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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A canção como arma de protesto Livro repassa o impacto social da música anglo-saxã de contestação De Billie Holiday a Woody Guthrie, passando por Dylan e The Clash



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Woody Guthrie se apresenta em um bar de Nova York, em 1943, com seu famoso violão onde se lê: “Esta máquina mata fascistas”.
Quando Billie Holiday cantou pela primeira vez Strange Fruit no teatro Apollo, do Harlem, o filho do proprietário do local, Jack Shiffman, disse: “Não havia uma alma no público que não se sentisse estrangulada”. O cantor negro Josh White afirmou: “A música é a minha arma. Quando canto Strange Fruit me sinto tão poderoso como um tanque M-4”. Aquela certamente não era uma canção qualquer. Como descreveu um jornalista do New York Post: “Se a ira dos explorados algum dia chegar a arder no Sul, agora ela já conta com a sua Marselhesa”.

Ao denunciar o linchamento de negros norte-americanos que tinham seus corpos pendurados, Strange Fruit, de 1939, aparece como a primeira canção protesto da história da música popular na lista de 33 Revolutions Per Minute – A History of Protest Songs, from Billie Holiday to Green Day(33 revoluções por minuto – uma história das canções de protesto, de Billie Holiday ao Green Day, inédito no Brasil), monumental livro de quase 900 páginas escrito pelo crítico musical britânico Dorian Lynskey, do jornal The Guardian. “É um começo natural, porque foi quando a canção pop abraçou inteiramente a política”, diz Lynskey por telefone de Londres.
Billie Holiday.

Billie Holiday.
Algo semelhante aconteceu em 1944 com This Land Is Your Land, de Woody Guthrie, que, agarrado ao seu violão com a inscrição “Esta máquina mata fascistas”, dizia que seus olhos eram uma câmera que “tira fotos de todo o mundo”. Com sua máquina, o músico podia alcançar o cidadão comum, em povoados e estradas vicinais, com mais eficiência do que os escritores, por exemplo. Ao escutar Tom Joad, canção de Guthrie inspirada em As Vinhas da Ira, o autor desse romance, o prêmio Nobel de Literatura John Steinbeck, exclamou: “Maldito! Em 17 versos resumiu a história inteira que levei dois anos para escrever”. Mas Steinbeck, admirador do aguerrido bardo, reconheceu seu valioso trabalho: “Canta as canções de um povo e, de certa forma, ele é esse povo”. “Estas canções fizeram colidir tensamente a diversão das casas noturnas e dos palcos com a realidade social mais brutal ou injusta”, observa Lynskey.

EM PORTUGUÊS, NENHUMA; EM ESPANHOL, VÍCTOR JARA

Nem todas as que merecem estão lá, mas todas as que estão merecem. De uma sucinta seleção de 33 canções, naturalmente faltam muitas obras de criadores importantes na história da música popular. Não há, por exemplo, nenhuma canção brasileira, ou mesmo em português. Dorian Lynskey sabe disso e admite que se centrou na canção anglo-saxã, transitando entre Reino Unido e Estados Unidos, mas nem por isso ignorou totalmente o resto do mundo. Três canções de fora desse universo foram incluídas: War In a  Babylon, dos jamaicanos Max Romeo and the Upsetters;Zombie, do nigeriano Fela Kuti e Afrika 70; e Manifiesto, do chileno Víctor Jara. “São composições que tiveram certo impacto no rock e no pop das nossas sociedades”, argumenta.
Desta forma, o único rastro de canção em idiomas neolatinos é do cantor e compositor chileno mais conhecido internacionalmente, que foi assassinado pela ditadura de Pinochet logo após o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973. “Morreu cantando. Foi vítima de uma década desoladora em seu país”, observa o escritor britânico.
No Brasil, as canções de protesto ganharam um importante impulso em meados dos anos de 1960, quando o início da ditadura militar (1964-1985) coincidiu com o surgimento de uma nova geração de músicos —Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Geraldo Vandré, entre outros. Protestaram tanto contra o regime autoritário como contra a sociedade conservadora da época e marcaram a Música Popular Brasileira (MPB).
Na Espanha, a tradição da canção protesto remonta à época da Guerra Civil (1936-39), mas alguns de seus nomes mais conhecidos surgiram nas décadas de 1950 e 60. Entre eles estão Chicho Sánchez Ferlosio, Paco Ibáñez, que musicou poetas espanhóis de todas as épocas, e os bascos Raimon e Mikel Laboa, cantando em seu idioma. Numa geração posterior figuram Lluís Llach, Pi de la Serra, Joan Manuel Serrat, Patxi Andión, Labordeta e Javier Krahe, entre outros.
Dessa tensa colisão, gerada entre o mundo do espetáculo e o dos acontecimentos políticos, sociais e culturais do último século, se nutre esse minucioso levantamento, que se centra em 33 canções, de Strange FruitAmerican Idiot, do Green Day, a composição que serve de pretexto a Lynskey para analisar como eram os Estados Unidos em plena psicose antiterrorista na era George W. Bush e comentar o papel de diversos músicos dessa época. “Minha intenção foi fazer uma espécie de biografia das canções”, diz. De fato, esse é o grande trunfo do livro:
por trás de cada música se descortina toda uma época e um contexto político, social e cultural, fazendo da sua apertadíssima seleção um mal menor, uma vez que prevalece uma leitura apaixonante sobre o poder da música como crônica humana e social, embora seja muito difícil definir o conceito de canção de protesto. “Bob Dylan se encarregava de recordar, pouco antes de tocar Blowin’ in the Wind, que essa não era uma canção protesto, mas é impossível não reconhecer o efeito que ela causou. Interessaram-me aquelas que abrem uma porta pela qual o mundo exterior penetra”, diz.
De Dylan, nome-chave para a canção de protesto, o livro inclui Master of War(1963). Lynskey lhe atribui o mérito simbólico de ter liquidado a tão ativista comunidade folk e dado o salto para a modernidade rock, passando do “nós” para o “eu”. Dylan tinha vontade de enterrar as suas próprias canções protesto, mas, como lhe respondeu o incansável agitador Phil Ochs: “Não pode enterrá-las. São boas demais. E já não lhe pertencem”. Também são parte do patrimônio popular outras músicas analisadas no livro, como Mississippi Goddam, cantada por Nina Simone, que em 1964 entrava no contexto da luta de Malcolm X pelos direitos civis, A Change Is Gonna Come, de Sam Cooke, associada ao discurso menos radical de Martin Luther King Jr, e White Riot, do The Clash, talvez a única banda do punk dotada de certo heroísmo – ou, como dizia Joe Strummer: “Não tínhamos soluções para os problemas do mundo, mas começamos a pensar e nunca nos acomodamos”.
The Clash em uma imagem de arquivo.

The Clash em uma imagem de arquivo.
O The Clash deixou um legado poderoso para outras formações citadas no livro, como U2, R.E.M., Manic Street Preachers e Billy Bragg, um estandarte do ativismo que sempre lutou contra a “retórica vazia” e admitiu que era preciso “passar o bastão ao público, porque só o público pode mudar o mundo, não os cantores”. Seu equivalente norte-americano, ao menos durante bastante tempo, foi Steve Earle, ex-presidiário sem papas na língua, de quem o livro inclui John Walker’s Blues, canção que buscava combater a paranoia patriótica nos EUA após os atentados de 11 de setembro de 2001. “As melhores canções políticas são periscópios que nos permitem ver uma parte da história”, reflete Lynskey. Isso e algo mais, como dizia Billie Holiday quando cantava Strange Fruit, que alguns empresários tentaram proibir, mas que a diva cantava sempre graças a uma cláusula especial: “Eu conseguia distinguir os imbecis no meio do público. Eram aqueles que aplaudiam quando eu terminava de cantá-la".
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