A prostituição, aos olhos de quem a conhece de perto há décadas, está longe de ser o glamour que, inicialmente, as mulheres contam. Para lá do "isto até se faz bem" há um mundo de violência e de pobreza emocional.
Assinala-se hoje, dia 2 de junho, o Dia Mundial da Prostituição. O tema tem, de quando em vez, flutuado na ordem do dia. Para isso muito tem contribuído a moção da Juventude Socialista - a defender a regulamentação da prostituição como profissão, estabelecendo-se direitos e deveres como acontece com os demais trabalhadores - aprovada no último congresso da juventude partidária. Sobre essa intenção dos jovens socialistas ainda não uma proposta concreta, esta apenas serviu de rampa de lançamento de um debate que está longe de ser consensual, dentro ou fora do Parlamento.
O Notícias ao Minuto esteve à conversa com Conceição Mendes, assistente social no Ninho, instituição que está a completar este ano 50 anos de existência e que se dedica a tentar ajudar a retirar mulheres da prostituição. Ao longo deste meio século, o Ninho já deu a mão a mais de nove mil mulheres, mostrando-lhes que é possível uma vida em que não tenham de vender o corpo.
"No Ninho encaramos a prostituição como um problema social e aspiramos ao seu desaparecimento. Podem considerar-nos redutores, utópicos, e até dizer que é a profissão mais velha do mundo, mas para falarmos de um assunto claramente, temos de definir conceitos", explica-nos Conceição, que trabalha com estas mulheres há mais de 30 anos. No último meio século, recorda-nos, Portugal passou por diferentes regimes jurídicos no que toca à prostituição, tendo até já experimentado, durante um século e com provas de insucesso, a regulamentação (entre 1858 e 1962). Depois, em 1963 passou a proibir-se.
"Criminalizavam-se as mulheres, eram equiparadas aos vadios. Como não tinham situação económica para se voltar, nem trabalho, nem família, ficavam sempre presas durante o máximo de três anos", lembra. Depois, em janeiro de 1983, entrou em vigor o atual código penal, onde o sistema é o abolicionismo e com o qual o Ninho se alinha sem quaisquer reservas.
O problema da legalização, aponta, "é que se mete tudo no mesmo saco". "Fala-se em 100 mil trabalhadores do sexo como se fosse o rapaz que está com as câmaras nos filmes pornográficos, a rapariga que está atrás de um balcão numa sexshop, as stripteasers, as alternadeiras (que bebem com os clientes a troco de dinheiro). Mete-se tudo no mesmo saco e o Ninho é completamente contra isso. As nossas mulheres passaram por várias situações dessas e, para nós, também deve ser definido o conceito de prostituição: práticas sexuais, hetero ou homossexuais, a troco de uma menção dentro de um sistema organizado".
Em relação ao lucro de quem vive da prostituição, Conceição desmistifica: "Não é dinheiro fácil, quando muito é dinheiro rápido". E, apesar de ser poder ganhar muito dinheiro, "a realidade é que há muita gente que lucra no sistema". "Desengane-se quem pense que, muitas mulheres, por si só, estão numa situação aflitiva e amanhã vão ali prostituir-se", frisa. E, feitas as contas, "é como elas dizem, o dinheiro quando se está na prostituição parece que não rende, é o comer fora, o álcool, as drogas, o dinheiro esvai-se por entre os dedos".
Produto de marca branca versus produto de marca
Conceição constata que, da experiência que tem, há mulheres que se prostituem em bares de luxo, a ganhar 300, 400 euros para estar duas horas com um cliente, e também mulheres que na rua ganham 10, 15 euros. Mas que, no que toca ao problema social que vivem, as realidades são as mesmas.
"Há de tudo. Mas o que muda não são as histórias de vida das mulheres, o que muda é estarem num bar de luxo em que têm de estar bem arranjadas, têm de comprar as lingeries que os clientes preferem e os perfumes de marca. No fundo, é um produto que, em vez de ir ao supermercado e escolher o produto de marca branca, escolho o produto de marca e estou a pagar, além do produto, o marketing, a publicidade e por isso vou pagar mais", compara.
Há também, elucida-nos, "apartamentos de luxo que são autênticas fachadas, que têm sauna, marquesas para as massagens, os óleos. E há outras casas em que só há um colchão no chão, tudo porco em que as mulheres têm de andar com um lençol para meter lá em cima", exemplifica.
"Aquilo que nós percebemos ao longo dos anos é que se se ganha muito também se gasta muito. Se estão na rua, contentam-se com um carro em segunda mão, se for um homem de um bar de luxo quer um carro de topo de gama. Porque as mulheres também compram muito a ilusão do amor. Todos nós precisamos de amar e de ser amados e elas não são diferentes. O objetivo das mulheres que estão na prostituição é sempre a saída, dizem que é por pouco tempo, até organizarem a vida. As mulheres, quer de 20 anos quer de 60, quando estão na prostituição, gostam pouco de si, existe muita pobreza emocional e afetiva. Não são só as questões económicas", descreve.
Quando a mulher menos tem direito ao seu corpo é quando tem necessidade de o vender para o sobreviver
Para esta especialista, há argumentos do lado da defesa da legalização da prostituição que são puras falácias. "Toda a gente sabe que quem tem o dinheiro na mão é que manda", salienta, fazendo alusão ao facto de, acima da vontade da mulher, está o chulo e ainda o cliente.
"A questão da autodeterminação das mulheres, o direito ao corpo, isso são tudo falácias. Quando a mulher menos tem direito ao seu corpo é quando tem necessidade de o vender para o sobreviver. E podem dizer que há pessoas que o fazem porque querem e porque gostam. Eu não falo de uma realidade que não conheço. Não conheço nenhuma mulher que me tivesse dito que gostava daquilo que fazia. Nos primeiros tempos, o dinheiro até lhes limpa as lágrimas, porque nunca viram tanto dinheiro junto, mas a realidade por trás disso é que há uma vida fragilizada, lacunas mentais e emocionais e muita violência", descreve, sublinhando ser preciso aprofundar mais o problema.
"Não é ir a um bar, onde atrás está o dono ou o amigo do dono, em que a mulher diz o que o jornalista quer, que está tudo bem, que se ganha x por dia. É uma vida sem planos, não se olha para o dia de amanhã, é viver o dia a dia. Ganha-se gasta-se. Há mulheres que nos chegam aqui que têm que fazer psicoterapia durante anos. Na Holanda e na Alemanha, há muito tempo que as mulheres estão nas montras e não é por isso que se passou a olhar com outros olhos".
Se não gostaria que isto fosse para as minhas filhas, porque é que hei-de lutar para que seja para os filhos dos outros?As mulheres, lá como cá, explica Conceição, não querem estar registadas nas finanças como prostitutas. "Podemos chegar à situação perversa de, se a prostituição for legalizada, pode até perder-se o subsídio de desemprego se o dono da casa achar que aquela pessoa satisfaz as condições e recusar três vezes aquele trabalho", alerta, prosseguindo: "Isto é quase uma caricatura mas no fundo, na Holanda e na Alemanha é o que acontece. Um industrial do sexo pode ir ao centro de emprego e dizer que precisa de pessoas".
Não se trata de uma questão de moralismo, posiciona-se. Trata-se, isso sim, de defender valores como: "Se não gostaria que isto fosse para as minhas filhas, porque é que hei-de lutar para que seja para as filhas dos outros?", argumenta.
"Que sinal estamos a dar ao jovens para uma sexualidade saudável se vamos legalizar o facto de se poder comprar o corpo como se de um objeto se tratasse? É tirar todo o caráter de humanidade à sexualidade. (...) A prostituição é uma violência. E depois dizem, é uma situação que existe, vamos ajudar as mulheres a prostituir-se melhor. Uma analogia com a escravatura: temos um autocarro para brancos e outro para pretos, o dos brancos tem ar condicionado e o dos pretos não. Vamos pôr ar condicionado no dos pretos também, mas o apartheid continua. Em relação ao tráfico, que aumenta com a legalização da prostituição, ele só existe porque existe prostituição. É a mesma coisa que lutarmos contra o tráfico de escravos e não lutarmos contra o sistema esclavagista".
Como funciona o Ninho?
O Ninho é uma IPSS destinada a ajudar mulheres a sair da prostituição. Durante os 50 anos de existência, as mulheres chegam ao Ninho de várias formas. Há um centro de atendimento e um serviço de intervenção. “Há mulheres que procuram o Ninho, há umas que trazem outras. Nós também vamos aos locais e deixamos os nossos contactos, um cartão escrito em quatro línguas”, conta Conceição, explicando que não abordam as mulheres com uma atitude moralista ou de culpabilização, nem lhes tentam impor o seu ponto de vista. O Ninho ajuda as mulheres a (re)inserirem-se na sociedade, e isso vai desde ajudá-las a tratar do abono de família dos filhos de mulheres que ainda se estão a prostituir, por exemplo, a dar-lhes ferramentas para conseguirem um emprego depois de decidirem sair da prostituição, quando dizem “esta vida já não é para mim”.
O Ninho tem um lar, onde as mulheres podem estar com os filhos, e oficinas de treino. “Temos raparigas que o importante é voltar a estudar ou que têm capacidade para entrar imediatamente no mercado de trabalho. Como podem ser mulheres que precisam de adquirir essas competências que lhe permitam a reinserção. Temos umas oficinas de aprendizagem ao trabalho, estão aqui connosco das 9h às 17h, e à hora de almoço saem e vão almoçar ao lar onde temos uma cantina”,explica.
O Ninho tem ainda um protocolo com a Câmara de Lisboa. Há sempre 12 mulheres a trabalhar nos jardins da cidade. “Trabalham como qualquer outro trabalhador da Câmara. Tem recibo. Apesar de não terem um contrato de trabalho, é um protocolo, fazem descontos para a segurança social. Muitas delas nunca tinham feito descontos na vida”.
De salientar que, muito embora o Ninho se posicione contra a legalização da prostituição, a Rede sobre o Trabalho Sexual (RST), que junta uma boa parte de organizações que trabalham com prostitutas em Portugal, tem opinião contrária, pelo que luta para que a prostituição possa vir ser encarada como uma profissão.
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