Em meados do ano de 1876, publicou-se o Tratado Antropológico Experimental do Homem Delinquente, do italiano Cesare Lombroso. Com a divulgação deste estudo empírico, propagou-se, a nível internacional, a chamada Teoria do Criminoso Nato, que, a partir de certas características físicas encontradas em alguns indivíduos, sobretudo mestiços, atestaria sua pré-disposição à vida criminosa.
O estudo teve sua publicação feita em uma época particularmente singular, o que erroneamente lhe indicou supostos subsídios de conclusão: era o século XIX e o mundo respirava entusiasmadamente as ideias da seleção natural de Charles Darwin e de outros tantos estudos eugênicos que, infelizmente, muitas vezes foram corrompidos e utilizados para timbrar — com falsa legitimidade — alguns dos regimes autoritários e totalitários da Era dos Extremos, o século XX.
Ainda, os estudos sociais que poderiam de pronto desqualificar ou atenuar os efeitos da teoria lombrosiana, embora sistematizados, eram recentes e certamente não se mostravam tão extasiantes quanto às ideias supramencionadas, o que “colaborou”, por omissão imprópria, com a ideia de Cesare Lombroso.
Com estudos empíricos (consubstanciados na prática), a Teoria do Criminoso Nato “foi formulada com base em resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinquentes e seis mil análises de delinquentes vivos; e o atavismo que, conforme seu ponto de vista, caracteriza o tipo criminoso — ao que parece —, contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisões europeias.” (MOLINA; GOMES, 2006, p. 148)
A teoria lombrosiana do criminoso nato implicava que, mediante a direta análise das características puramente físicas, seria possível prever os indivíduos que se voltariam à vida criminosa, tendo a reincidência como um trajeto posterior e natural. Seria uma propensão congênita e irrenunciável à delinquência. “O delinquente padece uma série de estigmas degenerativos comportamentais, psicológicos e sociais (fronte esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supraciliares, assimetrias cranianas, fusão dos ossos atlas e occipital, grande desenvolvimento das maçãs do rosto, orelhas em forma de asa, tubérculo de Darwin, uso frequente de tatuagens, notável insensibilidade à dor, instabilidade afetiva, uso frequente de um determinado jargão [gíria], altos índices de reincidência etc.).” (MOLINA; GOMES, 2006, p. 149, acréscimo nosso)
Contudo, Lombroso não teria se atentado ao que notavelmente ocorria — e ainda ocorre — nos diversos níveis socioeconômicos da mesma sociedade: a mistura entre “raças”, o que gera indivíduos “fora” do típico padrão europeu, dá-se em maior número nas classes mais pobres, diferentemente do evidenciado na sua porção abastada. Isto é, essa divisão social enseja mais indivíduos mestiços numa mesma parcela da sociedade e geralmente ocorre por questões financeiras, que acabam por criar “castas econômicas”, que, de modo exemplificado, tornaram-se as classes baixa e alta. Esta procura manter distância do povo; aquela, entretanto, é o próprio povo.
Outro ponto que teria grandemente alicerçado a tese corresponde ao fato de que o mundo, a partir do século XV, colonizado foi em grande parte por brancos, sobretudo por europeus, e que a escravidão representou seu traço distintivo, desumano e gerador da divisão clara entre colonizadores e colonizados. Esta época, que perdurou por séculos, simplificadamente, representou a era Colonialista onde as metrópoles começaram a comandar o mundo.
À época, a ideia do Eurocentrismo — a Europa como o centro do planeta — se encontrava em franca propagação e a noção de superioridade da “raça europeia” sobre as demais seduziu autores e entusiastas que publicaram uma série de estudos até bizarros, se vistos com a visão de hoje. Naturalmente, a raça tida como caucasiana (branca) foi posta como a de maior expressão, a “superior”, sendo as demais seu contraponto, as “inferiores”.
Posteriormente, também se tem que poucos anos depois da publicação do Tratado Antropológico Experimental do Homem Delinquente, no século XIX, a Europa havia dividido o continente africano entre suas potências econômicas, sob a bandeira do Neocolonialismo (“imperialismo econômico”), e mais uma vez a noção da superioridade europeia seguiu a galope. Fato similar a este também verificado sobre quase todo o globo, inclusive.
Assim, baseados nos antecedentes seculares e enxergando o mundo sob o crivo das bandeiras europeias, Lombroso deu cabo aos seus estudos que acabaram por estigmatizar, como delinquentes, os mais diversos indivíduos inocentes que, por simplesmente trazerem consigo sinais característicos de sua origem, miscigenada ou não, foram marginalizados e algumas vezes “hasteados” como inimigos públicos.
No Brasil, o país mais miscigenado do planeta, assim como no tempo de Lombroso (e em quase toda a História), é notável e recorrente a restrição que alguns homens criam sobre seus semelhantes, de modo que sempre se pareceu buscada uma posição de destaque para si em detrimento dos demais e, dessa forma, afastando-se ou reduzindo de si o mútuo convívio por diversos motivos, principalmente sob os pretextos racial e econômico (este muitas vezes visto como algo diretamente ligado ao status social).
Por fim, ao deixar de lado os fatores exógeno, social e econômico do indivíduo, Cesare Lombroso amaldiçoou o fruto da miscigenação (mestiçagem) com o carimbo da recém-nascida ciência empírica.
Depois dos inesquecíveis e aterradores acontecimentos da primeira metade do século XX, acontecimentos estes como a política hitlerista da raça ariana que acabou por arrebatar o mundo a mais devastadora guerra da História, a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), procurou-se enterrar de vez essa e qualquer outra teoria que pusesse homens e mulheres em níveis diferentes por sua própria natureza.
Notável foi a repulsa à teoria de Lombroso que, em 21 de dezembro de 1965, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a convenção internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, sendo esta acolhida pelo Brasil, e dispondo, dentre outras, da terminante justificativa:
Convencidos de que qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, em que, não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum.”
Atualmente, tal teoria apenas é utilizada para ensinamentos sobre a evolução histórica da Criminologia e do Direito Penal, também servindo como um macabro aviso às gerações posteriores para que não incorram no mesmo erro.
Pano de fundo. Ao longo da História, os detentores de grande poder raramente se sentaram, ou sentam, à mesa em condição de igualdade com pobres, miseráveis e os ironicamente chamados de feios…
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