Recandidato da CDU à Câmara de Lisboa, João Ferreira acusa os socialistas de deixarem a cidade à mercê dos interesses imobiliários e mesmo de contribuir para a subida dos preços da habitação. A capital é hoje "mais desigual" e "mais injusta", diz o vereador comunista, que deixa antever que houve conversas exploratórias à esquerda sobre coligações.
Se no dia a seguir às eleições o PS não tiver maioria, o PCP estará disponível para uma solução de governo na câmara de Lisboa?
Apresentámo-nos a estas eleições com o objetivo assumido de disputar todas as responsabilidades, incluindo a presidência da Câmara de Lisboa. A CDU tem por princípio, mesmo nas câmaras em que é maioria, distribuir responsabilidades pela oposição. E também há situações - sempre que considera que tem condições para isso - em que aceita pelouros mesmo não tendo a maioria. Não nos vamos adiantar ao resultado. Estamos empenhados em disputar a presidência, veremos o quadro que resulta das eleições e a seu tempo decidiremos.
Chegou a alguma vez a falar com Fernando Medina sobre coligações pré-eleitorais?
Discutimos em momentos diversos questões relativas ao presente e ao futuro da cidade. Nessa discussão ficou claro que em aspetos essenciais há uma divergência de posições com aquela que é a visão da CDU para a cidade.
Que balanço faz da governação socialista nos últimos quatro anos?
Não é um balanço de quatro anos, estamos a completar dez anos de gestão do PS em Lisboa, é o balanço de uma década. Ao longo da qual Lisboa perdeu gente, perdeu habitação, emprego, perdeu atividades económicas com especial incidência no comércio tradicional, viu degradar-se de forma muito acentuada as condições de mobilidade. Foram anos em que, de uma forma geral, o solo da cidade foi uma fonte de rendas e negócios para alguns, poucos, quando podia e devia ter sido uma fonte de riqueza e de usufruto de todos. Demasiadas vezes, ao longo desta década, interesses particulares prevaleceram sobre o interesse público.
O presidente da Câmara mudou entretanto. Notou diferenças?
Há uma continuidade que é inquestionável e que é assumida, desde logo, pelo atual presidente.
Medina diz que não sabe o que é turismo a mais. O PCP sabe?
Lisboa está a enfrentar agora o que outras cidades europeias já enfrentaram. Seria negativo que não aprendêssemos nada com essas experiências. Há três ou quatro anos, quando o PCP disse que era necessário estudar a evolução das tendências do turismo, um estudo que enquadrasse o desenvolvimento turístico, hoteleiro, a proposta foi desvalorizada. Hoje já são mais aqueles que reconhecem que é necessário estudar este fenómeno e não agir apenas por impulso do mercado. Tem sido isso que a atual maioria tem feito. No essencial tem considerado que enquanto houver promotores que queiram construir e licenciar hotéis a Câmara não tem outra função que não seja licenciar. Nunca procurámos fazer nenhuma espécie de diabolização do turismo, mas entendemos que o tipo de desenvolvimento que o turismo está a ter em Lisboa, se não forem tomadas medidas, pode comportar - já está a comportar - consequências negativas para a vida da cidade. Para a população residente, mas não só. Estamos, de alguma forma, a despir Lisboa de uma matriz identitária que a tornou desejável até para o próprio turismo.
Tem havido inação da Câmara face a este fenómeno?
Tem havido uma opção política de deixar nas mãos do mercado o desenvolvimento da cidade.
O preço da habitação em Lisboa disparou nos últimos anos...
A câmara pode ter um papel importante na contenção dos preços da habitação. Tem tido o papel oposto. Dou um exemplo. A câmara tem um vasto património imobiliário. Se o utilizasse a favor de políticas de habitação a custos controlados, abaixo dos preços de mercado, podia não apenas garantir o direito à habitação a uma parcela importante de população residente, mas também exercer um fator de contenção sobre o mercado. O que aconteceu foi que a câmara prescindiu dessa reserva importantíssima, estratégica, e pelo contrário, alienou esse património. E em condições tais que acabou por alimentar a especulação e a subida dos preços. O programa Reabilita Primeiro, Paga Depois é um exemplo disso: o património municipal é alienado em condições muitíssimo favoráveis para os promotores imobiliários, sem qualquer obrigação de atribuir aos imóveis um fim específico. Em muitos casos não foram para habitação, mas para alojamento local.
O programa de renda acessível é uma resposta?
O programa não arrancou. Das 5000 novas casas para a classe média, nem cinco mil, nem mil, nem uma - não há nenhuma. Houve programas de renda condicionada, mas com uma expressão residual do ponto de vista do que é a procura. Na casa das centenas, quando a procura anda na ordem das dezenas de milhar.
Defende a criação de limitações ao alojamento local?
Defendemos, nesta fase, sobretudo a necessidade de um estudo dos impactos que o fenómeno do alojamento local e de novos hotéis está a ter do ponto de vista das limitações do acesso à habitação. Mas há evidências suficientes, neste momento, que apontam para a necessidade de intervir. Não com uma medida única, isolada, mas de forma integrada, admitindo um conjunto de medidas - muitas delas adotadas já noutras cidades europeias - que podem passar em algumas zonas, sobretudo nas freguesias onde essa pressão já é maior, pelo condicionamento. Por prédio (condicionar o número de frações alocadas a alojamento local) ou por proprietário.
Concorda com o destino que foi dado aos cerca de 15 milhões anuais que resultam da taxa turística?
Não. O PCP opôs-se à criação do fundo e ao facto de ser gerido por uma entidade privada, que o gere de acordo com o elementar critério de qualquer entidade privada, a defesa do interesse próprio. A forma como esse fundo foi instituído é elucidativa de uma visão que tende a privilegiar interesses particulares. Um exemplo que diz muito: o que se arrecadou num ano com a taxa turística é mais de metade do que aquilo que se vai gastar em investimento ao longo de todo o mandato nos bairros municipais.
A que é que atribui essa promoção de interesses imobiliários, de interesses privados? É uma questão ideológica ou outra coisa?
Acho que resulta fundamentalmente de uma opção política e ideológica que atribui ao mercado o papel exclusivo no desenvolvimento da cidade.
Os bairros municipais têm sido descurados?
Manifestamente. A câmara é o maior inquilino da cidade, tem mais de 70 bairros municipais. Muitos estão hoje numa situação deplorável.
Há uma cidade invisível, esquecida, detrás da Lisboa cosmopolita?
Lisboa é a cidade da luz, mas é uma cidade também com muitas sombras, que persistem. Num certo sentido, tornou-se um produto de consumo. Por um lado, de luxo, dos condomínios privados, dos hotéis de luxo que se foram multiplicando. Por outro, de consumo de massas. Nessa medida é uma cidade que se tornou mais desigual, mais injusta. Há maior desigualdade, hoje, na fruição da cidade, é inquestionável.
O PCP é contra a municipalização da Carris. Porquê?
Entendemos que o transporte público deve ser pensado à escala metropolitana, a rede deve ser concebida e gerida tendo em conta uma lógica metropolitana e não municipal. Por outro lado, do nosso ponto de vista é o Estado central que tem a capacidade financeira para gerir uma empresa como a Carris. Estamos a falar de um custo substancial para uma câmara. Os custos de exploração da Carris andam na casa dos 100 milhões de euros, a bilhética assegura cerca de 50% desses custos, a Câmara afetou-lhe este ano 15 milhões. E o resto?
Lisboa precisava de tantas obras?
Não acompanhamos uma certa oposição que tem procurado diabolizar as obras que são feitas em Lisboa, o que aliás demonstra bem o deserto de ideias que têm para a cidade. Aquilo que foi bem feito em Lisboa teve o voto favorável ou, algumas vezes, a iniciativa da CDU.
Por falar em oposição, o CDS aposta forte nestas eleições, lançou a líder do partido como candidata...
Aquilo que o CDS demonstrou ao longo destes anos foi uma confrangedora ausência de ideias ou de visão de cidade. Para além disso, escolheu como candidato alguém com responsabilidades pesadas em muito do que de mais negativo Lisboa apresenta hoje - uma profunda debilitação do comércio tradicional, uma profunda limitação do direito à habitação, que resultam da lei das rendas do governo PSD/CDS e da hoje candidata, na altura ministra.
Assunção Cristas é diretamente responsável por alguns dos maiores problemas da cidade?
Sim. Há a lei das rendas, mas posso acrescentar os largos milhares de famílias lisboetas a quem foi retirado o abono de família, o subsídio de desemprego, o rendimento social de inserção. Devem-no ao PSD e muito em particular ao CDS, que teve responsabilidades nestas áreas.
A campanha vai decorrer num contexto político novo, com um governo do PS apoiado pelo PCP e BE no parlamento. Não corre o risco de ser um bocadinho esquizofrénica?
Não, porque a situação que descreve no plano nacional não está descrita com rigor. Não creio que se possa dizer em algum momento que o PCP apoia o governo. Este é um governo de maioria relativa do PS, com o qual o PCP identificou pontos de convergência, mas também de divergência, muito importantes. Há vários aspetos do que tem sido a ação governativa que do ponto de vista do PCP são criticáveis e dos quais se tem demarcado.
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