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domingo, 29 de outubro de 2017

OS ESCRITORES COMUNISTAS E A REVOLUÇÃO DO 25 DE ABRIL 1


Communist writers and the 25th April revolution
João Madeira2

RESUMO: As novas condições históricas abertas com o derrube da ditadura em Portugal a 25 de abril de 1974 e o processo revolucionário que se lhe seguiu abriram no interior do Partido Comunista Português um interessante e insolúvel debate sobre arte, criação artística e modelo estético partidário.

PALAVRAS-CHAVE: Neo-realismo, comunismo, revolução, expressionismo, experimentalismo

ABSTRACT: The new historical conditions made possible by the overthrow of the dictatorship in Portugal on the 25th April 1974 and the revolutionary process that followed allowed an interesting and unsolvable debate about art, artistic creation and aesthetic model partisan within the Portuguese Communist Party

KEYWORDS: Neorealism, communism, revolution, expressionism.

Nos últimos anos da ditadura, na sua agonia, vivia-se um acentuado processo de politização e de radicalização não só nos meios estudantis, na universidade e mesmo nos liceus, mas também entre um proletariado jovem das cinturas industriais e em camadas da pequena burguesia dos serviços, fenómeno bem patente em Lisboa, uma cidade cada vez mais macrocéfala, num país esvaído pela guerra colonial e pela emigração.

O aproveitamento da campanha eleitoral de 1973, as lutas estudantis, as movimentações sindicais pela contratação colectiva, a vaga de greves nos últimos meses antes do 25 de Abril reflectem essa realidade, operada entre as brechas de um regime que se decompunha.


No entanto, a criação literária, ao contrário de outras expressões artísticas, como a música de protesto, por exemplo, não vinha acompanhando ao mesmo ritmo essa desagregação. A velha cultura de resistência a que o movimento neo-realista em boa parte dera forma e conteúdo, há muito estiolara, confrontado com um país que desde os anos cinquenta vinha, na sua configuração económica e social, mudando lentamente, apesar dos enormes espartilhos que o regime lhe impunha.

Óscar Lopes, linguista, crítico e ensaísta literário, numa entrevista à revista Vida Mundial a dois meses do 25 de Abril, refere-o explicitamente:
(…) é provável que se venha a desenvolver novamente um interesse pelas camadas populares da grande urbe, que é agora a zona de Lisboa, o que me parece será propiciado por uma situação nova, porque em 1940, o neo-realismo voltado para o proletariado fabril era muito voluntarista e isso reconhece-se pela sua própria falência estética (LOPES, 1974, p. 18).
Não que nos anos imediatamente anteriores ao 25 de Abril não se tivesse publicado nada. Poetas como António Ramos Rosa, Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão ou escritores como Vergílio Ferreira, Baptista-Bastos, Jorge de Sena editavam os seus livros, mas não se erguia pujante nenhum movimento literário ou artístico que reflectisse o desconforto político e social face ao regime e acompanhasse num plano crítico a sua desagregação. Polemizavam, é certo, os velhos neo-realistas e os seus herdeiros com as novas correntes estéticas que despontavam, mas sem o fulgor comparável ao das querelas de finais dos anos trinta que os opunham aos modernistas ou que, nos anos cinquenta, os opunham entre si.

Porém, os termos dessas polémicas e dessas querelas não se afastavam significativamente dessas outras, anteriores, numa espécie de cristalização argumentativa que revelava afinal as enormes dificuldades de olhar e de incorporar as mudanças de um mundo “mudado”.

No início dos anos 60, em 1963, a polémica entre Alexandre Pinheiro Torres e Vergílio Ferreira nas páginas do Jornal das Letras e das Artes dá nota dessa situação. Pinheiro Torres fizera a recensão crítica a “Rumor Branco”, de Almeida Faria, visando também, ou sobretudo, Vergílio Ferreira que o prefaciara e que recentemente publicara Aparição.

Pinheiro Torres, afirmando-se como neo-realista, toma Vergílio Ferreira e Almeida Faria, como mestre e discípulo de uma narrativa filosofante, influenciada pelo “nouveau roman” francês e pelo existencialismo, oca de conteúdo, desligada da realidade e produzida em
velhas torres de marfim. Acutilante e agressivo Pinheiro Torres invoca a responsabilidade social do escritor para fundamentar o seu combate à tendência em que, em boa medida, o existencialismo se integra:os neo-romantismos, os irracionalismos, os idealismos, as metafísicas desbragadas que para aí campeiam; os quais constituem PROCESSOS MISTIFICATÓRIOS DE ALIENAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL, PROCESSOS DE O ESCRITOR FUGIR À RESPONSABILIDADE QUE TEM PARA COM A SUA ÉPOCA” (TORRES, 1963 apud GEORGE, 2002, p. 105).
Na tradição de final dos anos 30 e dos anos 40, o que restava da crítica neo-realista, aceradamente polémica, onde pontuava Alexandre Pinheiro Torres, continuava a anatematizar implacavelmente aqueles que, como no caso, iam abertamente divergindo do seu ideário ou mesmo os que dele iniciavam discretos processos de afastamento.
Todavia, “Rumor Branco” saindo a lume em 1962, ano da grande crise académica, suscitara a adesão quase geracional de uma vanguarda estudantil que rompia, pelo lado libertário da contestação, com a rigidez dos processos de luta até aí muito hegemonizados pelo Partido Comunista que, de um ponto de vista cultural, se continuava a escorar na cartilha neo-realista.
Isso traduzia-se num novo modo de estar na universidade, um modo mais integrado na vida escolar, nas actividades associativas e culturais. Tratava-se de uma geração, cuja maturação política e ideológica se faz numa abertura incomparavelmente maior a outras referências culturais e do pensamento contemporâneo e que penetra inclusivamente a própria base estudantil do PCP, beneficiando-se aliás dos tímidos ventos de desestalinização verificados na União Soviética.
Estes impactos não são indiferentes mesmo no seio daqueles que se continuavam a reclamar do neo-realismo. O próprio Alves Redol, em 1965, num texto publicado na Vértice, afirma:
Um amigo, no outro dia, chamou-me engenheiro; julguei que era piada ao cimento. Nada disso, explicou-me com empáfia: um escritor pode ser um engenheiro de almas. A comparação nobilita, mas julgo não caber nos limites do meu trabalho (REDOL, 1965, p. 178).
Todavia, sem nunca renegar o seu papel e a sua responsabilidade na luta antifascista.

Essa responsabilidade cívica é aliás igualmente muito vincada noutros escritores, mesmo da impropriamente chamada segunda geração neo-realista, como Augusto Abelaira, José Cardoso Pires ou Urbano Tavares Rodrigues, onde se reflectem já outras correntes de pensamento, como o existencialismo por exemplo, constituindo essa responsabilidade o vínculo porventura maior ao legado neo-realista, que, apesar de tudo, continua, ao longo dos anos 60 a ser a única corrente literária a espelhar a questão social. Estes escritores, estão aliás politicamente comprometidos com as oposições ao regime, ou seja, sensíveis à sua responsabilidade social enquanto escritores, mas já na margem do neo-realismo e sem experimentarem à luz desses cânones a plena identificação com o proletariado, numa lógica centrífuga em relação à doutrina marxista-leninista.
Na já referida entrevista de Óscar Lopes à Vida Mundial, este, a propósito afirma isso mesmo para quem o queira entender:
Hoje é a pequena burguesia que é a base social da literatura que se escreve, ou donde se recrutam os escritores duma maneira geral, que neste momento está desinteressada dessas outras camadas sociais e se encontra debruçada sobre os seus próprios problemas (LOPES, 1974, p. 18).
Mas ressalva, no entanto e em particular o caso de Urbano Tavares Rodrigues como um “pequeno burguês intelectual que no seu nível de ficção (…) procura transcender as suas próprias condições de classe, sabendo perfeitamente que elas são limitações” (LOPES, 1974, p. 21), o que, do ponto de vista da própria evolução ideológica deste, coincide com a sua deslocação da órbita do grupo social-democrata de Mário Soares em direcção ao Partido Comunista, a que adere em 1969.

Em relação a Eduardo Prado Coelho, mais jovem, Óscar Lopes sublinha a importância “excepcional” da sua contribuição no quadro da crítica literária muito ligada ao estruturalismo francês, bebendo na psicanálise e no pensamento de Jacques Lacan, o que se deve sobretudo à qualidade do seu trabalho, já que, por outro lado, se preocupa em vincar os aspectos em que dele diverge e que são, afinal, os pressupostos do neo-realismo, mesmo que lidos de forma crítica, mas sempre a partir do seu interior.
Ou seja, mesmo considerando os impasses verificados no domínio da criação literária, o campo do PCP continuava vivo e influente particularmente no terreno da crítica literária. São exemplos disso, a laboriosa e persistente presença de Óscar Lopes em O Comércio do Porto e a colaboração na Seara Nova de ensaístas como Alberto Ferreira ou Augusto Costa Dias.

A ruptura operada pelo 25 de Abril e, principalmente, a imediata adesão popular ao movimento que derrubava a ditadura chamavam à rua também escritores, artistas e intelectuais. Se entre o dia 25 de abril e o primeiro de maio decorre uma semana de espanto, despontam desde logo iniciativas plenas de significado. A 29, meia centena de profissionais do cinema organizados como Comissão de Profissionais de Cinema Anti-fascistas ocupam a Direcção-Geral de Espectáculos, reclamando o fim da censura e a criação de um sindicato livre. Arrolado o interior daquele organismo e entregues as chaves à Junta de Salvação Nacional, a primeira estrutura de poder emanada do golpe militar, passam a ocupar a Cinemateca Nacional e, depois, o Instituto Português de Cinema, como noticia o jornal A Capital, logo em 29 de abril de 1974.
E, no campo literário, o 25 de Abril desperta uma espécie de remoçamento do neo-realismo; primeiro, porque protagonizado por uma geração de resistentes, já acima dos cinquenta anos, que haviam vivido todo o processo de emergência, euforia e ressaca dessa corrente literária e estética, vivenciada entre finais dos anos trinta e início dos anos setenta e, depois, porque se encontravam numa conjuntura nova que se abria, prenhe de entusiasmos e de expectativas.
Não surpreende, por isso, que logo no primeiro de maio de 1974, a Associação Portuguesa de Escritores se fizesse representar com uma faixa onde significativamente se proclamava que “Escrever é lutar” ou que, em junho desse ano, num programa televisivo com a mesma designação, Joaquim Namorado, poeta do Novo Cancioneiro que, em 1941-42 havia sido expressão pujante dos então jovens poetas neo-realistas, afirmasse:
— Chegou talvez a ocasião de dizer que o Neo-Realismo corresponde a uma posição de marxistas-leninistas em relação a uma realidade nacional, e que o Neo-Realismo não é um movimento literário, mas a reflexão, no plano da literatura e da arte, de uma concepção geral do mundo e da vida que é o marxismo (NAMORADO, 1974, apud FONSECA, 1974, p. 10).

A afirmação, sincera e fracamente desassombrada, liberta das peias da censura, seria muito elogiada pelos seus camaradas. Alexandre Cabral, escritor e ensaísta, militante comunista também de longa data, não se inibe em afirmar no prefácio ao livro Poemas de Abril, de Sidónio Muralha, que Namorado, ao invés de certos intelectuais nunca teve a língua entaramelada, abordou com lucidez o tema escaldante da marcada influência ideológica do movimento neo-realista português: a sua adesão aos princípios programáticos do Partido Comunista (CABRAL, 1974, p. 7).
Afinal, Joaquim Namorado não fazia mais do que reflectir a opinião de um conjunto de intelectuais que acumulava muitos anos de filiação partidária. Eram velhos resistentes a emergirem sobre os escombros ainda frescos da ditadura e a afirmarem o neo-realismo como expressão artística e doutrinária do marxismo-leninismo, que tinha no Partido Comunista, em que militavam, a sua expressão orgânica.
No entanto, nas novas condições de liberdade, o Partido Comunista atraía a si um número impressionante de novos militantes. Muitos tinham, na oposição legal, constituído uma orla de apoio partidário, outros aderiam impulsionados pela heroicidade e pela capacidade de resistência dos comunistas nos combates contra a ditadura, configurando uma realidade orgânica em intenso crescimento e, necessariamente, pouco homogeneizada ideologicamente.
No caso dos intelectuais, dos escritores, artistas plásticos, músicos, a diversidade de gerações e de sensibilidades estéticas traduzia essa heterogeneidade, que ultrapassava largamente os limites da tradição neo-realista, veio importante, mas que se confrontava com outras correntes estéticas, ao tempo inclusivamente mais presentes e mais pujantes.
Isso traduz-se, por exemplo, nas páginas do Avante!, o órgão central do PCP, de modo evidentemente contido, numa mesa-redonda com escritores, em que participam Alberto Ferreira, José Saramago e Eduardo Prado Coelho, pertencentes a distintas gerações e também a distintos momentos de adesão ao Partido Comunista.
José Saramago, cuja adesão ao PCP é de 1969, defende a necessidade — um imperativo — de levar a cultura ao povo, a tarefa socialmente útil dos intelectuais, numa atitude militante, onde o papel do escritor e do cidadão activo se fundem, pressupondo iniciativa e acção, sem estarem à espera de medidas que venham de outras instâncias, sejam os governos ou os militares.
Alberto Ferreira, mais próximo da primeira geração neo-realista, atribui a crise deste movimento ao ambiente de Guerra Fria e à grande vaga repressiva de 1963 sobre o sector intelectual de Lisboa do PCP, que impedira o seu desenvolvimento a partir daí. Defende, em consequência, o retorno, adaptado, ao programa neo-realista, para o que propõe que o estado assegure a subsistência material aos escritores que queiram desenvolver esse trabalho junto das massas populares, onde elas se encontram, designadamente nas colectividades ou nas casas do povo.
Eduardo Prado Coelho, mais novo, o único com carreira académica, assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e o que mais recentemente chegara ao PCP, por onde faz uma passagem quase meteórica, opõe à necessidade de retorno ao neo-realismo, expressa por Alberto Ferreira, a ideia de construção:
o escritor não pode aproximar-se da vida política, do combate político quotidiano apenas no sentido de “ir recolher material”, tem de procurar essa experiência para transformar a sua consciência pessoal e transformar ainda essa forma de consciência colectiva que é a linguagem que todos nós utilizamos […] E é aí que o escritor poderá encontrar muito do que constituirá o mais importante da sua obra futura (COELHO et al., 1974).
Por esta mesma altura são ainda mais claras as declarações de Ernesto Melo e Castro, um militante igualmente recente do PCP, poeta experimentalista, que vai bastante mais longe, não se inibindo de defender que o neo-realismo não foi o único movimento de resistência literária à ditadura e que escritores e poetas de outras sensibilidades estéticas foram igualmente perseguidos. Melo e Castro era impiedoso em relação ao neo-realismo ao considerar que “(…) globalmente não pode ser hoje encarado como mais que um resíduo paraliterário das décadas de 30, 40 e 50, com prolongamentos degenerativos nas novas gerações”1 (CASTRO, 1977, p. 28), e não se coibia de uma visão substancialmente mais alargada do que entendia como revolucionário, que não se circunscrevia a um âmbito meramente político, pois, como dizia:
Obras como as dos Surrealistas, Experimentais e Poetas de 60 elevaram a inquietação e a pesquisa sobre os valores específicos da poesia a um tal grau de agudeza, consciência e contestação a par da realização prática qualitativa que se pode e deve falar em verdadeira barreira à degenerescência criativa e em revolução da linguagem. Revolução paralela à da revolução política popular e com ela coincidente nos objectivos finais, mas divergindo por especificação instrumental, nos meios (CASTRO, 1977, p. 29).
Os registos são dissonantes e não podiam deixar de conflitar no

interior do PCP, sem que, no entanto constituíssem matéria de divergência irredutível. Mas, se até ao outono de 1974, na própria perspectiva do partido se tratava sobretudo de democratizar o país, a partir da derrota dos manejos de direita em 28 de setembro de 1974, o horizonte do socialismo começa paulatinamente a ser colocado, implicando o reforço e o aprofundamento do combate ideológico, com todas as consequências em matéria de literatura e arte.
Num dos raros discursos públicos em que estes temas são abordados, Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP, em novembro de 1974, num comício em Alhandra, homenageando Soeiro Pereira Gomes, o malogrado escritor que se tornara funcionário político do Partido Comunista e falecera na clandestinidade, disserta sobre a função social e política da literatura e da arte, sublinhando que:
(…) não podem ser neutras, alheadas dos grandes problemas em cuja solução todo o nosso povo está empenhado, numa luta que é de facto (mesmo que alguns disso se não tenham ainda apercebido) de vida ou de morte. A literatura e a arte têm um grande papel a desempenhar na consciencialização, no bem-estar, na alegria e na felicidade dos homens.Podem hoje ser uma arma de combate contra o que resta do passado e pela edificação do futuro Portugal democrático, pacífico, independente (CUNHAL, 1975, p. 80).
Neste novo contexto, a direcção do PCP sustentava objectivamente a necessidade de uma arte ao serviço da transformação social, o que dava alento aos que arvoravam a tradição neo-realista como património cultural do partido, mas cujas obras, nas condições em que foram produzidas, sob ditadura, reflectiam posicionamentos diferentes dos seus autores, o que levava a que se refinassem as análises, procurando as obras que melhor correspondiam a esses cânones estéticos.
Augusto Costa Dias, um ensaísta ao tempo já com muitos anos de militância comunista, numa das raras obras sobre estas matérias — Literatura e luta de classes. Soeiro Pereira Gomes, escrita entre Novembro de 1974 e Janeiro de 1975, afirma que:
Muitos dos intelectuais neo-realistas, ou lutando pela escrita ou juntando-lhe a luta política, foram soldados desse mesmo combate da classe operária. Viram e descreveram esse mundo em ruínas de proletarização brutal. Só porém o autor de Engrenagem se não cingiu à dramática interpretação e descrição de um universo e gente em escombros; ele acompanhou-os, a homens e mulheres, ex-camponeses, ex-artífices, braceiros no começo da sua dorida metamorfose. Essa, desde logo, a originalidade do esboço notabilíssimo que é Engrenagem (DIAS, 1975, p. 179).
Soeiro Pereira Gomes, escritor, autor de Esteiros e Engrenagem, mergulhara na clandestinidade para não ser preso na sequência da repressão sobre as greves de Maio de 1944 na corda industrial de Vila Franca de Xira, nos arredores de Lisboa, vindo a ascender ao Comité Central. É sobretudo este percurso que torna Soeiro um escritor militante, um dos que mais profundamente teria fundido a escrita com a sua condição de revolucionário profissional, ideologicamente proletarizado, adquirindo assim superioridade enquanto escritor neo-realista face aos seus próprios companheiros que militando ou tendo militado no Partido Comunista não lograram atingir essa espécie de elevação por maturação ideológica, que só a condição de funcionário e de dirigente clandestino destacado proporcionariam.
O seu exemplo aponta assim o caminho aos escritores comunistas nas novas condições históricas abertas pelo 25 de Abril rumo ao socialismo, como Augusto Costa Dias se encarrega aliás de sublinhar:
Se o proletariado, pela sua solidariedade para com todos os oprimidos e explorados, é sempre o criador da unidade real, concreta, e, ao mesmo tempo, unidade nos pensamentos e emoções de todos os que lutam — os escritores, com as armas e a subversão da palavra, podem e devem contribuir para tornar irresistível, em força e beleza, essa unidade revolucionária (DIAS, 1975, p. 195).
O exemplo e o modelo de Soeiro Pereira Gomes enquanto escritor e intelectual comunista perdurará no tempo. Álvaro Cunhal num texto de 1996 insiste em como]
Soeiro Pereira Gomes é um caso à parte. Não foi o escritor que se tornou um militante clandestino e organizador de greves e outras lutas de massas, mas esse militante clandestino que, revelando-se talentoso escritor, trouxe à literatura portuguesa aspectos vivos da sua experiência de revolucionário (CUNHAL, 1997, p. 42).

Independentemente da inconsistência factual, pois quer a publicação de Esteiros quer a versão publicada de Engrenagem são anteriores à funcionalização política do escritor, aquilo a que, quando muito, o dirigente comunista eventualmente se referiria era aos Contos Vermelhos, esses sim escritos nos cinco anos que Soeiro viveu na clandestinidade e que se reportam justamente a esse universo de luta subterrânea corajosa, persistente e heróica.
E aí estamos de facto perante a transformação de Soeiro num intelectual orgânico, não perdendo nem desbotando as suas qualidades como criador literário e colocando-as ao serviço de uma causa, de uma ideologia, legitimando-a e potenciando-a numa entrega total.
Na mesma linha, Álvaro Pina, ensaísta e professor universitário, num ensaio de 1977 também dedicado a Soeiro Pereira Gomes, insiste na importância do neo-realismo nas circunstâncias históricas verificadas em Portugal, estabelecendo no seio desse universo estético a distinção entre um realismo militante e socialista, enraizado no movimento operário, “o único capaz de representar as possibilidades e as perspectivas do futuro histórico” (PINA, 1977, p. 91), onde inclui Soeiro Pereira Gomes e Manuel Tiago e o realismo crítico, que ainda não teria esgotado todas as possibilidades de desenvolvimento e que é obra da intelectualidade democrática.
A invocação de Manuel Tiago por Álvaro Pina, colocando-o ao mesmo nível de Soeiro Pereira Gomes, deriva da publicação, em 1975, de um romance e um conto — Até amanhã, camaradas e “Cinco dias, cinco noites”, respectivamente, — da sua autoria. Mas é sobretudo o romance que suscita a atenção do ensaísta. A sua edição pelas edições Avante! vinha acompanhada de uma nota que adensava a incógnita sobre o verdadeiro nome do autor: “Desconhece-se quem é o autor. O único exemplar encontrado não tem assinatura. Só, numa pequena folha apensa e agrafada, podia ler-se em rabisco apressado, o nome Manuel Tiago, pseudónimo de certeza” (TIAGO, 1975, p. 7).
A verdadeira identidade de Manuel Tiago só virá a ser publicamente revelada muito mais tarde, em finais de 1994, tratando-se de Álvaro Cunhal, o secretário-geral do PCP.
Até amanhã, camaradas, um romance realista e épico, como assinalou Urbano Tavares Rodrigues (RODRIGUES, 2005, p. 29) toma como universo a acção do PCP sobretudo no Ribatejo, em torno do processo grevista de maio de 1944, constituindo um repertório das práticas clandestinas e das suas ligações ao movimento de massas convertido numa trama ficcionada. A par das personagens populares que emanam de ambientes rurais, que contrastam com os limitados ambientes urbanos de província, habitam a obra os quadros clandestinos, incorporando registos

biográficos de personagens reais que viveram directa e intensamente os acontecimentos narrados e onde a própria figura de Cunhal se destaca sob o pseudónimo de “Vaz”, o militante mais destacado.
Ainda que do ponto de vista da temática corresponda claramente a um realismo militante, os seus personagens afastam-se no entanto do modelo de “herói positivo”, que não tem dúvidas nem defeitos. Em todos eles há contradições, pulsões, tensões internas mais ou menos fortes que fazem dessas personagens dotadas de densidade psicológica (PEREIRA, 2005, p. 212).
São personagens melhores e piores de um ponto de vista moral, em que as dicotomias entre coragem e cobardia, lealdade e hipocrisia, honra e traição, soberba e humildade, apontam para uma ética de aperfeiçoamento enquadrado no grande colectivo que é o partido, o que sem se querer libertar da ortodoxia dominante a afasta de uma cartilha tosca e medíocre, em que apenas têm lugar os heróis e as personagens positivas.
Até amanhã, camaradas tem a particularidade de ter tido uma versão inicial escrita na prisão, no final dos anos 50. Quando Álvaro Cunhal é transferido da Penitenciária de Lisboa para o forte de Peniche já tem o romance concluído, inicialmente intitulado A mulher do lenço preto. E, nos primeiros dias de 1960, quando se evade daí, leva consigo três cadernos com o manuscrito da obra, dos quais, nas atribulações da fuga, perde um, obrigando a uma reescrita posterior. Esta nova versão circula no interior do partido, verificando-se a existência de uma versão dactilografada nos arquivos de vários funcionários clandestinos.
A exaltação em 1974 e 1975 de Soeiro e de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal no quadro de um realismo social, militante, remete, objectivamente, para uma distinção fundamental nesse campo, onde a maioria dos escritores não conseguiu concretizar plenamente, e sobretudo de modo coerente, o programa desse realismo social que, naquelas novas condições históricas, voltava a ser exigido.
As linhas de orientação iam sendo traçadas no fulgor de um processo revolucionário que se delineava e radicalizava. É nesse sentido que, já no início de 1975, os escritores comunistas da Organização Regional de Lisboa do PCP definem, como primeira das tarefas prioritárias o trabalho ideológico.
O processo revolucionário enveredaria por uma radicalização progressiva, particularmente após o 11 de março de 1975, em que uma nova manobra direitista é derrotada, o que se vai, evidentemente, reflectir no discurso dos intelectuais comunistas conferindo espaço acrescido aos defensores de uma literatura social de forte incidência política ao serviço da transformação social.

Porém, a produção dos escritores comunistas tardava e era dificultada pela vertigem e pela intensidade com que aquele tempo era vivido. Os escritores eram chamados a outras tarefas, fossem a nível governativo, jornalístico, associativo, partidário, académico. Por outro lado, a obra política, teórica, fortemente ideologizada fazia abrandar o interesse pela obra literária. E também porque os próprios escritores receavam não estar à altura do que lhes era exigido, como reconhece explicitamente Urbano Tavares Rodrigues:
Passou já quase um ano sobre o 25 de Abril. No campo da arte, e em especial no da literatura, não se fez muito — ou obras haverá que não terão vindo a público pelos motivos mais diversos, como desinteresse dos editores, (…), ou até pelo receio do próprio criador de que o seu produto possa não ser neste momento “útil” (RODRIGUES, 1975, p. 13).
Assim, entre o entusiasmo, o empenhamento militante, o envolvimento generoso nas tarefas da construção da democracia e nos combates pelo socialismo, os escritores eram pressionados a escrever, mas sem que a criação fluísse. A situação, deste estrito ponto de vista, seria seguramente de ansiedade e dramatismo.
A edição, em junho de 1975, da colectânea Abril, Abril, reunindo textos de 28 escritores e ensaístas organizados no sector intelectual de Lisboa, procura ser o exemplo de que é possível essa literatura nova. Porém, a iniciativa é débil e desequilibrada, com textos desiguais, na consistência e na incidência. Trata-se de uma colectânea pobre, feita de textos menores, com poemas do tipo “Meu glorioso Partido/Comunista Português,/ ao dares-me à vida sentido, deste-me a vida outra vez” (RODRIGUES, 1975, apud BABO et al., 1975, p. 51) ou com pequenos contos glorificando igualmente a actividade do partido, em incursões muitas vezes de gente menos ligada à ficção e mais à crítica, até não literária, como é o caso de Mário Castrim.
O mais interessante desta edição não está nos contos nem nos poemas, que indiciam bem as dificuldades de uma nova escrita acompanhando os caudais do processo revolucionário, mas sim nos ensaios, breves, questionando a função social e política da literatura.
Fernando Luso Soares, num ensaio sobre Como escrever Revolução apela à capacidade de criação revolucionária dos escritores, vencendo os labirintos em que se enreda, que condicionam a sua própria capacidade criativa revolucionária:

O facto da burguesia intelectual e escritora ter forjado uma “literatura do indivíduo”, em que se enredou labirinticamente, constituiu e continua a constituir um reflexo necessário da “propriedade individual”. E agora já nos parecerá fácil o surpreendermos onde reside a falsa consciência do intelectual. E a que fenómenos ela se prende. E sintetizar, como vício geral, os vícios a que os intelectuais do Abril da nossa Revolução devem escapar por sua própria luta (SOARES, 1975, apud BABO et al., 1975, p. 106).
Em contrapartida, Eduardo Prado Coelho, teoricamente informado, acutilante na crítica à retórica repetitiva dos axiomas e dos estereótipos ideológicos, propõe num ensaio uma Nova Cultura, “que se liberte dos modelos estritamente éticos da resistência antifascista. E avançarmos para essa cultura em nome de uma prática revolucionária. Liquidar e teorizar, como propõe Brecht” (COELHO, 1975, apud BABO et al., 1975, p. 90), sem que, por isso, deixe de se assumir enquanto expressão do reconhecimento do Partido Comunista Português como vanguarda do movimento operário.
Ao mesmo tempo que este debate é travado nas fileiras do Partido Comunista realiza-se, em Maio de 1975, o I Congresso dos Escritores Portugueses. Tratava-se de uma ideia que vinha laborando havia meses. Já em julho de 1974, na mesa-redonda com escritores comunistas publicada no Avante!, José Saramago e Alberto Ferreira coincidem na ideia de realizar um grande encontro de escritores que pudesse debater os problemas que se colocavam à criação literária nas novas condições políticas que se viviam no país, proporcionando um espaço de debate alargado onde se pudesse fazer ouvir as mais diferentes correntes e sensibilidades estéticas.
Parece subjacente a ideia de criar, através do congresso, uma espécie de grande frente cultural capaz de integrar todos os escritores que se reclamavam da herança antifascista e os que se lhes juntavam na perspectiva de ajudar à democratização do país, que era afinal, nessa fase, o objectivo central do Partido Comunista.
Alberto Ferreira sugere inclusivamente que essa tarefa, a organização do Congresso, podia ser atribuída ao MDP-CDE, organização que havia protagonizado a campanha da oposição às eleições de 1973, na base da unidade conseguida entre o PCP e o Partido Socialista.
Para o Partido Comunista, o MDP-CDE, funcionaria como uma frente democrática, aglutinando o Partido Socialista e mesmo o Partido Popular Democrático, que reunira os sectores da direita moderada, que, ao tempo, se dizia social-democrática e até socialista, cabendo-lhe enquadrar os

processos de democratização de vários sectores da vida nacional, designadamente a administração central e, pelos vistos, também o sector cultural.
Este desiderato não é apoiado por nenhuma daquelas forças políticas, que se afastam do MDP-CDE, deixando-o limitado aos quadros e militantes comunistas para aí destacados e a uma franja estreita de aliados vindos, na sua maioria, das campanhas eleitorais do tempo da ditadura.
Neste quadro, a organização do Congresso dos Escritores viria a caber à Associação Portuguesa de Escritores, criada em 1973, sucedânea da Sociedade Portuguesa de Escritores, que havia sido encerrada pelo governo de Salazar em 1965, em consequência da atribuição do grande prémio de novela a Luuanda, do escritor angolano Luandino Vieira.
Esse impulso em direcção a um congresso de escritores enquanto o processo revolucionário acelera e se radicaliza não deixa de assentar na predisposição dos escritores, sobretudo daqueles que protagonizaram a resistência cultural à ditadura, entre os quais encontramos evidentemente comunistas, mas também socialistas e outros partidariamente desalinhados, que praticamente desde Abril de 1974 vinham manifestando, em larga medida através da Associação Portuguesa de Escritores, a sua disponibilidade para colaborarem de modo activo nas tarefas e nos desígnios da democratização cultural do país.
Mas, a nova situação criada a 25 de Abril, as ondas de radicalização e a reconfiguração de novos campos políticos, deixavam para trás as velhas lógicas unitárias do combate à ditadura; perfilavam-se agora vários projectos político-partidários à esquerda, antagonizando entre si, num contexto qualitativamente diferente. No debate público, o domínio do político sobrepunha-se ao cultural e ao estético e os alinhamentos definiam-se fundamentalmente neste domínio, ainda que os incidentes e os pretextos pudessem ser também de natureza cultural, mas adquirindo uma feição instrumental.
Para esta separação de campos foi decisivo o manifesto publicado no semanário Expresso em Dezembro de 1974 acerca do controlo exercido pelo PCP nos jornais e de uma intenção acentuadamente revivalista dos intelectuais comunistas que pretendiam relançar o neo-realismo como modelo estético dominante. O manifesto era subscrito por um conjunto de intelectuais, sobretudo ensaístas e críticos, como Eduardo Lourenço, Virgílio Ferreira, José Augusto França ou João Palma-Ferreira, suscitando a adesão posterior de quase seis dezenas de outros, a maioria sempre próxima do Partido Socialista (GEORGE, 2002, p. 158-62).
Estas divergências ir-se-iam acentuar com a convocação do Congresso, que este grupo de ensaístas e escritores, onde se destacava

Eduardo Lourenço, considerava ter sido unilateral, isto é, lançado sem uma ampla auscultação prévia sobre a constituição da comissão organizadora ou sobre os temas e matérias a debater, ou, dito de outro modo, acusando implicitamente os escritores comunistas de estarem a instrumentalizar e a controlar todo esse processo de preparação.
Melo e Castro, um dos que pela sua própria sensibilidade estética, mais resguardado estaria de ser acusado de pretender reabilitar um neo-realismo adaptado à vertigem revolucionária que se vivia, é indigitado como secretário-geral do congresso e procura, sem perder a acutilância, mas assumindo para si as responsabilidades do processo, evitar o esvaziamento do congresso, principalmente por parte dos escritores não comunistas.
O I Congresso dos Escritores é efectivamente bastante participado, mesmo por parte dos que se haviam posicionado de modo crítico quanto à sua preparação e traduz um esforço de equilíbrio assinalável, traduzido na diversidade de discursos, aplacando, momentaneamente é certo, muitas das tensões subjacentes entre escritores comunistas e não comunistas. E na significativa participação de escritores comunistas volta a poder observar-se uma relativa pluralidade.
Estão lá, evidentemente, bem representados os defensores da literatura política e de combate, como Luís de Sousa Rebelo, por exemplo, que na sua comunicação defende que “Se é para o povo, tem o escritor que se inspirar da ideologia revolucionária das massas laboriosas […]. Se é para o povo, tem o escritor de escrever uma literatura nacional, onde transpareça a originalidade da revolução democrática portuguesa” (REBELO, 1975 apud RIBEIRO, 1993, p. 508).
Mas registam-se também outras intervenções mesmo na área do PCP, como Maria Alzira Seixo, que se afasta bastante daquele padrão discursivo, ao considerar que
Talvez escrever não seja lutar, mas transformar, isto é, não um combate que tem em vista a aniquilação, mas um embate (do instrumento da escrita sobre o papel, da desordem sobre a ordem, da história que se faz sobre a história que se fez), donde resulta a folha preenchida, o cumprimento da existência. Nesse caso, a comunicação não será fácil; quer dizer, teremos sempre de prever a dificuldade, maior ou menor do embate. […] Então, eu começo a compreender que expressões do tipo de “escrever para o povo”, por exemplo, não têm sentido (SEIXO, 1975 apud RIBEIRO, 1993, p. 508).

Este tipo de intervenções, mais heterodoxas, ainda que toleradas ou aceites com alguma complacência, não podiam deixar de mexer e de perturbar no seio da organização partidária. Eduardo Prado Coelho reconhece-o ao tempo explicitamente. No ensaio “A arte da fala” considera que a sua reflexão em matéria de crítica literária era coerente com o seu lugar político naquela conjuntura histórica, isto é, dentro do PCP, mas admitindo no entanto que pudesse incomodar sectores de camaradas seus, escritores ou não, para acrescentar que isso lhe interessava pouco, pois o partido não podia ser um super-ego moral ou intelectual (COELHO, 1975, p. 22-3).
Alguma clarificação política nesta matéria por parte do Partido Comunista, ou melhor dizendo, sancionada pela Direcção do PCP, surgirá mais tarde, em 1978, na I Assembleia de Artes e Letras da Organização Regional de Lisboa. A composição da reunião constitui uma fotografia interessante da organização. Os 95 delegados presentes, representavam os 320 militantes do sector. Desses, apenas 25 estavam no partido há mais de quatro anos, isto é, desde antes do 25 de Abril. No entanto, quase metade, 44, tinha entrado nos anos de 1974 e 1975, isto é, durante a fase revolucionária da transição (ASSEMBLEIA, 1978, p. 163).
Nessa assembleia, onde se voltariam a inscrever sensibilidades diferentes militando no Partido Comunista, Álvaro Cunhal, secretário-geral, produz uma importante intervenção de encerramento onde constata isso mesmo, para concluir que “O Partido não procura impor aos artistas nem escolas, nem estilos. Modelo estético partidário é coisa que não existe” (CUNHAL,1978, apud ASSEBLEIA, 1978, p. 211).
Claro que, Cunhal, nessa mesma intervenção, reconhecera abertamente que
Ninguém contestará ser legítimo que um partido revolucionário como o nosso se alegre quando o artista comunista se integra na luta popular, que combate lado a lado com os trabalhadores nas cidades e nos campos, que manifesta, reclama, distribui, cola, organiza, recruta, propaga — intervenha com a mesma paixão e na mesma batalha, usando a poderosa arma de que, como artista, dispõe. A palavra, o som, a cor, a representação, a imagem, as múltiplas formas de criação artística que, independentemente do propósito, são um meio de comunicação e de influência (CUNHAL, 1978 apud ASSEMBLEIA, 1978, p. 211).

O que sucedia é que, na realidade, a pluralidade estética, o carácter revolucionário da criação artística não se compadeciam com formulações simples e esquemáticas, repetitivas, escoradas na prevalência do conteúdo sobre a forma. Nestas circunstâncias, a imposição de um modelo estético segregaria um sector expressivo de intelectuais comunistas, a maioria, mas nem todos, de adesão recente, e mesmo que podendo querer remetê-los benignamente para a orla partidária, isso seria igualmente incomportável a prazo do ponto de vista do seu enquadramento político.
A solução foi dotar o PCP do princípio elementar da inexistência de um modelo estético partidário, assim consagrado na intervenção do seu secretário-geral na Assembleia de Lisboa com todo o lastro de autoridade que isso implicava, tratando-se, para mais, de um dos únicos dirigentes comunistas internacionais com preocupações densas em matéria de estética e, ele próprio, um escritor.
Ainda assim, sem confronto explícito, mas em perceptível tensão, a distinção era objectivamente estabelecida entre aqueles que alinhavam as suas obras num contexto de militância política estrita, de algum modo revivescendo a tradição neo-realista e aqueles que expressavam pela sua criação literária, uma pluralidade de sensibilidades estéticas, numa longa e persistente prática, alimentada de resto pelo próprio Álvaro Cunhal que, sob o pseudónimo revelado de Manuel Tiago, assim quis ditar, com a força do seu exemplo, a própria superioridade daquele entendimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Data de recebimento: 25 de abril de 2014 Data de aprovação: 30 de maio de 2014




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