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sábado, 1 de julho de 2017

O call center saiu à rua num dia assim



«Eu sou a voz da MEO. Só não dou a cara porque o cliente nunca me vê, mas dou o melhor do meu trabalho». Irina (nome fictício) trabalha há 15 anos para a PT-MEO mas, apesar disso, a PT-MEO não a quer contratar: é mais lucrativo recorrer a empresas de trabalho temporário e outsourcing. «Foi com a minha voz, com o meu trabalho que, no ano passado, tiveram lucros de 279 milhões de euros. Não há desculpa para estarmos décadas a ganhar praticamente o salário mínimo, sem estabilidade nenhuma. Têm de nos integrar nos quadros. Isto tem de acabar», explicou ao Manifesto74. E foi para «acabar com isto» que ontem, ainda de madrugada, Irina partiu de Santo Tirso num autocarro rumo a Lisboa. Fez greve e foi à sede da PT-MEO, acompanhada por cerca de outros 200 trabalhadores de call centers de todo o país, exigir o fim da precariedade, aumentos salariais e melhores condições de trabalho.

Nelson Leite, delegado do Sindicato Nacional de Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual (SINTTAV), trabalha há nove anos para a PT-MEO, no Porto, mas também não está nos quadros do gigante das telecomunicações. «Eu até tenho um contrato efectivo com a Manpower, mas o comando da precariedade é MEO», ironiza, «basta a Manpower perder um concurso e pode mandar-me embora. O meu contrato é estável? Não. É precário».

Quando se pensa em precariedade não se pensa imediatamente em direitos, sindicatos e lutas mas no back office / call centeronde Nelson Leite trabalha, na Rua Tenente Valadim, no Porto, o trabalho precário já não é o que era: em menos de um ano, o jovem sindicalista viu o número de inscrições no SINTTAV duplicar, fizeram-se três greves, multiplicaram-se os plenários de trabalhadores. E ontem, milhares de trabalhadores de Norte a Sul do País, pousaram os headsets, deslogaram-se e foram à luta.
Nelson Leite, delegado do SINTTAV

Tenente Valadim, uma história de coragem

«Bate as duas horas e vês uma multidão a parar tudo, a levantar-se. Uma disciplina brutal. Não estamos a falar de metalúrgicos
Há precisamente um ano, quando era impensável uma greve nacional nos call center ou uma manifestação em Lisboa, os trabalhadores do portuenses da PT-MEO eram transferidos da EGOR para a Manpower. «Foram momentos de muita ansiedade», recorda Nelson Leite. «Existiam rumores de cessação de contratos, falava-se  de transferências para outros postos de trabalho, temia-se que o tempo para ficar efectivo não contasse. E os patrões não nos diziam nada. Iam transferir trabalhadores como quem transfere cadeiras e mesas». Havia, também, entraves à marcação das férias, trabalhadores com a receber subsídios de refeição com valores diferentes, entre outros problemas.
Quando o SINTTAV interveio, as férias dos trabalhadores foram aprovadas, a nuvem de dúvidas foi desvaneceu-se e, em Novembro, o sindicato marcou um plenário na Tenente de Valadim, para informar e escutar os trabalhadores «A PT tinha-nos dado uma salinha minúscula, no terceiro piso. Apareceram sessenta e tal trabalhadores. Simplesmente não cabíamos na sala. Tivemos de ocupar um átrio inteiro e saímos de lá com um documento reivindicativo».
O patronato fez orelhas moucas, mas estava acendido o rastilho. Em Dezembro há um segundo plenário e os trabalhadores partem para uma greve de três horas. Entre as principais exigências: passar todos os trabalhadores que ganhavam o salário mínimo, então 530 euros, para 600 euros e, para os que ganhavam 612 euros ou mais, um aumento nunca inferior a 40 euros. Desesperada para evitar a paralisação, a administração ensaiou uma cedência: todos os subsídios de refeição foram actualizados para 6 euros, mas nem uma palavra sobre vínculos e salários. E a greve aconteceu mesmo a 9 de Janeiro deste ano.
«Para a esmagadora maioria foi a primeira greve. Foi fantástico. À porta da empresa, a desafiar uma das maiores empresas de telecomunicações do mundo. Com os directores à janela a ver. É preciso coragem. Porque não são trabalhadores da casa, são externos. Muitos acabavam a greve e voltavam para o posto de trabalho. Tem um valor do caraças. A greve começava às 2h. Bate as duas horas e vês uma multidão a parar tudo, a levantar-se. Uma disciplina brutal. Não estamos a falar de metalúrgicos… São trabalhadores que hoje estão ali e amanhã podem não estar. É mesmo assim», contextualiza Nelson Leite.
A greve é um sucesso estrondoso e, pela primeira vez, a administração da Manpower aceita falar com o SINTTAV a 17 de Fevereiro. Segundo a empresa que no último ano alcançou 114 milhões de euros em vendas, não havia condições para aumentar salários sem colocar em causa a própria operação.
«Os trabalhadores não desanimaram», conta Nelson Leite. «Pelo contrário, sentia-se mais confiança, mais força». Novo plenário, nova greve marcada, desta feita de 24 horas com manifestação incluída e data marcada para dia 22 de Março. O call center de Santo Tirso decide juntar-se. A adesão ultrapassa os 95 por cento. Não nos esqueçamos que é de trabalhadores com vínculos precários que estamos a falar. De onde vem tanta coragem?

Uma nova Índia?

André Silva trabalha para a Randstad, em Lisboa. Já tinha feito greve no dia 28 de Março, Dia Nacional da Juventude. «Isto é uma causa justa. Não há justificações aceitáveis para nos dizerem que não. A não ser nós não lutarmos», argumenta.
A mesma opinião partilha Daniel Negrão, dirigente do Sindicato Nacional Trabalhadores Correios e Telecomunicações (SNTCT): «é inadmissível que trabalhadores que trabalham há décadas para a PT continuem em empresas de trabalho temporário», acusa, «quando eu me reformar, o posto de trabalho vai continuar a existir. O posto de trabalho é permanente. Não há nenhuma justificação para recorrer a empresas de trabalho temporário. Exigimos ser integrados nos quadros da PT conforme a nossa antiguidade e conforme os salários da PT, que são normalmente três vezes mais altos que os nossos».
Daniel Negrão, dirigente do SNTCT
A greve de ontem foi simultaneamente, ponto de chegada e ponto de partida. Produto de muitas lutas no Porto, em Lisboa, Coimbra, Santo Tirso, Castelo Branco… e instrumento «do que os trabalhadores decidirem que se deve fazer a seguir», assevera Daniel Negrão.
Entre palavras de ordem contra a precariedade e em defesa de aumentos salariais, entram e saem, dentro de automóveis de luxo, altos quadros da PT-MEO. Serão estes os empresários que, há dois anos, elogiavam os efeitos da crise na queda de salários, prometendo fazer de Portugal a nova Índia do telemarkerting? Tabalho e capital trocam olhares tensos. Não há medo de represálias, de perder o trabalho? Nelson Leite é assertivo: «quando os trabalhadores estão unidos não há hipótese. E nunca estivemos tão unidos».
«Há pouco tempo, na Tenente Valadim, tínhamos posto um documento sobre a greve», conta Ricardo Franco, trabalhador do call center do Porto, «no dia seguinte tinham-no “limpado”. Mas eram eles a agir às escondidas, percebes? Então fizemos um novo e, depois, na minha hora de almoço, fui lá pessoalmente dar um ao meu coordenador: “tome, vamos distribuir isto, dou-lhe já um”». Os trabalhadores começavam a perder o medo.
Não é bem o caso de Rita Pestana, 39 anos. Não quer ser fotografada: «Nunca se sabe». Antes de assinar contrato com a Manpower, há cinco anos, passou por outras quatro empresas de outsourcing, outros quatro call centers. Sempre sub-contratada, sempre vínculos precários, sempre salários que, admite, «não era a mim que deviam envergonhar, mas é a mim que envergonham». Formou-se em Estudos Portugueses, mas nunca trabalhou na área. Valeu a pena ter estudado tanto? «Sem sombra de dúvida! Olha, ajuda a explicar o que se está a passar hoje, com esta malta aqui à porta», garante. E, como que para provar o que diz, recita, sem rastro de hesitação, o poeta António Aleixo: «Esta mascarada enorme / com que o mundo nos aldraba / dura enquanto o povo dorme / Quando ele acordar, acaba».
Este artigo encontra-se em: Manifesto 74 http://bit.ly/2t1Zh77



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