por Amato
Escrevo este post porque compreendi que o que escrevi ontem não foi o suficiente para expurgar tudo o que em mim havia para expurgar sobre o assunto. Uma vaia é simplesmente uma vaia, assim como um aperto-de-mão ou um abraço são, simplesmente, um aperto-de-mão e um abraço. Mas cada um destes atos pode conter dentro de si muito mais do que o simples gesto, denunciando as características da personalidade, as arestas de caráter, o mais íntimo ser, do sujeito da ação.
É neste sentido que a vaia do Bloco de Esquerda ao Syriza merece ser novamente objeto de análise e esta deve ser estendida em minúcia.
Como escrevi no oitavo parágrafo do post anterior, o Bloco de Esquerda vivia com uma necessidade premente de se distanciar do Syriza. O Syriza era como que uma pedra no seu sapato que se fazia sentir a cada passo político que o Bloco quisesse dar, que limitava os seus movimentos. O Syriza era aquele derradeiro argumento que se podia jogar na cara do Bloco, fosse qual fosse a discussão que tivesse em cima da mesa, pela simples razão de que o impotente Bloco se sentia incapaz de se distanciar do Syriza.
Porque não era um argumento em nenhuma medida baixo: o Bloco — repito — colou-se ao Syriza de forma tão perfeita quanto possível, participando nos seus congressos, nas suas reuniões, campanhas eleitorais e partilhando com o Syriza exatamente a mesma oratória política. A fina intelectualidade obreira do Syriza era trazida com pompa e aparato às convenções e campanhas eleitorais do Bloco onde era escutada com atenção e cuidado, aplaudida de pé e transportada em ombros.
A realidade, porém, mostrou um Syriza que traiu todas as promessas feitas ao seu povo, em primeiro lugar, mas também à Europa que observava, curiosa, a aurora daquela “nova esquerda” que se anunciava. A realidade destapou um Syriza que se entregou de pés descalços à austeridade europeia/alemã. A realidade fez do Syriza um pigarro permanente na garganta do Bloco, um transtorno argumentativo infindável ou aquela filosofal pedra no sapato de que falava no início.
Para o Bloco de Esquerda a necessidade mantinha-se, portanto. Havia que sacudir a pedra no sapato, havia que passar o pano húmido na ardósia negra e recomeçar de novo ou, pior, prosseguir como se nada tivesse acontecido. O “divórcio” com o Syriza é operado não como um adulto, expressando olhos nos olhos as discordâncias e incompatibilidades em matérias consideradas como fundamentais, mas como um adolescente imaturo, fazendo uma “cena” deprimente.
Convenhamos que convidar uma delegação de um outro partido, ainda por cima estrangeiro, para o seu próprio congresso para brindá-la com uma miscelânea de apupos e assobios é de muito mau gosto, é feio, é baixo. É falta de educação.
Escrevo estas palavras totalmente à vontade. Não me tenho como um opositor político do Bloco de Esquerda e, com esse partido, partilho de uma boa parte daquelas que aparentam ser as suas ideias. Mas não é de política que estamos a falar verdadeiramente: é de organização, é de educação, é de espinha dorsal e de caráter. Do que estamos a falar é de consciência e de consistência política. É com tristeza que reconheço que estes predicados escasseiam no Bloco de Esquerda.
Mas a vaia não nos esclarece somente relativamente a questões formais. É muito mais fácil operar cambalhotas políticas, passando da paixão ao ódio num fugaz ápice, quando se tem pouca segurança no que se acredita, quando o nosso pecúlio ideológico é pouco sólido e pouco consistente. Há que ter alguma segurança e confiança no que acreditamos para sermos capazes de não nos atirarmos de cabeça, cegamente, apaixonadamente, à primeira oportunidade, nem tão pouco para colocarmos tudo em causa à primeira contrariedade. Mas essa sabedoria não está ao alcance de qualquer um e o Bloco de Esquerda produz evidências de que está muito longe de a adquirir. Daí a “cena”, quer dizer, a vaia.
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