Os socialistas franceses têm mais de 30 anos de avanço sobre a Troika a defenderem as políticas de austeridade.
Crónica sobre os anos 80, sobre “Viva a Crise! “ – Texto 6– Parte I
(In blog NICO, 22/02/2014)
Faz exatamente 30 anos que em 22 de fevereiro de 1984, mais de 20 milhões de espectadores estiveram em frente da sua televisão para assistirem à difusão em Antenne 2 do programa Vive la Crise! (VLC), apresentado por um Yves Montand em grande forma. Este programa tinha sido acompanhado na altura por uma edição especial do jornal Libération, que, sob a mão e a escrita principalmente de Serge July e do jovem Laurent Joffrin, comemoravam de forma entusiasta a viragem para uma política de rigor um ano antes levada a cabo pelo governo socialista e em que se defendia uma conversão do socialismo para o liberalismo assim como o culto da empresa, para se sair da crise e do desemprego em massa, problema este que alimentava já muitos discursos assim como atingia duramente as mentalidades de então. Difícil é não fazer a ligação com a crise existencial que vem a atravessar este jornal 30 anos mais tarde. Eu, pessoalmente, descobri a existência de “Vive La crise!’ ao ouvir a emissão “Là-Bas si j’y suis” de Daniel Mermet em 2006, que tratou amplamente da viragem neoliberal da década de 80, e sobre esta viragem eu já tinha escrito um texto longo, de duas partes: ( parte 1 aqui e parte 2 aqui ). Pierre Rimbert e SergeHalimi do Monde Diplomatique estavam a comentar com Mermet certos excertos bastante edificantes de ‘Vive La crise!’, que eu achei verdadeiramente muito emocionantes. Para assinalar a ocasião do 30º aniversário, então eu transcrevi e reorganizei os principais trechos da emissão de Mermet, adicionando depois, na parte final, alguns comentários sobre as relações estreitas com certos temas que fazem a atualidade de fevereiro de 2014. Devo acrescentar que aconselho a ouvirem a transmissão de Mermet, disponível, por exemplo, aqui. Ambos mostraram até que ponto VLC foi simbólica da mudança ideológica da esquerda socialista neste período 83-84 e em que com este programa se tinha inaugurado uma era de propaganda dos media na qual nos banhamos desde há 30 anos até agora, sempre a favor de menos Estado, da precaridade do trabalho e, mais amplamente, do liberalismo como sendo a única saída para a crise. Para assinalar esta data, este aniversário de 30 anos, então eu transcrevi e reorganizei os principais trechos da emissão de Mermet, adicionando alguns comentários no final do artigo sobre as estreitas relações com certos temas que fazem a atualidade de Fevereiro de 2014. No entanto, aconselho a que se ouça a transmissão de Mermet, disponível por exemplo aqui.
1) Introdução: “Viva a Crise!”, um belo momento de pedagogia da política de rigor e do liberalismo
Montand (extraído de VLC): “Todos os dias, tal como eu, todos ouvem falar de catástrofes económicas, inflação e desemprego, mas o que é que se passa ? O que é que se desregulou no mundo? Alguns dizem que o mundo é uma bagunça momentânea da economia, outros, enfim, que se trata de uma catástrofe duradoura, outros, por último, dizem-nos que se trata de uma verdadeira mutação, que um mundo novo está para começar, mas tudo isto, assim, é para mim demasiado abstrato. Depois, sou como aqueles que me lêem, gostaria de ver claramente. Então tento compreender e tento fazer-me explicar em tudo isto claramente. E finalmente, dei-me conta que a famosa crise, quando se conta toda a história, esta pode tornar-se igualmente tão apaixonante quanto um filme. Vão ver. ”
Pierre Rimbert (comentário): “ Viva a Crise (VLC) é um verdadeiro exercício de pedagogia do rigor. Estamos em 1984, e um ano antes. o governo socialista acabava de renunciar ao seu programa. A encenação, a colocação em espetáculo desta renúncia, vai ser realizada por Antenne 2 com VLC, retransmitida e acompanhada por um suplemento de 100 páginas de Libération, de que se venderam mais de 200.000 exemplares. É um suplemento histórico em que Serge July é o autor do editorial e em que ele dá o tom explicando que chegou a hora de uma grande revolução cultural. Nisto, de revolução cultural, é fiel ao seu passado de ex-maoísta, salvo que desta vez, se trata de uma grande revolução liberal. O objetivo é, na sua opinião, de “transformar os sujeitos passivos em sujeitos ativos, de fazer de cidadãos assistidos, cidadãos empreendedores ”. A glorificação da empresa e da política de rigor, são os temas de VLC a que se deve acrescentar também a necessária retração do Estado social. Gozou-se muito dos filmes comunistas de propaganda, mostrando o realismo socialista. VLC é o realismo liberal. Dois anos mais tarde, terão Bernard Tapie a ensinar-nos em direto como fabricar uma empresa. O realismo liberal é também estes intelectuais que, a partir de VLC, vão doravante marcar terreno nos estúdios televisivos para explicar às vítimas da crise económica que é necessário apertar o cinto, fazer esforços, sacrifícios, e renunciar às conquistas sociais.
2) O contexto internacional em 1984: uma viragem neoliberal generalizada, sob a impulsão de Reagan e de Thatcher, mas frequentemente levado a cabo por partidos de esquerda que se adaptam ao neoliberalismo e renunciam a efetuar políticas alternativas
Serge Halimi : “1984 é um ano muito importante à escala do mundo ocidental. Recentemente o governador do Banco Central da Nova Zelândia, para sublinhar até que ponto o neoliberalismo também tinha sido produzido por partidos de esquerda, recordava que no fim de 1984, os ministros das finanças de 6 países da OCDE (Nova Zelândia, Austrália, Espanha, França, Suécia e Reino Unido) eram os porta-vozes ativos da liberalização. Ora, quase todos, a exceção é o Reino Unido, estavam a ser governados por partidos de esquerda. Nos Estados Unidos, 1984 é o ano de emergência de uma tendência moderna, no partido democrata, na parte mais próxima possível dos meios de negócios e mais afastada dos sindicatos, que vai celebrar sistematicamente o culto dos empresários dinâmicos. No Reino Unido, é o início da greve dos mineiros, que durará um ano e será um terrível fiasco. É evidente que estas reformas liberais que se difundem nos anos 80, exigem como condições prévia a liquidação ou, em todo caso, o enfraquecimento do sindicalismo. Na sequência desta greve, o partido trabalhista tornar-se-á cada vez mais este New Labour, incarnado depois e magnificamente por Tony Blair, mas na época por Neil Kinnock que será depois o presidente muito liberal da Comissão Europeia. Por fim, último exemplo, o ano de 84 é a chegada ao poder na Nova Zelândia de um governo trabalhista que será o artesão da reorientação mais fundamental da economia na via ultraliberal, em redor de um modelo liberal libertário, dado que efetuará um programa ultraliberal no plano económico mas ao mesmo tempo, levará à descentralização, ao direito das mulheres e dos homossexuais, à defesa do ambiente e das minorias.”
3) O contexto francês: o governo realizou em Março de 1983 a famosa viragem para as políticas de rigor e ratifica-a no ano seguinte com a substituição de Mauroy por Fabius.
Rimbert: “Para os publicitários, os jornalistas da televisão, para certos intelectuais, 1984 é o ano da felicidade. A publicidade explode com o início da liberalização das televisões, das rádios livres, é a criação de Canal +, das playmates de Colaro na televisão, em suma, do socialismo televisivo e cultural. Mas a outra realidade de 1984, muito mais importante e muito menos presente em VLC é o ano negro do social e, em especial, do mundo operário. A barra dos 2 milhões de desempregados foi ultrapassada meses antes, e os planos sociais e as reduções de empregos sucedem-se. A 8 de Fevereiro, poucos dias antes da emissão, o governo anuncia o grande plano Fabius de reestruturação industrial: 20.000 supressões de empregos na siderurgia, seguidos de 5.000 na construção naval, de 25.000 nas minas de carvão, 7.000 na Renault, 6000 na Citroën, e anúncios deste tipo sucedem-se uns a seguir aos outros, ao longo de todo o ano. Os trabalhadores tinham levado a esquerda ao poder para salvar os seus empregos, e assegurar um futuro aos seus filhos e a esquerda pura e simplesmente renuncia a esse programa.”
(A segunda parte deste texto será publicada amanhã, 24/06/2017, 22h)
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