Salazar ficou internado no quarto nº 68, protegido por uma brigada da PIDE, enquanto o Governo decretou censura total. Quando entrou em coma, o hospital comprou um ventilador sueco, bem como uma cama especial. Clique para aceder ao dossiê Salazar morreu há 40 anos
Oliveira Salazar foi internado no dia 6 de Setembro de 1968 no Hospital da Cruz Vermelha, onde foi submetido de urgência a uma intervenção cirúrgica. A governanta de Salazar, D. Maria de Jesus Freire, manifestou o desejo que fosse no Hospital de Jesus, em Lisboa. A opção dos médicos, ditada sobretudo pelo chefe da equipa de cirurgia, Vasconcelos Marques, recaiu sobre a Cruz Vermelha. Este era, na altura, "talvez o hospital mais bem apetrechado e onde Vasconcelos Marques operava habitualmente a sua clínica particular" - explicou numa entrevista ao Expresso Maria Cristina Câmara, que fazia parte da equipa, como anestesista.
SEIS QUARTOS RESERVADOS, NO 6º PISO DO HOSPITAL
A 9 de Setembro - dois dias após a cirurgia -, o diretor clínico do hospital, Luís Lopes da Costa, fez saber por escrito que "a ala direita do 6º piso (até ao quarto 75) não deverá ser ocupada, até nova ordem". Ao todo, seis quartos.
Salazar ficou internado no quarto nº 68; os outros foram adstritos a Vasconcelos Marques, Cristina da Câmara, pessoal de enfermagem, outros clínicos - sem esquecer uma brigada da PIDE, encarregue da segurança ao presidente do Conselho.
CENSURA TOTAL À IMPRENSA
Desde o internamento do seu chefe que o Governo decretou a censura absoluta. No dizer do biógrafo de Salazar, Franco Nogueira, o subsecretário de Estado da presidência do Conselho, Paulo Rodrigues, deu "ordem aos serviços de censura para cortarem qualquer notícia sobre a saúde do presidente do Conselho".
O blackout viria a ser levantado parcialmente, com a divulgação de um primeiro boletim médico, distribuído aos órgãos de informação no dia da própria operação, 7 de Setembro. O presidente do Conselho "foi operado esta noite de um hematoma, sob anestesia local, encontrando-se bem", ouviu-se, logo às nove horas da manhã, no noticiário da Emissora nacional, pela voz do locutor Pedro Moutinho.
Segundo Franco Nogueira, o texto original do boletim sofreu duas alterações. A pedido do Presidente da República, Américo Tomás, os médicos haviam escrito "esta madrugada", o que foi emendado para "esta noite". Já por solicitação do subsecretário de Estado Paulo Rodrigues, quando se falava do "hematoma intracraniano", foi suprimida a segunda palavra.
"ESTOU MUITO AFLITO. AI, MEU JESUS!"
Os boletins saíram diariamente. Secos, lacónicos, mas sempre com um pontinha de otimismo, justificada pelas sensíveis melhoras detetadas no doente. A 15 de Setembro foi emitido o que prometia ser "o último boletim médico". A razão era simples: "O sr. presidente do Conselho entrou em franca convalescença e regressará brevemente à sua residência de Lisboa".
No dia seguinte, porém, o quadro alterou-se radicalmente. Franco Nogueira escreve que, findo o almoço, Salazar "sente um golpe de dor na cabeça, leva a mão direita à testa, diz: 'Estou muito aflito. Ai, meu Jesus!' E abandona-se sem sentidos na poltrona". Recorda o médico Eduardo Coelho, nas suas memórias, que "quando se desencadeou o violento acidente vascular cerebral com hemorragia no hemisfério direito, o doente entrou imediatamente em coma".
O quadro clínico não deixava margem para dúvidas. Ouvido o Conselho de Estado, o Presidente da República, Américo Tomás, tomou a decisão mais difícil da sua vida: a exoneração de António de Oliveira Salazar. Para o cargo, nomeou Marcello Catano, que tomou posse como presidente do Conselho a 27 de Setembro de 1968.
Em sério risco de vida, Salazar foi então entregue aos cuidados da médica Cristina Câmara. A anestesista durante a operação era agora a sua intensivista, responsável pelo difícil e problemático trabalho de reanimação. "Criei, na prática, uma Unidade de Cuidados Intensivos no quarto do dr. Salazar", contou Cristina Câmara.
UM VENTILADOR PARA O DOENTE DO QUARTO Nº 68
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O Processo Clínico de Salazar no Hospital da Cruz Vermelha conserva os principais documentos relativos à cirurgia e doença
NUNO BOTELHO
Sem possuir um ventilador para poder dar assistência ao doente do quarto nº 68, o Hospital da Cruz Vermelha tratou de adquirir um, junto da empresa Alves & CA. (Irmãos), Lda.. A escolha recaiu sobre um ventilador de fabrico sueco, Engström, modelo 200.
Após mais de 31 mil horas de trabalho, o aparelho, já não está em uso e encontra-se num armazém do hospital. A última revisão, feita pela Iberdata, foi efetuada em 1998.
O registo de entrada do ventilador no hospital é de 1 de janeiro de 1970. É uma data fictícia: por essa altura, ventilador já acudira a Salazar e a outros doentes, além de que 1 de Janeiro é dia feriado.
Miguel Brandão Alves, o atual gerente da Alves & CA. (Irmãos), Lda., confirma que foi a empresa, então administrada pelo pai e avô, que forneceu o ventilador. "E também uma cama especial. O meu avô foi buscá-la no seu próprio carro, a Espanha ou a França, munido de um documento especial, para evitar complicações na fronteira".
47 MIL EUROS, PAGOS PELO MINISTÉRIO DA ECONOMIA
Na Alves & CA. não foi possível saber o custo quer do ventilador, quer da cama.
Numa "Conta de despesas" do Hospital da Cruz Vermelha, que faz parte do processo clínico de Salazar, há a indicação de um gasto efetuado com a Alves & CA. (Irmãos), Lda., no montante de 170 mil escudos - ou seja, cerca de 47 mil euros.
Tal como aconteceu na fase inicial do internamento, esta despesa esteve a cargo do Ministério da Economia - que viria mais tarde a ser ressarcido mediante um subsídio especial do Secretariado-Geral da Defesa Nacional, um departamento dependente do ministro da Defesa e que acabou por pagar o grosso das despesas de saúde de Salazar.
SEMIPARALISADO DO LADO ESQUERDO
O processo clínico conserva exemplares de quase todos os boletins médicos, desde 18 de Setembro a 6 de Novembro. Os documentos iam dando conta das flutuações do estado de saúde do fundador do Estado Novo. A de 24 de Outubro, por exemplo, os médicos Eduardo Coelho, Vasconcelos Marques, Almeida Lima e Miranda Rodrigues garantiam: "Acentuaram-se as melhoras do presidente Salazar, que já não está em coma". A 1 de Novembro, contudo, houve uma marcha-atrás: "Agravou-se o estado do Presidente Salazar (...) A respiração voltou a ser assistida permanentemente".
O boletim mais extenso foi o de 4 de Novembro, sete semanas volvidos sobre o AVC, e que era taxativo sobre o real estado de Salazar: "O período já decorrido após o acidente vascular, sem recuperação apreciável, não permite prever quaisquer melhoras das lesões do sistema nervoso". Semiparalisado do lado esquerdo, Salazar é o que na linguagem médica se designa de um "grande inválido".
ALTA DADA A 15 DE DEZEMBRO
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O chefe da equipa de cirurgia, António Vasconcelos Marques (à esquerda), e o Presidente da República, Américo Tomás
GESCO
A 15 de Dezembro, Vasconcellos Marques, o chefe da equipa de cirurgia, comunicou por escrito à direção clínica do hospital que Salazar poderia ter alta ainda naquela semana.
Fê-lo em nome do Presidente da República, Américo Tomás: "Por decisão de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, e de acordo com os Médicos assistentes, o Senhor Presidente Salazar deverá ter alta dessa Clínica e regressar à residência de S. Bento ainda durante esta semana. Igualmente por decisão de Sua Excelência, o serviço de Enfermagem a prestar" a Salazar na sua residência deverá continuar a cargo "do mesmo grupo de enfermeiras", devendo o hospital fornecer "todo o material necessário".
MÉDICOS CORTAM RELAÇÕES
Entretanto, as relações entre o cirurgião e o médico pessoal de Salazar azedaram - a um ponto que dariam lugar, já depois do 25 de Abril, a um muito controverso processo judicial. Vasconcelos Marques decidiu mesmo afastar-se do caso. A 19 de Dezembro, comunicou à direção do hospital que "dá por terminada a assistência clínica" que vinha prestando ao ex-Presidente do Conselho desde 6 de Setembro. "Em consequência de factos ocorridos e por motivos que pessoalmente expus a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, fui autorizado, a meu pedido e desde esta data, a dar por terminada a assistência clínica" a Salazar. Assim sendo, Marques declarou-se "desligado de qualquer responsabilidade".
O chefe da equipa de cirurgia foi acompanhado, nesta atitude, pelos seus colaboradores, que "resolveram também e desde hoje cessar a Assistência que vinham prestando ao Presidente Salazar, atitude que é do conhecimento do Senhor Presidente da República com a qual concordou e deu a sua autorização".
Apesar da alta ter sido dada a 15 de Dezembro, Oliveira Salazar só deixou o hospital a 5 de fevereiro de 1969. Viria a falecer em S. Bento, a 27 de Julho de 1970, com 81 anos.
expresso.sapo.pt
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