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quinta-feira, 27 de julho de 2017

Autópsia de uma morte já anunciada, a do PSF


François Mitterrand: “A luta de  classes não é para mim um objetivo. Procuro que esta deixe de existir!”
Lionel Jospin:  “Eu sou um socialista de inspiração, mas o projeto que proponho ao país  não é um projeto socialista. É uma síntese do que é necessário hoje. Ou seja, é  a modernidade. ”

François Hollande   “Vivi cinco anos de poder relativamente absoluto. (…)  Eu naturalmente impus ao meu campo que, sem nenhuma sombra de dúvida, só iria aprovar as políticas que eu consideraria serem justas.” 

Autópsia de uma morte já anunciada, a do PSF
(Introdução, por Júlio Marques Mota)
JULIO_MOTA


A farsa acabou. O povo francês, Macron escolheu. Um outro ciclo de tragédia e de  farsa já começou.

É sobre este novo ciclo que agora se abre na política francesa que iremos primeiramente falar. Uma coisa é já certa, o palco é o mesmo mas a peça é já outra, mudou de nome, enquanto os atores continuam a ser praticamente os mesmos de vários ciclos  de tragédia-farsa que se iniciaram  em 1983 e se concluíram  com a eleição de Macron em Junho  de 2017.

Por detrás de tudo isto há, porém, uma longa história, a da morte lenta do Partido Socialista francês, iniciada em Março de 1983 com Mitterrand, que teve como ajudantes de campo Pierre Mauroy, o seu primeiro-ministro, e Jacques Delors o seu ministro das Finanças, e depois concluída em 2017 por François Hollande, tendo como ajudantes de campo Manuel Valls e Macron. No fundo, uma tragédia que se iniciou com o rei  Mitterrand I  e que se conclui por uma farsa, com o mentecapto  François, aspirante a ser o rei  Hollande I,  e que depois de  eleito Presidente em 2012 acelerou o processo de decomposição do PSF e da vida política em França.
hollande1
Poder-me-ão criticar dizendo que estou  a exagerar, que sou um adepto da teoria da conspiração   em tudo o que se refere à França mas aqui reajo dizendo que François Hollande ele próprio esclarece bem melhor do que eu o que próprio quero dizer. Com feito diz-nos ele:

“Vivi cinco anos de poder relativamente absoluto, finalmente, uma vez que assim é também a quinta República. Eu naturalmente impus ao meu campo que, sem nenhuma sombra de dúvida, só iria aprovar as políticas que eu consideraria serem justas.”  François Hollande [1]
Tudo bem claro. Fez-se a política que desejou a que se conclui pela eleição de Macron. O desprezo destes supostos absolutistas atingiu níveis inimagináveis e  o resultado, a morte do PSF, ficou à altura dos desejos dos principais atores do último ato da farsa em Junho concluída: Macron, Valls e François Hollande. Como sublinha  Rémi Lefebvre:

“A destruição do PS aparece como uma estratégia deliberada de Manuel Valls que se projeta com um cinismo dificilmente contido para além da próxima derrota. Muito minoritário aquando das primárias de 2011, ele procura liquidar “o velho partido”, como o fez Tony Blair (um dos seus modelos) antes dele próprio, para reinicializar o jogo político ao centro. Esta estratégia parece ter sido também a de François Hollande, mas na perspetiva da eleição de 2017, a acreditar-se nas suas declarações aos jornalistas Gérard Davet e Fabrice Lhomme. “É necessário um ato de liquidação. É necessário um hara-kiri”, confia-lhes o presidente no dia 11 de Dezembro de 2015, quando estava à procura de uma estratégia para assegurar a sua reeleição [18] Propõe então rebatizar o PS de “O partido do progresso”. O partido socialista, na sua opinião, já não estaria adaptado à nova configuração da esquerda:

Tanto quanto havia partidos de esquerda, os comunistas, os Verdes que aceitavam fazer aliança com o PS e que representavam alguma coisa, não se tinha nenhum interesse em refundar o PS, diz o chefe do Estado. Mas dado que estes aliados estão rigidificados, sectarizados, é necessário trabalhar sem estes partidos. Como? Com o partido mais importante, dele faz-se com efeito um novo com que se permite dirigirmo-nos aos eleitores ou aos quadros dos outros partidos. [2]

Nunca Salinas, nunca o Leopardo de Lampedusa, terá sido melhor exemplificado  do que no caso presente. É preciso que algo mude para que fique tudo na mesma, a máxima de Salinas, a máxima agora tão claramente exemplificada por Hollande.

Do partido  mais importante faz-se um partido novo e recorre-se aos quadros dos outros partidos, diz-nos François Hollande! Foi o que agora foi feito com Macron e o seu partido La Republique en Marche! E para quê? Para se continuar a submissão à lógica imperial da Alemanha, iniciada esta lógica pelo medo  de Mitterrand face aos desvarios militares e megalómanos dos alemães e potencializada depois também pela submissão assumida com orgulho por   Lionel  Jospin e  Hollande à alta finança, sobretudo americana.  Um processo bem mais violento do que nos tempos de angústia e de hesitações de Miterrand. Na pátria onde nasceu a trilogia Liberdade, Igualdade, Fraternidade, esta é agora substituída por uma outra trilogia, Redução máxima possível dos direitos de quem trabalha por conta de outrem,  redução máxima possível dos deveres de quem vive do trabalho dos outros ( o grande capital)  minimização máxima possível das funções redistributivas do Estado Social para quem delas precisa

As declarações do Primeiro-Ministro Edouard Philippe  na terça-feira, 4 de julho, na Assembleia Nacional  sobre as medidas de austeridade para uns, corte no número de funcionários, congelamento dos salários dos funcionários públicos, cortes nas despesas públicas acompanhadas pelo endurecimento  da lei  EL Khomri, enquanto para outros há uma redução de impostos (!), o todo  é já bem elucidativo do que aí vem, tanto mais quando se está a falar de um país   económica e financeiramente em dificuldade. Mais concretamente e em síntese vejamos o que foi dito na Assembleia Nacional Francesa no dia 4 de Julho:

“Desde a minha tomada de posse,  quis dispor de uma visão clara  da situação das nossas contas públicas. A constatação é grave: 8 mil milhões de euros de despesas não financiadas, a nossa dívida atingem um nível insuportável, 2, 147  milhões de  mil milhões de euros.
Esta dívida põe-nos à mercê  dos mercados financeiros, que têm o ar de  não pôr  problemas à ninguém,  mas são as suas  flutuações que decidem cada vez mais do nosso futuro.

Sob o olhar inquieto dos Franceses, dançamos sobre um vulcão que ruge cada vez com mais violência. Alguns continuam no entanto a negar a evidência. “Quantas vezes um homem podem virar a cabeça pretendendo que não vê? ” perguntou  o Preço Nobel de Literatura do ano 2017.
Há uma dependência compulsiva, doentia,  à despesa pública. Como toda a dependência compulsiva, dita também adição,  ela não resolve em nada o problema que é suposto estar a querer aliviar.  Da mesma maneira que a adição, a sua cura  necessitará da vontade e da coragem para dela se desintoxicar.

O meu objetivo é colocar o défice sob a barra dos 3% a partir de 2017 e conduzir a nossa estratégia de finanças públicas em torno  de três regras simples: fazer reduzir a pressão fiscal de um ponto de PIB sobre cinco anos, fazer reduzir a despesa pública de 3 pontos de PIB sobre o mesmo período.
Quero primeiro tranquilizar os nossos concidadãos: os contribuintes não serão a variável de ajustamento do orçamento. Pelo contrário. Pelo contrário. Pelo contrário, as contribuições  obrigatórias reduzir-se-ão de 20 mil milhões de euros daqui até 2022. A França não pode ser  ao mesmo tempo a campeã da despesa pública e a campeã dos impostos.

Tratando-se  da despesa pública, o objetivo do Governo é ambicioso, é fazer de modo a que esta seja estável, em termos reais,  em 2018 em relação a 2017. Estável: não gastar  mais em 2018 do que em  2017. Outros todos os Estados já o fizeram.

Digamos  a verdade aos Franceses: para atingir estes objetivos sobre a despesa pública, vai ser necessário agir sobre três vertentes. A primeira vertente é  acabar com a inflação da massa salarial do sector público que representa um  quarto das nossas despesas públicas.
França está encostada às cordas   e nenhuma esquiva nos poderá salvar.  Tenho consciência de apelar ao esforço e à coragem.

Desde o início do ano político, o Governo apresentará ao mesmo tempo o orçamento para 2018 e uma lei de programação das finanças públicas que leve em contra  a duração completa do mandato presidencial de  cinco anos
Esta trajetória deverá recolocar  a Segurança social em situação de equilíbrio financeiro no horizonte 2020. Deveremos, daqui até lá, definir novas regras que permitem eliminar ao longo do tempo, o  défice das nossas contas sociais.
Para atingir estes objetivos, devemos desencadear  uma verdadeira transformação do Estado e dos nossos serviços públicos.
Será aplicada progressivamente ministério a ministério, em várias vagas, daqui até à Primavera de 2018.”

Como se vê não estamos a exagerar.

Mas para chegar aqui, é toda uma história que é conveniente não ignorar., Trata-se, pois, de uma longa história que merece ser contada e com ela se irá fazer a autópsia de uma morte que está ainda para vir mas tem já data anunciada, a do PSF. Uma história de que devemos tirar todas as lições se nos quisermos posicionar corretamente perante a História e não repetir, aqui em Portugal ou algures, o que se está a ser feito atualmente pela social-democracia europeia e pelos outros partidos socialistas que lá fora se vergam face aos desejos imperiais de Berlim.
A história de uma morte anunciada e pelos vistos bem desejada pelos altos quadros do PSF tem dois grandes marcos bem claros a assinalar o seu começo como tragédia e o seu fim como farsa: a posição de Mitterrand I em Março de 1983 quando faz a sua viragem à direita, para as políticas de rigor, faltando às promessas eleitorais que lhe deram o cargo de Presidente e a sua opção consequente foi então optar por satisfazer a Alemanha  de Helmut  Kohl  contra a maioria de todos aqueles que o elegeram.
Como assinala Francois-Ruffin[3] relativamente ao abandono das classes trabalhadores em França, abandono este levado a cabo por Mitterrand I e desenhado a partir de Fevereiro de 1983:
“Miterrand nomeia Bérégovoy que, para além das suas qualidades pessoais, para além do seu fim trágico, encarnou a esquerda carpete, vergou-se totalmente em face das potências do dinheiro, pôs-se de joelhos face à Alemanha e à Europa. Todo um programa, para o futuro presidente: ele não lutaria, não resistiria, anunciava-o já. Em 1983, François Mitterrand, e com ele o PS, tinha aberto “o parêntese liberal”, assinado um armistício, após muitas hesitações, muitas evasivas, após uma pequena dor de alma. Trinta anos depois, o seu sucessor no Eliseu faz desta renúncia o seu orgulho: a capitulação quer-se definitiva – e habitada por um estranho orgulho.”

No dia 16 Março de 1983 – A decisão de Mitterrand

O Conselho de Ministros aprova, esta manhã, a redução da idade da reforma para os 60 anos. Aí está, para a fachada. Pelo lado dos bastidores, o jovem Fabius pediu um encontro com o “Velho” e, por sua vez “vai esforçar-se então para fazer compreender as consequências terríveis que poderia ter uma saída do franco do SME”. É, ao que parece, a entrevista decisiva. Imediatamente a seguir, François Mitterrand recebe de novo Pierre Mauroy e pede-lhe, esta vez, “que pense na formação de um governo no âmbito da manutenção no SME”. Os dados estão lançados, em princípio. Mas o presidente não intervirá, disse-o, na televisão senão na quarta-feira 23 de Março. Tudo dependerá, ainda, das negociações monetárias que se devem realizar neste fim-de-semana em Bruxelas.

23 Março 1983 – Abandonos das  posições que eram a alma do PSF

François Mitterrand intervém na televisão:
Não quisemos e não queremos isolar a França da Comunidade europeia… É tempo de parar a máquina infernal. Combater a inflação, é salvar a moeda e o poder de compra. Aí está porque é que irei lutar, e o governo comigo, contra este mal, e mobilizarei o país para este fim. […] E acontece o mesmo com o outro mal que nos corrói: o défice insuportável do nosso comércio externo e a dívida que daí decorre. O vosso papel é decisivo. Por toda a parte onde se fabrica e por toda a parte onde se cria, por toda a parte onde se compra, por toda a parte onde se troca, na vossa maneira de viver, de consumir e mesmo de viajar, devemos preferir, a qualidade igual, as produções francesas. O esforço pedido a todos deverá ser repartido equitativamente de modo a que cada um contribua à medida dos seus meios.

A viragem é ainda discreta, o discurso “moderno” é um pouco tímido. Mas neste dia, a esquerda abandona dois instrumentos económicos essenciais:
 — a soberania monetária: a França renuncia a desvalorizar ou reavaliar a sua moeda de acordo com as suas necessidades, ligando-se ao marco forte;
 — a soberania comercial: a França proíbe-se de utilizar qualquer protecionismo, substituindo uma medida política, as taxas nas fronteiras, pela boa vontade do consumidor convidado a comprar francês, suprema conversa fiada.
E como é que o desemprego será combatido? “Pela formação dos jovens”, que será o refrão do PS durante vinte anos, o disfarce da abdicação. É dizer que se abandona este combate contra o desemprego, julgado menos prioritário que “a luta contra a inflação”, ou “o défice da Segurança social”.

15 Setembro 1983 – A reviravolta das posições políticas do PSF de outrora assumida e irrevogável 

O presidente volta à televisão após seis meses de relativo silêncio e, nesta emissão excecional intitulada L’Enjeu, a reviravolta é agora assumida, a modernidade da mudança é reivindicada. “A luta de classes não é para mim um objetivo. Procuro que esta deixe de existir!” proclama François Mitterrand que, durante todos os anos de 1970, denunciava “uma luta de classe entre este pequeno grupo de privilegiados e a massa dos assalariados”, entre “o operário especializado, dominado, oprimido, forçado até à revolta” e “os donos do dinheiro, o dinheiro, o dinheiro, os novos senhores, os donos do armamento, os donos dos computadores, os donos dos produtos farmacêuticos, os donos da energia elétrica, os donos do ferro e do aço, os donos dos solos e dos subsolos, os donos do espaço, os donos da informação, os donos das ondas”. 

Ei-lo, pois em direto na TF1, que reabilita o lucro à esquerda (“Eu não sou, de modo nenhum inimigo do lucro, desde que o lucro seja justamente repartido”), que impõe os critérios de Maastricht antes de Maastricht (“não se poderá ter um défice orçamental de mais 3 % da produção interna bruta”), que denuncia as “cargas excessivas” (“demasiado imposto, mata o imposto. Asfixia-se a produção, asfixiam-se as energias. Chega um momento em que isto é insuportável, e este momento chegou”), e Mitterrand fecha, sobretudo, a porta a uma “outra política”: “Penso, eu, que há apenas uma política possível nas circunstâncias presentes”. A TINA de Margaret Thatcher, There Is No Alternative, não está muito longe disto. E o presidente caricatura então esta alternativa que, num outro tempo, no entanto, tinha sido das suas preferências: “Esta única política possível proíbe o protecionismo. Para bem me fazer compreender, isto significa que se feche total ou parcialmente, as nossas fronteiras, a todos os produtos, ou a certos produtos, para evitar ser invadido. Eu acredito que o mundo moderno, a redução do planeta e seguidamente a presença da França no mercado comum, exigem que a França jogue o jogo. (…) Eu, eu tenho confiança na produção francesa, e sou contra o protecionismo.

Rigor” obriga, o desemprego iria crescer 25 % num ano. A Frente Nacional ultrapassaria, pela primeira vez, os 10 % na Primavera seguinte. Os primeiros contratos precários ditos TUC – trabalhos de utilidade coletiva – são aprovados em Dezembro de 1984. E para o Natal de 1985, abriram os restaurantes Restos du cœur. “É necessário ser-se cruel – ou “brutal”, conforme as fontes – confia o presidente a um Pierre Mauroy preocupado em moderar a rutura industrial. Estaleiros navais, carvão, aço, automóvel: tudo passa, portanto, “setor a setor”, pela trituradora chamada “reestruturações”. “Os socialistas fazem a limpeza que nós não soubemos fazer”, concederá Alain Juppé – enquanto que Laurent Fabius, em 1986, no final da sua passagem por Matignon, se orgulha de ter efetuado “o trabalho sujo, que não tinha sido feito antes”: “É a esquerda e é a sua coragem e é sua a honra de o ter feito”. Uma vez este destino escolhido, caberia agora avançar por este caminho, do Ato único à Constituição para a Europa, passando pelos tratados de Maastricht, de Amsterdão, de Lisboa. Porque no meio de todas estas traições, continua a estar bem viva uma fidelidade: ao compromisso europeu.”

Repetindo-nos, sublinhemos a posição de Mitterrand I:
A luta de classes não é para mim um objetivo. Procuro que esta deixe de existir!” proclama François Mitterrand que, durante todos os anos de 1970, denunciava “uma luta de classe entre este pequeno grupo de privilegiados e a massa dos assalariados”, entre “o operário especializado, dominado, oprimido, forçado até à revolta” e “os donos do dinheiro, o dinheiro, o dinheiro, os novos senhores, os donos do armamento, os donos dos computadores, os donos dos produtos farmacêuticos, os donos da energia elétrica, os donos do ferro e do aço, os donos dos solos e dos subsolos, os donos do espaço, os donos da informação, os donos das ondas”.

Um dos grandes marcos a assinalar que tudo começa aqui até ao desenlace final em 2017, com a eleição de Macron.

Notas:
[1] G. Davet, F. Lhomme, Un Président ne devrait pas dire ça. Les secrets dun quinquennat, Paris, Stock, 2016, page 29.
[2] Trata-se do texto nº16 desta série, « Superação» ou desaparecimento do partido socialista (2012-2017)? De Rémi Lefebvre.


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