Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.
Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.
Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.
Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.
Como se desenha uma casa, Manuel António Pina, Assírio e Alvim,
«Casa» é uma das palavras que mais me agradam pelo seu significado simbólico de refúgio, proteção, liberdade de ser e estar, relações familiares e afetivas e ainda pelo facto de nela estarem arquivadas as memórias da infância, entre as quais as peripécias associadas à transição de um mundo fechado (a minha casa) para uma realidade exterior (a sociedade, a casa dos outros). Mas «casa» é também símbolo da realidade interior de cada um, o espaço mental no qual se vai construindo o nosso ser.
Como «nada surge com a sua própria forma», a criação artística depende da visão do mundo arquivada na mente do seu criador e esta enraiza-se nas emoções e sentimentos que o seu percurso de vida fizeram nascer e às quais o artista dará «forma» materializando o «nada» dessa realidade imaterial num poema, num desenho, numa pintura.
O poema «Como se desenha uma casa» sugere a importância do espaço «casa», seja físico, mental ou ambos como o espaço onde a vida começou, mas também sugere que a representação simbólica dessa «casa» deverá obedecer a certas instruções, talvez devido ao facto de se tratar da representação de algo com elevado valor afetivo e que, por isso, traz até à luz da consciência emoções heterogéneas, umas boas e capazes de estabelecer uma ponte com o passado, outras más e com potencial destrutivo.
Talvez o primeiro passo para se aceder ao nosso ser mais genuíno e dar «forma» através da arte a essa verdade mais profunda que guardamos dentro de nós consista em abrir a porta da memória, espaço mental onde as vivências de cada um estão arquivadas. A «tela», palavra cuja origem etimológica é a mesma de «texto», será o recipiente em que vão derramar-se essas recordações já que dar «forma» a algo acontece num espaço, tela ou folha de papel, no qual o «nada» se materializa e ganha visibilidade.
Antes de «se desenhar uma casa», a tela é apenas um espaço vazio à espera de um preenchimento que justifique a sua existência e por isso é «imatura»
As «palavras antigas» precedem o «desenho» da casa para ajudar à evocação do passado (infantil?) no qual o cão, o jardim e a mãe (a alma da casa que é um espaço tradicionalmente feminino). Estas são «palavras antigas» na medida em que têm o mesmo tempo de existência daquele que as relembra, saudoso ou não, no presente; o referente de cada uma delas ficou nesse passado e a única via para lhe aceder é a memória; o cão, o jardim e a mãe valem pelas emoções que suscitam
Na segunda quadra há um contraste entre escuridão e luminosidade; a escuridão sugerida por «anoiteceu» e «apagamos a luz» acentua a luminosidade das «flores da macieira no quintal» que ganham vida graças à memória, tal como «a foto que se guarda na carteira» tem a função de manter viva a imagem do retratado. Se o pensamento racional passa para segundo plano, as recordações arquivadas no subconsciente ocupam a «tela» da consciência e perturbam o presente com ecos de sofrimentos antigos e histórias de sonhos que ficaram por concretizar; o poeta, consciente de que as emoções precisam de ser racionalizadas para que a obra nasça, aconselha o artista que quer «desenhar uma casa» a defender-se dessas memórias que, por terem ficado sem o controlo da razão nos confins da memória, conservam uma carga emocional negativa que se foi adensando no decurso do tempo e desencadeiam um sentimentalismo exagerado; assim, «as lágrimas» serão pintadas de rosa, a cor do coração, da vida, perfeição e renascimento e com azul, a cor do infinito e do vazio, «os sonhos desfeitos». Ficarão tons quentes e frios a recriar vestígios de momentos passados perturbadores e que deste modo são transformadas em objeto artístico.
«Uma casa é as ruínas de uma casa», adverte o poeta-professor de desenho, na última quadra, e «uma coisa ameaçadora» tal como a linguagem do inconsciente; o ser humano é controlado por um labirinto de emoções que o acompanham desde o passado e é preciso contorná-lo e domesticá-lo para que a criação artística tenha sentido e seja comunicativa; por isso esta «casa» será desenhada «com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso».
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