Foram três dias consecutivos de manifestações e para a próxima sexta-feira está convocada mais uma, em Madrid. A sentença do caso "A Manada", em que cinco jovens foram condenados pelo crime de abuso sexual e não por violação, causou um sobressalto social e político que inclusivamente originou demissões (por comentários feitos nas redes) e promessas de revisão do Código Penal espanhol.
Cada caso é único, mas não são inéditas ou isoladas as observações polémicas em sentenças judiciais. Na decisão deste processo, que vitimou uma jovem de 18 anos nas festas de San Fermín, em Pamplona, um dos juízes pediu mesmo a absolvição total do grupo, considerando que os atos sexuais foram consentidos, embora com "menor atividade e expressividade da denunciante". Por cá, também já assistimos a considerações sexistas ou minimizações da violência conjugal com base em critérios como o ciúme. E é exatamente porque os contornos deste caso o extravasam que a agitação vivida em Espanha nos dá duas lições de vulto.
Desde logo que a mudança e valorização das questões de género é imparável. As vozes mais altas continuam a ser de mulheres (de atrizes a juristas, de colunistas a ativistas), mas o tema tornou-se tão urgente, que os líderes políticos estão a agarrá-lo como bandeira. E quem o colocou na agenda, com estrondo, foram as ruas. Os gritos e cânticos da greve que parou Espanha a 8 de março ressoam ainda e voltam com refrões renovados. Sem medo de insistir, porque é para isso que temos voz.
A segunda lição é a de que a justiça está obrigada a avaliar-se a si própria, sob pena de cair envelhecida. É tempo de abandonar o tom patriarcal de muitas, demasiadas, decisões judiciais. Claro que não queremos uma justiça comandada pelas ruas nem podemos admitir que os tribunais sejam feridos na sua independência. Mas a interpretação da lei é feita por homens. Obrigados a ouvir a sociedade e a acompanharem as suas mudanças.
As leis mudam ao longo do tempo, mas é preciso que também a forma de as aplicar evolua. Na investigação e julgamento de crimes sexuais, assiste-se ainda à prevalência de preconceitos que afetam de forma inegável a aplicação da lei. Na avaliação que fazem do seu próprio trabalho, os magistrados não podem considerar-se acima da crítica. Porque a toga só confere autoridade a quem sabe usá-la em defesa da dignidade da pessoa humana. É esse o propósito da lei, antes de qualquer outro.
Inês Cardoso
SUBDIRETORA
www.jn.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário