Miguel Urbano Rodrigues
Desconhecia o México quando li A Serpente Emplumada*.
A partir de 1970 visitei muitas vezes aquele país. Percorri alguns Estados e adquiri um razoável conhecimento da sua história, sobretudo da pré-colombiana.
Reli agora numa edição francesa A Serpente Emplumada e percebi que a minha compreensão do romance tinha sido, quando jovem, lacunar.
EM BUSCA DO DESCONHECIDO
EM BUSCA DO DESCONHECIDO
Filho de um mineiro, David Herbert Lawrence (1885-1930) cresceu numa família de trabalhadores incultos. Sofreu privações, mas a educação universitária permitiu-lhe superar as fronteiras do meio social que o rodeava.
Ainda adolescente, começou a escrever.
A sua obra desencadeou tempestades emocionais. Alguns dos seus livros foram proibidos por obscenos. Outros levaram a crítica a situá-lo na fronteira da loucura. Mas, cabe perguntar o que deve entender-se por loucura, tão diferentes são as manifestações do comportamento humano quando alguém pelo pensamento e a atitude rompe com aquilo que é considerado respeitável nas sociedades do mundo contemporâneo?
Lawrence sentia-se incompatível com a atmosfera da Inglaterra pós vitoriana. Ao atingir a idade da razão decidiu sair do país natal e a maior parte da sua breve existência foi vivida longe do Reino Unido.
Rejeitava o mundo moderno, industrializado, o materialismo da chamada civilização ocidental, comandada pela divinização do dinheiro.
Na Alemanha apaixonou-se pela baronesa Frieda Rrichtoffen, seis anos mais velha do que ele. Tão tempestuoso foi esse amor que a aristocrata abandonou o marido, os filhos e a fortuna para partilhar com ele uma vida de pobreza.
Atraído pelo exotismo de regiões remotas, desembarcou na Austrália onde rapidamente passou do fascínio ao desencanto e à aversão. Dessa aventura ficou um romance: Canguru.
O Ceilão foi outra breve etapa do seu nomadismo inquieto.
Nos EUA comprou um rancho e tentou transformar-se num agricultor. Mas a permanência no sudoeste despertou o seu interesse pelas culturas dos índios norte-americanos. Foi então que «descobriu» as civilizações pré-colombianas da Mesoamérica. Acumulou uma biblioteca sobre o México antigo que ia da História de Bernal Diaz del Castillo e das Cartas de Relação de Cortez aos mais prestigiados historiadores e sociólogos daquela época. Devorou essa riquíssima bibliografia e decidiu escrever um romance: A Serpente Emplumada.
O FEITIÇO MEXICANO
Lawrence instalou-se na margem do Lago de Chapala, em Jalisco.
O FEITIÇO MEXICANO
Lawrence instalou-se na margem do Lago de Chapala, em Jalisco.
Escrevia num ritmo alucinante, em alguns dias mais de 2.000 palavras.
Chegou numa época de transição. A Revolução, iniciada com a derrota da ditadura de Porfírio Diaz, tentava institucionalizar-se após uma prolongada e devastadora guerra civil.
Quando Lawrence escreveu o seu romance, em 1923, o presidente era o general Álvaro Obregón (assassinado anos depois), No livro aparece, desfigurado, como general Montes.
Lawrence, que não tinha uma formação politica minimamente estruturada, não entendeu a revolução e o seu significado. Surge na Serpente Emplumada, como um terremoto social negativo. O seu discurso político apresenta matizes de anarquismo intelectual.
Algumas das personagens secundárias falam e agem como seres irreais. Os mexicanos, os europeus, os índios, os brancos e os mestiços.
Três personagens principais atravessam o romance: a irlandesa Kate, Don Ramon e Don Cipriano.
Kate é uma irlandesa de 40 anos, bela, sensual, insegura, neurótica.
O escritor transmite-lhe algo da sua mundividência. Ela, como ele, acredita que é indispensável uma harmonia entre o sexo e o pensamento, um equilíbrio entre o corpo e a mente.
Kate chegou como turista, mas alugou uma casa em Sayula (a cidade onde nasceu o escritor Juan Rulfo) e decidiu ficar ali por tempo indeterminado. O México perturba-a. Sente-se fustigada por emoções opostas de repulsa, ternura, desprezo e encantamento. Acha os índios mexicanos muito belos.
Mas Kate, como Lawrence, é racista, considera os índios seres inferiores.
Don Ramon deslumbra-a. Na primeira parte do romance, o escritor esboça dele o retrato de um intelectual refinado, arqueólogo eminente, respeitado pelos europeus.
Mas rapidamente o intelectual sofisticado transfigura-se. Funda uma religião que retoma os antigos deuses do panteão tolteca e azteca. Ele próprio se assume como Quetzalcoatl, o deus mítico que voara para Oriente, anunciando que voltaria um dia. A opção religiosa leva-o a um choque frontal com os católicos cujas igrejas ocupa, transformando-as em templos de Quetzalcoatl.
O romance perde qualidade nos diálogos com Kate, no pormenor dos rituais religiosos, na repetição de hinos, proclamações e apelos dirigidos à legião de fiéis de Quetzalcoatl.
Páginas de grande beleza literária – Lawrence é um maravilhoso artista a trabalhar a língua de Shakespeare – alternam com outras de péssimo gosto. O relato da luta de Ramon e Kate com pistoleiros de organizações criminosas que pretendiam assassiná-lo é folhetinesco, lembra cenas de westerns intragáveis. Os diálogos de Ramon com Carlota, a mulher, e os filhos são também inconvincentes, toscos, artificiais, de uma mediocridade confrangedora.
Cipriano, o general Viedma, é um militar enigmático, índio educado em Oxford que regressou ao México sem que as suas raízes indígenas fossem afetadas pela cultura europeia. Ao conhecer Kate à saída de uma corrida de touros que a enojara, nasceu nele um atracão pela bela irlandesa que iria aprofundar-se, marcando o rumo da vida de ambos. Casaram, mas o casamento durante muito tempo não foi consumado. A motivação do distanciamento sexual é abordada em páginas belas sobre a evolução da complexa sexualidade de Kate.
Cipriano, admirador fervoroso e complemento de Ramon, já então se assumia como Hutzilopochotli, o sanguinário deus da guerra azteca, o outro pilar da nova religião. É difícil o acompanhamento e a compreensão dos capítulos em que Ramon e Cipriano justificam o seu combate pela transformação do México e da Humanidade através do culto aos deuses redivivos que eles pretendem encarnar.
Kate é por eles guindada a deusa, Malintzi, e aceita, embora perplexa e angustiada. Assiste passivamente à matança de prisioneiros quando Cipriano, imitando Hutzilopochtli, apunhala inimigos de don Ramon.
O final do romance, a resvalar para o melodrama, não surpreende.
Kate fica no México e Cipriano diz-lhe que a ama muito, muito.
OBRA PRIMA? NÃO
OBRA PRIMA? NÃO
Quando o romance, reescrito várias vezes, foi publicado em Inglaterra em 1926 as reações da crítica e dos leitores foram contraditórias.
Para uns é uma obra-prima, um livro tão importante como o Amante de Lady Chaterley. Para outros um desafio fracassado, medíocre como obra literária.
Na Serpente Emplumada há uma frequente contiguidade da grande literatura com o artesanato literário.
No México, os intelectuais criticaram com severidade os erros históricos do livro. Trata-se de uma obra de ficção. Mas Lawrence foi longe demais na complementaridade Quetzalcoatl-Huitzilopochtli. O primeiro emerge na cosmogonia asteca como um deus humanista, incompatível com a violência; o segundo exigia os corações e o sangue das vítimas sacrificadas no seu altar do templo maior de Tenochtitlan. Hernan Cortez viu nele um «ídolo diabólico»; Estropiando-lhe o nome, chama-lhe Huichilobos. Nada aproxima os dois deuses; tudo os distância.
A atribuição da divindade a Malintzi, também choca, por absurda.
Malintzi não foi uma deusa. Assim se chamava em nahuatl um vulcão extinto, mas os espanhóis deram esse nome a Dona Marina, a princesa azteca que foi tradutora e amante de Cortez.
Lawrence escreveu a Serpente Emplumada para o público europeu e norte-americano, ambos totalmente desconhecedores da história do México pré-colombiano e dos seus deuses. Certamente estava consciente da deturpação dessa História que aliás não transcendia os meios académicos.
Mas o seu romance contribuiu para que muitos milhares de pessoas em muitos países (A Serpente Emplumada foi traduzido em dezenas de línguas) se interessassem pelo México, pelo seu povo e cultura.
Esse é talvez o mérito maior de um romance que desencadeou intermináveis polémicas, como outros do grande escritor.
No regresso à Europa, Lawrence escreveu O Amante de Lady Chaterley (1928). O livro pôs em estado de choque a Inglaterra conservadora. A aristocracia e a gentry reagiram com indignação e a pequena burguesia, hipócrita e puritana, condenou o adultério de uma grande senhora que trocou o marido impotente pelo seu guarda caça.
Lawrence, cuja tuberculose se tinha agravado, morreu em Vence, no sul da França, em 1930, rodeado pelo carinho de dois grandes amigos que o admiravam, os escritores H.G.Wells e Aldous Huxley.
Os seus pulmões arruinados não lhe permitiram concretizar uma velha aspiração: escrever um livro sobre o povo inuit que vive nas solidões árticas da Groenlândia.
* D.H.Lawrence, Le Serpent à Plumes,1961, 502 pg, Paris
Vila Nova de Gaia, maio de 2016
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