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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Do feminino na Literatura portuguesa


Manifestação sufragista
quase sempre um sobressalto quando nos referimos à questão do feminino, tomado enquanto conceito associado à literatura e, neste caso em particular, à literatura portuguesa. A ideia de que a esta possa ser colada o rótulo de feminismo (ficando presa a ele), bem como uma outra, ainda mais perniciosa, a de que se encontra especificamente ligada ao universo feminino, são as razões mais frequentes que fazem com que as próprias escritoras reajam de forma negativa sempre que, de uma ou de outra forma, são confrontadas com esta problemática. Ou porque não querem ser conotadas com uma dimensão feminista, em que não se reconhecem e que consideram algo anacrónica, ou, por outro lado, por recusarem a ideia de um paradigma que consideram de mau-gosto e que remete a escrita das mulheres para uma suposta menoridade. Na verdade, não é disso que aqui se trata e muito menos pretendemos estabelecer uma abordagem de estudos de género, mas apresentar um panorama da literatura feminina contemporânea em Portugal, nas suas múltiplas dimensões, ao longo do século XX e, agora, do século XXI. Um século em que a escrita feminina teve um papel marcante e, não raro, transgressor, no panorama português, em particular nas últimas décadas, em que uma parte significativa da ficção portuguesa é feita por mulheres.
Embora os tratados de pedagogia de Luís António Verney (1782), no último capítulo de O Verdadeiro Método de Estudar, e de Ribeiro Sanches (1759), na sua obra As Cartas sobre a Educação da Mocidade, insistissem sobre a necessidade de instrução da mulher na sociedade, no entanto, ela far-se-ia em favor dos filhos e sempre na intimidade do lar, isto é, garantindo a preservação do recato familiar e da ordem social. Relembre-se, ainda, a este propósito, o célebre cavaleiro de Oliveira, em algumas passagens de Amusement Periodique, no qual refere que a sapiência das mulheres se requer “regradinha” como os temperos, nem muita nem pouca, mas o suficiente para educar os filhos e animar os salões, para entreter os maridos. Para manter o estatuto das mulheres, a sociedade contava com dois aliados: uma mentalidade profundamente conservadora e anti-feminina e a exclusão da mulher dos sectores de produção e de trabalho, factor que garantia a sua dependência económica.
O facto de a nossa história não reconhecer a importância das mulheres nem o seu contributo para as mais diversas áreas não significa que tivessem faltado à história portuguesa exemplos de mulheres ousadas como Joana Vaz, Paula Vicente — filha de Gil Vicente -, Leonor Coutinho, Ângela e Luísa Sigeia (irmãs), Públia Hortênsia de Castro, que se distinguiram na Literatura. É Helena Vasconcelos, no seu livro Humilhação e Glória (Quetzal Editores, 2012)quem sublinha o contributo das suas obras, muitas ou quase todas remetidas ao esquecimento. Também houve mulheres que, vestidas de homens, partiram para as guerras e combates, ao lado dos homens, mesmo durante o período dos descobrimentos, em que partiam nas caravelas, usando de astúcia feminina.
No século XVIII, as mulheres que possuíam dinheiro e uma certa posição social conheceram alguma liberdade e importância na sociedade. É, aliás, sabido que o século XVIII permitia às mulheres uma liberdade maior que às suas sucessoras do século XIX, mais espartilhadas pelas convenções sociais e pela prepotência masculina e que apenas as valorizava enquanto «fadas do lar». Se o final do século XVIII e século XIX teve uma escritora que se distinguisse, essa foi a lendária Marquesa de Alorna (1750–1839) e tal só se tornou possível devido à atribulação da sua vida que, condenando-a ao exílio por causa da perseguição do Marquês de Pombal aos Távora, a levou aos salões literários europeus, onde privou e conheceu as grandes figuras da literatura e da cultura europeias, em particular Madame de Stael, célebre romancista e ensaísta francesa, figura emblemática do iluminismo em França.
Marquesa de Alorna
A fina educação da Marquesa de Alorna e a leitura de filósofos como Voltaire, Rousseau e Montesquieu, entre outros, contribuiu para a sua formação e para a liberdade do seu pensamento e da sua cultura, tendo sido ainda conhecida pelo seu talento para o desenho e para a pintura. Sobre a obra e a vida de Marquesa de Alorna escreveu Maria Teresa Horta, sua descendente, uma obra magistral, As Luzes de Leonor (D. Quixote, 2011).
Na Transição do século XIX para o XX
Já o século XIX, como o reconhece Helena Vasconcelos na mesma obra, foi “pernicioso e, em muitos casos, devastador para as mulheres.” (p. 158) O romantismo, veiculando a ideia da mulher como um ser frágil e instável, caprichoso e melancólico, remeteu as mulheres para um estatuto de «deusas», de mães intocáveis, o que muito convinha ao universo masculino, enclausurando-as no lar.
Porém, o século XX assiste ao crescimento do feminismo em Portugal durante o período da implantação da República, com o aparecimento de movimentos femininos, sufragistas e ligados à Maçonaria. Relembrem-se aqui os casos de Adelaide Cabete (1867–1935), médica e republicana convicta e que fez parte da Liga Republicana das Mulheres, tendo lutado pelo direito de voto das mulheres. Durante mais de 20 anos, esta médica obstetra e ginecologista que defendeu ideias progressistas e que esteve ligada a várias organizações de cariz social e político presidiu ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1914–1947) mandado encerrar por Salazar e cuja última presidente foi Maria Lamas. Também as pedagogas e escritoras como Carolina Beatriz Ângelo (1878–1911), que foi a primeira mulher a exercer o direito de voto nas eleições constituintes de 1911, e Ana de Castro Osório (1872–1935), jornalista, escritora e republicana, Presidente do Grupo de Estudos Feministas, muito contribuíram para a construção da igualdade e para o despertar da importância dos direitos femininos na sociedade portuguesa. Mais do que lutar pelo direito de voto — e nisto se diferenciavam as organizações portuguesas das organizações de sufragistas inglesas — consideravam prioritário o direito das mulheres à instrução e a sua frente de luta foi precisamente (enquanto pedagogas de ideias muito avançadas) contra o analfabetismo e pugnando pela educação das mulheres e das crianças e a saúde materna e infantil. Outra das suas preocupações foi com o restabelecimento da Paz, durante a Primeira Grande Guerra. Houve, ainda, duas mulheres, que merecem referência, sobretudo pela luta pelos direitos cívicos que pretendiam idênticos aos dos homens: Maria Veleda (1871–1955) e Angelina Vidal (1847–1917), activista social, escritora e jornalista.
Florbela Espanca
Todavia, é num contexto social em que vigora ainda um conservadorismo feroz que emerge a obra de Florbela Espanca (1894–1930), ao arrepio da sua época. Figura Florbela entre as raras mulheres que têm acesso a educação superior. Quando se matriculou na Universidade de Direito, em 1917, era uma das 14 mulheres, entre 347 alunos inscritos, revelando o escasso nível de educação entre as mulheres. Talentosa e bela, rapidamente se tornou notada. As suas obras de poesia, cuja lírica forte e impressiva se impunha na poesia da sua época, mostravam um lado feminino pouco usual na literatura, como o desamor, a solidão e uma profunda melancolia, que viria a vitimá-la em 1930. A sua obra-prima, Charneca em Flor, foi publicada um dia após o seu suicídio trágico e dois anos depois da morte do seu adorado irmão, Apeles Espanca. A assumpção do desejo erótico é igualmente um dos temas que contribuíram para o carácter transgressor da sua obra, rompendo com os cânones morais e sociais do seu tempo. A sua vida, atribulada e apaixonada, marcada pelos divórcios e casamentos, constituíam, por um lado, um desafio às regras vigentes e, por outro, uma afirmação da liberdade feminina numa sociedade patriarcal que apenas destinava à mulher um papel passivo. Tanto Florbela, quanto mais tarde Judith Teixeira (1880–1959), que a antecedeu e cujos livros, considerados imorais, foram alvo de perseguição e queimados no pátio civil, em conjunto com a obra do poeta António Botto. Mais discreta na sua vida pessoal, Judith Teixeira acabaria por ficar esquecida e os seus livros ficariam por reeditar. Só recentemente a sua obra começou a ser objecto de estudo.
Irene Lisboa (1892–1958) foi professora, pedagoga, escritora e igualmente uma das vozes mais marcantes da literatura portuguesa tendo a sua obra sido repartida pelos vários géneros literários: poesia, conto, crónica e novela. Tendo continuado os seus estudos de pedagogia em países como a Suíça, França e Bélgica, conheceu Jean Piaget e Édouard Claparède, com quem estudou no Instituto Jean-Jacques Rousseau. Brilhante pedagoga, quis aplicar as suas ideias e acabou por se ver afastada do ensino por causa dessas mesmas ideias que colocavam em causa o aparelho burocrático do estado. Já reformada, a partir dos 48 anos dedicou-se inteiramente à sua obra pedagógica e literária, o que valeu a admiração de críticos como João Gaspar Simões e dos escritores José Gomes Ferreira e José Rodrigues Miguéis. Porém, a sua obra nunca conheceu grande aceitação por parte do público. Na opinião da ensaísta e professora Paula Morão, a sua lírica rompe com os cânones da poesia e da lírica tradicional, dando lugar ao verso livre. A sua escrita toma por objecto temas como o quotidiano e a solidão urbana, numa procura de redescobrir o amor pela simplicidade das coisas. As suas primeiras obras foram publicadas com pseudónimos masculinos, para garantir uma maior aceitação pública: João Falco para a literatura e Manuel Soares para a obra científica. Deve ser ainda ressaltado o seu papel fundamental na oposição portuguesa, pois Irene Lisboa combateu pela emancipação das mulheres, tendo pertencido ao MUD (Movimento de Unidade Democrática), que foi criado em 1945 e a cuja direcção pertenceu, bem como Maria Lamas (1893–1983), nossa representante no Conselho Mundial da Paz. Tanto estas duas escritoras, como Manuela Porto (1908–1950), ligada ao teatro e que introduziu em Portugal a escritora Virginia Woolf, entre outras escritoras feministas. Não é nunca demais lembrar a escritora Maria Archer (1899–1982), cuja coragem assombrosa afrontou a sua época.
Virginia Woolf
Maria Archer foi das raras escritoras portuguesas que, numa época em que as mulheres sofriam pela sua dependência económica, viveu da sua escrita, enquanto jornalista e, graças às suas ideias políticas, sofreu o afastamento da sua própria família. Ilse Losa (1913–2006), de origem alemã e judaica, chegou a Portugal em 1934, onde veio a casar e adquiriu a nacionalidade portuguesa. A sua obra é essencialmente dedicada à tradução e literatura infanto-juvenil.
Também Maria Judite de Carvalho (1921–1998) se destacou no panorama da literatura portuguesa contemporânea pela sua vasta obra, inovadora e crua. Casada com o escritor Urbano Tavares Rodrigues, conheceu o exílio entre 1949 e 1955, tendo vivido entre a França e a Bélgica. A sua linguagem depurada e “limpa”, abordando temas como a angústia e a solidão, foi certamente muito influenciada pelo existencialismo, que conheceu de perto enquanto viveu fora de Portugal. Paisagem sem Barcos (1963) e Armários Vazios (1966) representam o que de melhor nos trouxe a literatura feminina, obras cuja linguagem era reduzida ao essencial e depuradas, como não existiam no seu tempo. Destaquem-se, ainda, duas autoras igualmente importantes, como a escritora Natália Nunes (1921), viúva do poeta António Gedeão e mãe de Cristina Carvalho, uma das autoras da nossa actualidade, Fernanda Botelho (1926–2007) e Isabel da Nóbrega (1925), que pertenceram, juntamente com Maria Judite de Carvalho, à direcção da SPE — Sociedade Portuguesa de Escritores, criada em 1956 e encerrada pela PIDE em 1965. Na literatura infantil e juvenil, podemos encontrar Matilde Rosa Araújo (1921–2010) e Maria Rosa Colaço.
Clarice Lispector
Do lado brasileiro, a literatura estava na sua plenitude e chegava-nos a importância de autoras como Clarice Lispector (1920–1977), com a sua escrita ousada, visceral e desafiadora dos cânones literários, abordando temas como a loucura e a sexualidade. Na poesia, sublinhe-se a lírica de Cecilia Meireles (1901–1964), que cruzava a herança simbolista com o modernismo, tendo mantido uma relação de amizade próxima com vários poetas portugueses, tendo sido casada (em primeiras núpcias) com um artista plástico português, Fernando Correia Dias (1892–1935).
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919–2004) pode ser considerada, na literatura portuguesa, uma das poetisas mais importantes. Mais tarde, após o 25 de Abril, viria a desempenhar funções políticas que a transformaram numa das mulheres que marcaram o período pós-revolucionário. Também Natália Correia (1923–1993) foi não só uma mulher corajosa e dotada de um poder oratório invulgar como uma escritora notável (hoje um pouco esquecida) e uma figura pública incontornável — organizadora de tertúlias e de encontros entre poetas e escritores — que protagonizou momentos inesquecíveis de resistência, participando das campanhas de apoio às candidaturas para a Presidência da República do general Norton de Matos (1949) e de Humberto Delgado (1958). Era considerada uma das mulheres mais belas de Lisboa e o seu bar O Botequim foi considerado um dos pólos culturais mais importantes durante as décadas de 70 e de 80. A sua obra vasta repartiu-se entre a ficção, a dramaturgia e a poesia. Foi ainda responsável pela coordenação da Editora Arcádia, uma das grandes editoras portuguesas da época e viu-se também implicada no caso da publicação de Novas Cartas Portuguesas, o que lhe valeria uma sentença de três anos de prisão e absolvida cm o 25 de Abril.
A geração poética que, em Portugal, emergiu com o movimento em torno da da revista Poesia 61, trouxe para a ribalta autoras que fariam uma completa revolução da poesia, contando-se entre elas Maria Teresa Horta (1937), Luiza Neto Jorge (1939–1989) e Fiama Hasse Pais Brandão (1938–2007). Vozes que se confirmariam mais tarde na poesia portuguesa. Foi, no entanto, o escândalo da publicação de As Novas Cartas Portuguesas, da autoria de Maria Teresa Horta, Isabel Barreno (1939) e Maria Velho da Costa (1938), que se tornou claro o poder que a literatura feminina teve na década de 70, provocando um verdadeiro abalo no país e na forma como eram olhadas as mulheres dessa época. 1971 foi o ano em que tudo aconteceu, tendo levado à acusação e à condenação das suas autoras por pornografia, provocando um verdadeiro cataclismo na opinião pública internacional. Mais do que nunca, a escrita feminina concentrou em si, apadrinhada por Natália Correia, esse poder verdadeiramente transgressor da linguagem, que desferia um golpe certeiro nas estruturas do poder político e social. Foi um ano aziago para Marcelo Caetano, que viu tremer o fascismo e se viu criticado pela imprensa estrangeira, naquilo que foi considerado pelas feministas europeias e americanas como um grande escândalo. O prestígio de que gozavam fora do país as autoras pelas suas ligações ao feminismo era de tal forma que, em 29 de Março de 1973, era assinado no Times, por vários escritores, uma carta de repúdio à perseguição das três escritoras.
Após o 25 de Abril, as vozes femininas impuseram-se na literatura portuguesa, tanto na poesia quanto na ficção. Isabel da Nóbrega, Agustina Bessa-Luís, Maria Ondina Braga, Maria Gabriela Llansol, Lídia Jorge, Hélia Correia, Teolinda Gersão, Maria Velho da Costa, Ana Hatherly, mas também poetas como Sophia, Fiama, Natália Correia, Luiza Neto Jorge, Eduarda Chiote, Isabel de Sá, Rosa Alice Branco, Ana Luísa Amaral, Helga Moreira, Adília Lopes, Alice Vieira, entre muitas outras vozes mais recentes que emergem actualmente, como Luísa Costa Gomes, Ana Teresa Pereira, Dulce Maria Cardoso, Inês Pedrosa, Cristina Carvalho, Patrícia Reis ou Alexandra Lucas Coelho, vêm corroborar a importância que as vozes femininas ocupam hoje no panorama da literatura portuguesa.
No campo da poesia, se nas últimas décadas têm sido mais expressivas as vozes masculinas, no entanto, a partir do novo século são muitas as vozes femininas e jovens que tendem a impor-se na poesia portuguesa, como Ana Marques Gastão, Margarida Vale de Gato, Filipa Leal, Rita Taborda Duarte, Margarida Ferra, Inês Fonseca Santos, Raquel Nobre Guerra, Cláudia R. Sampaio, Rosalina Marshall, Golgona Anghel, Rosa Oliveira, Cláudia Lucas Chéu. Que a literatura feminina conhece hoje uma assinalável pujança é um facto incontornável e que muito deve ao combate que as femininistas travaram contra os preconceitos de uma sociedade tradicional e conservadora é outra verdade, que não deve, nunca, esquecer-se. Em nome da justiça.
@Maria João Cantinho/Júlia Coutinho

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