdade". Cada um devia fazer a uma pessoa de sua escolha quatro perguntas por escrito, questões que mais tarde deviam ser lidas e respondidas de forma anônima em frente a todo o grupo. Um exemplo disso: para Santiago perguntaram:

- "Quando você está em uma de suas expedições, acha que tua mulher tem relações extra-matrimoniais?"

A resposta do antropólogo foi que não, ou que em qualquer caso não cria, ainda que respondeu que é algo que não podia saber certamente. Em geral este foi o tipo de perguntas que realizaram, a maioria mais diretas, como ao uruguaio, ao qual perguntaram se gostaria de dormir com uma mulher da tripulação, que respondeu que se realmente ela quisesse "não diria que não". Também existiram perguntas mais violentas para a personalidade de cada um. Por exemplo o restaurador grego foi desafiado com um: "Como você consegue ser tão duas caras?" Ao que respondeu que não achava que era assim.

Passaram os dias e depois de mais de dois meses a bordo do Acali, Santiago mudou o plano tentando usar perguntas mais impactantes para averiguar como reagiriam os participantes a uma infração deliberada contra o grupo. Desta forma passou a votar as seguintes questões:
  • Que tal passarmos um dia inteiro nus? O resultado foi de seis votos a favor e cinco contra.
  • Que tal mantermos uma espécie de festa contínua onde todos podem dormir com todos? O resultado foi de quatro votos a favor, sete contra.
  • Deveríamos proibir a formação de casais? O resultado foi de dois votos a favor, seis contra (e três abstenções).
Quando chegou à 13ª semana em alto mar, as duas americanas tiveram uma nova ideia que ultrapassava como nunca os "limites". Sugeriram que durante um período de cinco noites, um homem e uma mulher receberiam a permissão do resto do grupo para que ficassem a sós no interior da cabine durante uma hora. A resposta do resto? Recusaram a proposta, mas Santiago advertiu e se deu conta da necessidade do grupo para passar tempo entre grupos menores ou inclusive entre casais, de modo que propôs que cinco casais extraídos a esmo deviam ter a oportunidade de se reunir em cinco lugares do barco onde não podiam ser vistos pelo resto.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Santiago no Acali.
O que ocorreu? O estado de humor do grupo melhorou sensivelmente ante a proposta. Depois das atribuições chegaram as primeiras fofocas e comentários insinuantes sobre os casais e de quem estava comendo quem. O barco tinha se convertido em um Big Brother televisivo (e tudo o que isso implica).

O que passou a partir de então foi uma série de acontecimentos muito rápidos e significantes para o grupo. O fotógrafo japonês tentou saltar no mar porque, segundo explicava, odiava as fotos que tinha feito e achava difícil seguir adiante com os demais. Na verdade, o que ocorreu é que levou um fora de sua "amante" Mary. Aproximadamente na mesma data, um cargueiro esteve a ponto de investir contra o Acali. Foi também nessa mesma época que Santiago teve apendicite. Um cúmulo de adversidades para o grupo que, como em outras situações de crises anteriores, se concentrou uma vez mais em agir como uma equipe.

Finalmente a apendicite de Santiago cedeu e duas semanas mais tarde o Acali entrou na ilha de Cozumel. Ali cada pessoa foi isolada em quarentena do resto e vigiados em um hotel para que não saíssem. Durante uma semana foram submetidos a uma série de testes com psiquiatras, psicólogos e médicos.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Os tripulantes fazendo uma refeição.
Estes estudos depois da viagem não deram nenhum resultado considerável, ao contrário do que pensava Santiago. Em seu livro "Acali", publicado em 1975, o antropólogo interpretou tudo o que ocorreu a bordo de uma maneira que encaixava com sua própria visão do mundo. A bordo do barco disse que tinha encontrado um "homem novo", "livre de ambições territoriais e de impulsos agressivos ou sádicos". Segundo Santiago:
Os objetivos foram alcançados. Regressamos com muitas esperanças de ter contribuído humildemente ao estudo do comportamento humano. O mar é belo, mas a terra pode também o ser se nos empenharmos nisso. Para consegui-lo é necessário que cada qual faça esforços para um melhor entendimento a todos os níveis. Há que determinar as causas que provocam a violência humana. Faz cinquenta anos, morria um homem cada minuto, vítima da violência de seus semelhantes. Mas hoje em dia morre um homem a cada vinte segundos pela mesma razão. Estamos muito contentes de conservar a vida!
Quanto a sexualidade, Santiago chegou à seguinte conclusão:

- "Não há desejo sexual inato que possa explicar suficientemente o impulso irresistível que, ao que parece, temos de formar relações sexuais."

Segundo contou anos depois Jose Maria Montero, o uruguaio, sobre o mesmo tema:
A vida sexual nesse ambiente tão promiscuo não foi o que a gente imaginou. Foi pobre e escassa. Qualquer um que tenha navegado sabe o que significa andar em uma barco tão frágil impulsionado por uma vela. Permanentemente estão rompendo coisas e não há tempo para pensar na vida sexual; há que respeitar as devidas debilidades e a intimidade quase não existe. Tudo isso é inibidor para a vida sexual. Ademais, todos tínhamos que fazer nossas necessidades em um espaço aberto que tinha sobre uma borda, à vista de todo mundo, e ninguém se importava.
O experimento não passou sem críticas de colegas de profissão do antropólogo. Para muitos era pouco ético ter conseguido de todos os participantes uma assinatura de compromisso de antemão que lhe dava direito a fazer uso dos dados que surgiram na travessia (inclusive dados e informação de natureza íntima). Irônico e diria que até um ponto inocente observando o que hoje estão dispostos a aceitar muitas pessoas que fazem fila para aparecer na televisão de bunda de fora.

A verdade é que Santiago não usou os nomes reais dos participantes, ainda que obviamente eram facilmente reconhecíveis (ademais os jornais sim revelaram nomes). O homem relatou seu experimento como uma importante contribuição ao comportamento e convivência humanos. Seu livro deu fé disso, enquanto os diários se dedicaram a contar aquilo que não aconteceu. Os jornais foram precisamente os que apelidaram o Experimento Acali de "barco do sexo". Inventaram histórias entre os participantes buscando o componente sensacionalista do ocorrido para vender a travessia ao público.

Ironias do destino, essa primeira tentativa da imprensa para aprofundar no mesquinho acima de uma boa história, com o tempo, se tornou uma profecia. Várias décadas depois algum produtor maluco de uma rede de TV recolheria os testemunhos dos meios desse curioso experimento realizado a bordo do Acali. Assim começava a longa lista dos chamados reality shows onde a miséria se pagava a preço de ouro. Nasciam o infame Big Brother e seus suplentes.
 Faro de Vigo.


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