Manuel Cruz
Ai que naquele tempo é que era bom. Fome com fartura, barracas em vez de casas, ranho e pés descalços. Ai que naquele tempo é que era bom. Pobretes e alegretes e a política era o trabalho, de sol a sol, de criança a velho. Férias fora de casa eram um luxo e, praia, talvez uma vez por ano, à Cruz Quebrada, quebrada pelo mau cheiro do Jamor e as fezes a boiar no mar. Ai que naquele tempo é que era bom. O reviralho andava escondido, não tinha a nefasta liberdade de que se goza agora, eram presos, torturados, mortos. Ai que naquele tempo é que era bom. Reinava a calma por todo o País. Comíamos e calávamos. Davamos a outra face, como bons cristãos. Não perdíamos a missa de domingo, procissões, catequese, comunhões, crismas, celebrações eucarísticas. Ai que naquele tempo é que era bom. O único canal de televisão não passava as indecências que agora se vêem por aí. As prostitutas eram discretas, os homossexuais inexistentes neste país de marialvas e de bons chefes-de-família. Ai que naquele tempo é que era bom. Pedíamos na Junta atestados de pobreza para sobreviver. Vivíamos da caridade das madamas dos chás-canasta e dos saraus de beneficência. Éramos calhaus sem vontade nem voz, moiros de trabalho, carne para canhão em guerras que não eram nossas. Eram tão bons aqueles tempos de pão e azeitonas, carne nem vê-la, bacalhau a pataco em dia de festa, copos de três para enganar o estômago e a vida. Tão bons que eram.
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