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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O MEU VELÓRIO




O Meu Velório
Hoje é o dia do meu funeral. Três pessoas vieram. Eu olho do caixão estonteado e não acredito no que vejo. Porquê estes três no meu funeral? Falam como se eu não estivesse ali mesmo, deitado no caixão. Um deles veste fato inteiro, um velho fato. Parece que gostava muito do meu cão. De mim nem tanto. Mas veio. “Achei que devia vir. Sempre o vi por aqui a passear com o cão. Nunca me fez mal. Quando disseram que não estava ninguém, decidi vir, mais para marcar presença”.
O outro um pescador a quem eu uma vez, tinha comprado um peixe e que me tinha enganado :“Estou arrependido de o ter enganado e por isso vim. Ficava com um peso se não viesse”.
O terceiro não falou. Ouve os dois. Não se justifica. Está lá porque deve ir a todos os funerais e “lá me calhou mais este”. As pontas dos meus pés enfiadas nuns sapatos muito apertados, parecem crescer dentro do meu caixão.
Quando no cerco morreu um pedreiro a fazer amor, o seu sexo ficou espetado apontando para os céus como um aviso aos Deuses. A mim, são os pés que se esticam, incapazes de se encerrarem naqueles sapatos.
A conversa continua para encher o espaço e o tempo. Agora falam de futebol. Que temos bons jogadores mas que ganham demais. Eu acho que é um exagero. Outro diz que merecem. Sobre esta questão empanturram-se de verbos. Há mesmo uma espécie de debate entre os três. Uma conversa inacabada como as capelas de Aljubarrota. Faltam os argumentos. Constroem-se pausas. Há um imenso silêncio nestas discussões.
Do meu caixão filtro as palavras em busca de algo sólido, seguro. Parece-me tudo apenas um imenso vazio. Agora, um deles parece ter arranjado um tema sério.:“Sabe que ele não era católico?” Não – diz o outro – ele estava sempre contra os padres”. “Por isso ninguém vem ao funeral. Mesmo ninguém. Ele sempre foi contra a Igreja”. “Eu parece-me que ele era contra tudo”- diz outro.
O terceiro, o que não fala, avança finalmente um esclarecimento : “Ele era um tonto. Era o que era”. Fico a pensar porque raio me haveriam de calhar estes três Senhores numa ocasião destas. Agora um decidiu pesquisar os meus sapatos. “Os sapatos ainda estão novos, ainda davam jeito a um pobre. E agora não lhe vão servir nada”.
Ficam ali a olhar os sapatos como se já não me pertencessem. Como se fosse pecado irem para a cova assim. Começo a entender porque vieram estes três ao meu velório. Um deles decidiu lembrar-se de algo positivo que eu tinha feito. Faz um verdadeiro esforço de memória. De dentro do caixão observo o exercício com uma certa admiração e até com respeito. Finalmente um que parece solidário. Que quer encontrar algo que eu tenha feito de positivo, para ficar na memória dos três homens. Desiste depressa. Não encontra nada com um suspiro de satisfação. É como se aquele exercício fosse muito cansativo, mesmo um pouco inadequado. “Não me lembro de nada que o homem tenha feito. Nada de especial”.
Fico a duvidar se merecerei os sete palmos de terra que me destinam, ou a madeira onde me encaixotaram. Realmente não encontram mesmo nada.!? O que tinha achado que os meus sapatos seriam bons para um pobre começou lentamente a sacar os ditos dos meus pés. Ficam à luz do dia as meias rasgadas pelo meu cão.
Oiço-o de repente a uivar. Como um choro. Da casa onde repousam os mortos a minha casa não é grande a distância e eu consigo ouvi-lo claramente. É um uivo triste e longo, com um som quase metálico, um apelo que vem mesmo de dentro, como se o meu cão chorasse. Lindo cão, meu querido. Adeus meu irmão !!!

“Tonto Conto “-130 dedicado aos meus antigos colegas do Liceu Sá da Bandeira .

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